Diálogos entre psicanálise e literatura: criatividade e sentimento de realidade em Winnicott

Daniela Lima de Almeida*
Matheus Cerqueira Medrado**
Thaís de Almeida Santos***


A TEORIA DO AMADURECIMENTO EMOCIONAL: TENDÊNCIA À INTEGRAÇÃO

É evidente que o bebê não escolhe nascer, muito menos aonde, e isto é algo factual. Tão importante quanto o ato de nascer, Donald Winnicott (1896 -1971) percebeu, através de um olhar diferenciado para com os bebês que as condições ambientais fermentaram novas possibilidades de se pensar no desenvolvimento infantil, especialmente através da relação mãe-bebê.


Para Winnicott, o uso do conceito mãe suficientemente boa deve remeter, principalmente, a uma concepção não idealizada da função materna para com o bebê. A mãe, devido ao seu caráter humano, pode falhar, mas é igualmente capaz corrigir seus erros ou suas curtas ausências em um período tão delicado do desenvolvimento infantil (WINNICOTT, 1987/1999). O psicanalista inglês destaca que a mãe dedicada comum se prepara psicologicamente, desde antes do nascimento, para atender de maneira quase visceral a todas as necessidades do seu bebê. Esse elo se expressa de maneira tão firme e segura para a criança que a mãe participa dessa relação como um ego auxiliar no alojamento da psique no corpo do bebê, ajudando-o na estruturação e desenvolvimento de seu ego[1]. Nos pormenores dessa relação, a mãe devota comum desenvolve, de maneira natural e espontânea, uma sensibilidade fundamental para a futura integração egóica da criança, visto que de início é necessário que “se manifeste o sentimento de unidade entre duas pessoas, que de fato são duas, e não apenas uma” (ibid., p. 04).

Essa empatia, ou essa devoção, é algo tão importante que, sem ela, seria impossível para o bebê amadurecer emocionalmente. Nesse momento, a presença de um ambiente facilitador – que no primeiro momento se restringe à mãe ou àquele que materna – com características suficientemente boas, permite ao bebê que sua tendência ao amadurecimento se prolifere e permita alcançar resultados favoráveis (WINNICOTT, 1987/1999).

Esse estado de dedicação exclusiva oferecido pela mãe, dentro da dependência absoluta da criança, vai gradualmente voltando ao seu estado normal ao longo das semanas e meses que se seguem, visto que o (a) cuidador (a) deve proporcionar uma falha gradual às necessidades do bebê. Esse período de transição é o mesmo em que bebê amadurece, adquirindo a capacidade de expressar suas necessidades, caminhando assim, para uma dependência relativa do ambiente. Esse período possui peculiaridades importantes para a constituição psíquica: a capacidade intelectual da criança de saber que ele pode esperar alguns minutos para a sua alimentação; a constituição da capacidade do bebê relacionar-se com um objeto; e a compreensão de que a mãe possui necessidades para além do bebê.  Além disto, quando o (a) cuidador (a) está longe, aparece no bebê a ansiedade como o primeiro sinal de que o cuidado e o zelo que o (a) cuidador (a) lhe oferece é necessário (WINNICOTT, 1983). Finalmente, a criança vai gradualmente, com a desadaptação do ambiente, vivendo a possibilidade de encontrar uma independência relativa, pois, segundo Winnicott (ibid.), enquanto houver vida, haverá também algum nível de dependência do ambiente.

Dentro deste potencial que está a caminhar para a formação de um self[2] unitário, esse suporte oferecido pelos cuidadores incide sobre a tendência inata ao desenvolvimento de forma que facilite à criança a concretização do potencial existencial. Especificamente a respeito dos cuidados, existem algumas tarefas básicas que devem ser suficientemente bem exercidas pelos cuidadores, e dentre elas, há o holding. Para Winnicott (1983), esse conceito vai muito mais da concepção geral de “dar suporte” ou “segurar a criança”. Um holding suficientemente bom fornece um ambiente saudável, acolhedor, seguro e previsível para a criança continuar sendo através de uma integração no tempo e no espaço. A essa fase onde há uma dependência absoluta do bebê com relação à mãe e onde esta se dedica ao máximo para atender às necessidades do lactente, Winnicott nomeia de preocupação materna primária:

Já escrevi muito sobre este assunto, sob o título “preocupação materna primária”. Neste estado, as mães tornam-se capazes de colocar-se no lugar do bebê, por assim dizer. Isto significa que elas desenvolvem uma capacidade surpreendente de identificação com o bebê, o que lhes possibilita ir ao encontro das necessidades básicas do recém-nascido de uma forma que nenhuma máquina pode imitar, e que não pode ser ensinada (WINNICOTT, 1999, p. 25-6).

Entretanto, é factível que nem todo o ambiente consiga sempre atender a todas essas questões. Muitas vezes a mãe (ou o cuidador) tem que atender tanto às demandas externas quanto às de seu filho, dificultando muitas vezes um holding suficientemente bom à criança. Por isso, é necessário que até a própria mãe tenha um suporte através de terceiros para que possibilite cuidados adequados à criança constituir um self espontâneo.

            No processo de integração psicossomática no bebê, o envolvimento emocional do (a) cuidador (a) é imprescindível. A respeito disto, Winnicott (1999) destaca que há uma comunicação silenciosa na troca de olhares, no calor do corpo que aconchega o bebê, os movimentos repetitivos, os batimentos cardíacos, no cheiro da pessoa. A respeito destes exemplos (dentre as inúmeras possibilidades de contato real e significativo), Winnicott apresenta o conceito de handling uma parte específica do holding, ao qual diz respeito, exclusivamente, ao contato físico. Quando suficientemente bons, as consequências desse processo ocorrem paralelamente, como resultados de três tarefas: a integração no tempo e no espaço, advindo do holding; o alojamento da psique no corpo, com origem no handling; e início das relações objetais, que surge com a apresentação de objetos pela mãe (WINNICOTT, 1983).

            De maneira geral, são identificados na teoria winnicottiana dois possíveis caminhos: o primeiro, em que os cuidados são exercidos por uma mãe suficientemente boa. Neste, a criança desenvolve um self verdadeiro encontrando a espontaneidade que o possibilite viver de forma criativa. O segundo diz respeito aos cuidados que não foram suficientemente bons em função de faltas ou falhas em que não foi possível corrigi-las pelos mais variados motivos: seja pela condição psicológica da mãe; ou por influência de fatores externos que estão para além da capacidade do (a) cuidador (a) oferecer um holding adequado, ou seja, em um ambiente intrusivo, etc. Evidentemente que a criança pode até sobreviver (se as intrusões não forem extremas), mas pode, muito provavelmente, ser acometida por sérias sequelas que poderá carregar pelo resto da vida[3].

OS SENTIDOS DE REALIDADE NA OBRA DE WINNICOTT

Como vimos até aqui, Winnicott define o amadurecimento emocional em termos de conquistas; a construção de um self, uma personalidade unitária, se dá a partir da realização das três tarefas fundamentais apoiadas por um ambiente que, além de facilitar o desenvolvimento, cuida. Assim, uma vez que o presente artigo versa sobre a criatividade, discutiremos, nos parágrafos seguintes, o papel da mãe suficientemente boa no desenvolvimento do potencial criativo dos seres humanos e a relação desse com o sentimento de realidade, considerando uma breve análise do livro “Os sofrimentos do jovem Werther”, de Johan Wolfgang Goethe.

Na sociedade ocidental, a tentativa de reduzir o homem a um ser racional transformou a ideia de ilusão em pura distorção da realidade. O mundo do “faz-de-conta” deve limitar-se às crianças e aos artistas, pois não há espaço para o sonho em um mundo voltado para a produção:

Quando observo as limitações que cerceiam as forças ativas e criadoras do homem, quando vejo como toda atividade se resume em satisfazer as nossas necessidades, que, por sua vez, não visam outra coisa senão prolongar nossa pobre existência; quando percebo que todo apaziguamento em relação a determinados pontos de nossas buscas constitui apenas uma resignação ilusória (...) – tudo isso, Wilhelm, me faz emudecer (GOETHE, 2007, p. 15).


Na Psicanálise, encontramos posicionamentos divergentes em relação ao papel da ilusão na vida dos sujeitos: se na abordagem freudiana a ilusão é tomada como um signo do infantilismo, Winnicott considera que o conceito de ilusão “é um elemento positivo, essencial na constituição do indivíduo, e fundamento da capacidade de estabelecer relações significativas com a realidade externa” (DIAS, 2011, p. 51).

Na fase de dependência absoluta, essa ilusão está relacionada à natureza essencialmente subjetiva do mundo habitado pelos bebês. Como dito anteriormente, ao analisar o amadurecimento pessoal em termos de conquistas, Winnicott defende que a realidade objetivamente percebida é apresentada ao bebê em “pequenas doses”. Nesse sentido, a apresentação de objetos se constitui como uma das tarefas da mãe suficientemente boa, exigindo da mesma uma adaptação às necessidades da criança, cabendo-lhe “tornar concreto aquilo que o bebê está pronto a encontrar” (WINNICOTT, 1971/1975, p. 70).

(...) quando a mãe responde de maneira adaptativa ao gesto espontâneo – em que o bebê busca algo em algum lugar –, ele sente como se o seio e o leite fossem o resultado de seu próprio gesto e faz a experiência de criar aquilo que encontra (DIAS, 2011, p. 52).

            Nesse momento, a criança vivencia o que chamamos de “ilusão de onipotência” através da criatividade primária, isto é, a partir da criação de um mundo já existente. O predicativo desse controle mágico sobre a experiência é a confiabilidade ambiental, uma vez que essa permite a construção de “um playground intermediário, onde a ideia de magia se origina, visto que o bebê, até certo ponto, experimenta onipotência” (WINNICOTT, 1971/1975, p. 71).

Assim, a mãe torna-se confiável quando “em meio às necessidades sempre variáveis do bebê, que ora está tranquilo ora excitado, mantém regulares, constantes e consistentes a si mesma e ao ambiente” (DIAS, 2003, p. 168), evitando que a criança entre em contato com uma realidade que ainda não está pronta para encontrar.

Diante do exposto, conseguimos perceber a existência de duas realidades: a subjetiva e a objetivamente percebida. Enquanto a primeira está relacionada ao controle mágico da realidade, a última vincula-se à impotência criativa do sujeito; afinal, o mundo objetivo não nos permite transformá-lo através do sonho. Nesse sentido, Winnicott (1971/1975) questiona se apenas essas duas realidades são suficientes para compreender os fenômenos psíquicos. Por conseguinte, reivindica a existência de uma terceira parte da vida humana, uma área intermediária de experimentação que apresenta elementos da realidade interna e externa:

Trata-se de uma área que não é disputada, porque nenhuma reivindicação é feita em seu nome, exceto que ela exista como lugar de repouso para o indivíduo empenhado na perpétua tarefa humana de manter as realidades interna e externa separadas, ainda que inter-relacionadas (ibid. p. 15).


            Nessa área intermediária estão os fenômenos transicionais, ou seja, experiências que não estão localizadas no mundo interno (subjetivo), tão pouco no externo (objetivo), mas que se encontram na fronteira dessas realidades. Eles são estados intermediários “entre a inabilidade de um bebê e sua crescente habilidade em reconhecer e aceitar a realidade” (WINNICOTT, 1971/1975, p. 15). 

Em termos winnicottianos, podemos definir os fenômenos transicionais como uma área neutra da experiência que possibilita ao bebê passar do controle de onipotência (ou controle mágico) ao controle de manipulação da realidade. Assim, permite-se que a criança vivencie o chamado “princípio de realidade” sem que haja perda do gesto espontâneo, da criatividade e do sentimento de realidade. Para Dias (2011):

Sentir-se real, sentir que o mundo é real e poder transitar entre um e outro dos sentidos da realidade – a realidade do mundo subjetivo, a terceira área da experiência (transicionalidade) e a realidade do mundo objetivamente percebido – são possibilidades que derivam do fato de o indivíduo ter iniciado a vida fazendo a experiência do primeiro e fundamental sentido de realidade: a do mundo subjetivamente concebido, através da ilusão de onipotência (p. 53-54).

Dentre os fenômenos transicionais, encontramos no brincar uma expressão genuína da relação entre as realidades existentes e a implicação de um cuidado suficientemente bom. Para Winnicott (1971/1975), a relação de confiança entre a mãe e seu bebê constrói um espaço potencial – o playground intermediário ao qual nos referimos anteriormente – que possibilita à criança acessar, de forma lúdica e segura, uma amostra de seu potencial criativo:

A importância do brincar é sempre a precariedade do interjogo entre a realidade psíquica e a experiência de controle dos objetos reais. É a precariedade da própria magia, magia que se origina na intimidade, num relacionamento que está sendo descoberto como digno de confiança
(ibid., p. 71).

            Para o psicanalista inglês, o brincar é uma atividade própria da saúde, visto que, além de ser uma forma de comunicação estabelecida entre o universo da criança e o mundo externo, facilita o crescimento e conduz aos relacionamentos grupais. Outrossim, “há uma evolução direta dos fenômenos transicionais para o brincar, do brincar para o brincar compartilhado, e deste para as experiências culturais” (Winnicott, 1971/1975, p. 76), tais como a arte e religião.

            Como exposto anteriormente, a mãe suficientemente boa adapta-se quase que completamente às necessidades do bebê, apresentando-lhe aquilo que ele está pronto para encontrar. Entretanto, se tudo correr bem, ao longo do processo de amadurecimento haverá um instante no qual a criança será capaz de lidar com os fracassos ambientais.

Desse modo, pode-se afirmar que ela está pronta para encontrar e aceitar a existência da realidade objetivamente percebida, assimilando as desilusões. Ao passar do tempo, a criança perceberá que existe um mundo para além de sua realidade subjetiva e que a ilusão de onipotência fora, na realidade, um sonho. Todavia, o processo de desilusão não destrói a ilusão básica, isto é, a capacidade de sentir que o mundo fora criado pessoalmente e que poderá manter-se assim:

Ao defrontar-se com o fato da separação, da externalidade e da falta de controle sobre o mundo compartilhado, o indivíduo retém a capacidade para a ilusão, exercendo naturalmente a criatividade que “é a manutenção, através da vida, de algo que pertence à experiência infantil: a capacidade de criar o mundo” (DIAS, 2011, p. 58).
           
            Assim, a fim de tratarmos mais especificamente da criatividade, incluindo tanto a vida do homem comum quanto do artista, utilizaremos o deslumbrante personagem Werther, de Goethe, para subsidiar nossa explanação sobre o tema.

A CRIATIVIDADE: IMPLICAÇÕES PARA A COMPREENSÃO DA PRODUÇÃO ARTÍSTICA

Enunciada a partir da apercepção criativa, a criatividade vem a ser uma expressão da ideia de que a vida convém a ser vivida, quando dela obtemos uma concepção subjetiva dos elementos objetivos da realidade externa, revelando um estado que, afora o indicador de saúde, sinaliza que “aquele que é está vivo” (WINNICOTT, 1970/2005). Em sua forma elementar, a criatividade não corresponde, necessariamente, à produção artística aclamada. É conspícuo que a pintura, a música, a escultura, a literatura e as demais artes podem ser expressões criativas que advêm da apercepção; no entanto, para o estudo dos princípios que nos levam a “saber sobre o que versa a vida”, o que ganha destaque é o viver criativo do sujeito comum, quando nele se fazem presente uma capacidade cerebral razoável e uma posição ativa diante das demandas do cotidiano, tal como sublinhado por Winnicott (1971/1975).

Se partirmos para uma investigação dos estádios iniciais da vida do sujeito, quando o lactente esteve imerso na dependência absoluta, veremos que a capacidade de criar o mundo no caminho da independência está intrinsecamente relacionada às provisões ambientais suficientemente boas dispensadas pela mãe, como visto até aqui. Em Vivendo de modo criativo, Winnicott (1970/2005) afirma que esses cuidados iniciais permitem a continuidade do gesto espontâneo criativo durante a vida do sujeito, sendo a base para um colorido especial que é atribuído por ele aos objetos do mundo, vendo-os como se fosse a primeira vez.

A premissa para a criatividade, então, vem a ser o sentimento de existência manifestado quando as tarefas da mãe suficientemente boa começam a angariar a integração, a personalização[4] e as relações objetais (Winnicott, 1971/1975), pois:

O bebê normal precisa crescer em complexidade e tornar-se um ‘existente’ estabelecido, para que possa experimentar a procura e o encontro de um objeto como um ato criativo [...] A origem [da criatividade], portanto, é a tendência geneticamente determinada do indivíduo para estar e permanecer vivo e para se relacionar com os objetos que lhe surgem no caminho durante os momentos de obter algo, mesmo que seja da lua (WINNICOTT 1970/2005, p. 33. Grifo nosso).

Nessa perspectiva, o bebê vai se dando conta de que o mundo existe independente dele, fazendo emergir a crença numa ilusão de onipotência, a qual se constitui como fundante da capacidade para uma relação saudável com a realidade externa, sendo imprescindível para a manutenção do sentimento de estar vivo, insígnia para a criatividade:

[...] a ilusão de onipotência do início perde gradualmente o teor onipotente, característico da fase de dependência absoluta, e se transforma, aos poucos, numa crença [...] é através dessa crença fundamental que o homem comum e saudável se sente real, habita num mundo real e pode relacionar-se com a realidade externa sem perda do sentido pessoal da existência (DIAS, 2011,
p. 52).

            Acreditamos que o jovem Werther é um grande exemplo para a predominância desse sentimento de existência que o exorta na operação de criar o mundo, relatando-nos a experiência de apercepção e criatividade para além de sua produção artística (Winnicott, 1971/1975), fortalecendo o sentido de que, exercendo sua imaginação, ele vive um “si mesmo”:

Estou só e abandono-me à alegria de viver nesta região criada para as almas iguais à minha. Sou tão feliz, meu amigo, e de tal modo mergulhado no tranquilo sentimento da minha própria existência, que esqueci a minha arte. Neste momento, ser-me-ia impossível desenhar a coisa mais simples; e, no entanto, nunca fui tão grande pintor (GOETHE, 1971, p. 14).

            Em termos do uso do espaço potencial, onde se localiza a atividade cultural como desdobramento do gesto espontâneo criativo (Winnicott, 1971/1975), as diversas formas de expressão artística podem também habitar este campo. Muito embora Winnicott não tenha dedicado seu tema da criatividade exclusivamente aos aspectos ligados à obra de arte, encontramos em seus escritos alguns excertos acerca das produções artísticas, sobre os quais podemos esboçar uma relação com o viver criativo.

            Em Comunicação e falta de comunicação levando ao estudo de certos opostos, Winnicott (1963/1983) afirma que a arte constitui uma dimensão especial da comunicação, na qual coadunam as comunicações explícita e silenciosa, quando esta última compõe um estado saudável de solidão, auxiliando no sentimento de sentir-se real - base da criatividade - a partir do espaço intermediário da experiência. É nesse ínterim que o artista deseja se comunicar, apesar de renunciar à decifração de sua obra pelos apreciadores:

No artista podemos detectar, acho eu, um dilema inerente, que pertence à coexistência de duas tendências, a necessidade urgente de se comunicar e a necessidade ainda mais urgente de não ser decifrado. Isso nos faz contar com o fato de não podermos conceber o artista chegando ao fim da tarefa que ocupa sua natureza total (WINNICOTT, 1963/1983, p. 168).

            Por esse nível, podemos indicar um caráter de extensão da criatividade na produção artística enquanto perdurar, no artista, um sentimento de realidade e a apercepção criativa com relação às coisas do mundo. O sentir-se real envolve algo a mais do que a existência, relacionando-se a uma maneira de se relacionar com os objetos do mundo e existir como um si mesmo, bem como ter um self que permita o estado de relaxamento (WINNICOTT, 1971/1975). Conservar esse aspecto da vida imaginativa é, portanto, elemento mantenedor da criatividade: “Em algum lugar do esquema de coisas pode haver espaço para que alguém viva criativamente. Isso envolve preservar algo de pessoal, talvez algo de secreto, que é inconfundivelmente você mesmo” (WINNICOTT, 1970/2005, p. 34).

Insta salientar que essa necessidade de não decifração infere que, além de haver um núcleo do eu não comunicável e digno de ser preservado (Winnicott, 1963/1983), pode ocorrer uma abertura ao viver criativo com relação aos apreciadores de uma determinada obra de arte, isto porque, asseguradas as conquistas das fases iniciais do desenvolvimento emocional, esses sujeitos poderão ver a obra como algo novo, criando a seu modo o que o artista concebeu.

            Decorre disso o encantamento advindo da leitura de Os sofrimentos do jovem Werther, por exemplo, caso possamos utilizar nossa capacidade de criar o mundo para tecer um significado peculiar ao que se nos apresenta como arte. Por este motivo, além de ser um sustentáculo para a comunicação, o texto emerge, para os leitores, como objeto do mundo a ser apercebido e criado:

A solidão, neste verdadeiro paraíso, é um bálsamo para o meu coração sempre fremente, que transborda ao calor exuberante da primavera. Cada árvore, cada sebe forma um tufo de flores, e a gente tem vontade de transformar-se em abelha para flutuar neste oceano de perfumes e deles fazer o único alimento (GOETHE, 1971, p. 14).

            Concordamos que a arte pode ser uma manifestação do sentimento de realidade e da criatividade, fatores substanciais para o alcance do self; todavia, como argumentado por Winnicott, nem todo artista tem êxito nessa busca, pois:

O eu (self) realmente não pode ser encontrado no que é construído com produtos do corpo ou da mente, por valiosas que essas construções possam ser em termos de beleza, perícia e impacto. Se o artista através de qualquer forma de expressão está buscando o eu (self), então pode-se dizer que, com toda probabilidade, já existe um certo fracasso para esse artista no campo do viver geral criativo. A criação acabada nunca remedia a falta subjacente do sentimento do eu (self) (WINNICOTT, 1971/1975, p. 90).
           
             O que está em falta para que tenha surgido este óbice no encontro com o self? Vimos que ele é possível quando há um sentimento de realidade. Sem este sentimento, a existência passa a ser encarada como algo sem significado e um vazio pode despontar, levando o sujeito a um estado semelhante à apatia, onde tanto faz continuar ou desfalecer. Indo de encontro à criatividade, Winnicott (ibid.) sustenta que essa falta de sentido caracteriza um estado de submissão à realidade externa, em que o sujeito vê o mundo apenas na direção de precisar adaptar-se a ele.

            Com Werther, acompanhamos sua exaltação criativa, mas também o vemos perder o significado da vida como digna de ser vivida quando é impossibilitado de consumar seu amor por Carlota, por causa do casamento dessa com Alberto. Devotado unicamente a esta paixão, Werther vai tendo arrancadas todas as pequenas esperanças concedidas no cotidiano, pois até as visitas à sua amada passaram a ser controladas por Alberto. Se antes tinha uma relação de criatividade com o mundo, passou a não mais enxergar sentido no existir: “Sou muitíssimo desgraçado, Wilhelm! [...] Não tenho mais imaginação, nem sentimento da natureza, e os livros só me inspiram tédio. Tudo nos falta quando estamos em falta conosco mesmos!” (GOETHE, 1971, p. 85). E completa, mais adiante: “Falta-me o fermento que dava sabor à vida, o encantamento que me despertava alta noite; aquilo que pela manhã me arrancava ao sono desvaneceu-se para mim” (ibid. p. 85).

            Dessa maneira, vemos que, assim como assinalado por Winnicott (1971/1975), aquele que experimentou a criatividade de forma suficiente começa a notar a forma submissa com que passou a habitar o mundo. Essa submissão é o que constitui o estado doentio e que:

Em casos graves, tudo o que importa e é real, pessoal, original e criativo, permanece oculto e não manifesta qualquer sinal de existência. Nesse caso extremo, o indivíduo não se importaria, de fato, de viver ou morrer. O suicídio pouca importância tem quando tal estado de coisas está poderosamente organizado num indivíduo [...] (ibid. p. 113).

            Werther não tarda a anunciar que o único fim que vislumbra para seus tormentos é o túmulo e relata: “Só Deus sabe quantas vezes mergulho no sono com a esperança de nunca mais despertar; e, pela manhã, quando arregalo os olhos e torno a ver o sol, sinto-me profundamente infeliz” (GOETHE, 1971, p. 110). Em vista disso, como reflexo do sintoma de uma vida não criativa, a falta de significado para as coisas e o sentimento de que nada mais importa, o jovem Werther dispara um tiro contra a cabeça a fim de encerrar sua condição de sofrimento.

Destarte, ao longo deste trabalho destacamos como o brincar fundamenta a experiência cultural, sendo posicionado no espaço potencial que se coloca entre a mãe e o bebê ao final do estádio da dependência absoluta, graças à confiabilidade gerada pela mãe suficientemente boa, que permite à criança a criação do objeto subjetivo. Assim, imputamos à arte a operacionalização de uma experiência que, longe de ser situada como interior ou exterior, habita o espaço intermediário entre aquilo que é percebido e aquilo que é concebido, sendo uma expressão do viver criativo, que se manifesta como saúde.



 AUTORES

*Daniela Lima de Almeida: graduanda em Psicologia em 6º semestre (Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS). Bolsista de Extensão, financiada pela Pró-Reitoria de Extensão da UEFS, com plano de trabalho intitulado Cinema e Literatura: o papel da cultura na produção de novas formas de subjetivação, dentro do projeto Cinema: Subjetividade, Cultura e Poder (Sala de Cinema). Integrante do Grupo de Pesquisa em Psicanálise de Orientação Lacaniana (GPPOL).

**Matheus Cerqueira Medrado: graduando em Psicologia (6° semestre) na universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Recentemente atuou como bolsista de iniciação científica com o projeto: “As críticas de Axel Honneth às categorias psicológicas nos textos de 1932 a 1935 de Max Horkheimer” dentro da pesquisa: “Psicologia e reconhecimento dos direitos humanos: categorias psicológicas na teoria do reconhecimento de Axel Honneth”.

***Thaís de Almeida Santos: graduanda em Psicologia (6º semestre) na Universidade Estadual de Feira de Santana. Atualmente, é bolsista de iniciação científica na referida instituição com o projeto “A existência para Heidegger e o funcionamento psíquico para Freud: investigações à luz da obra Seminários de Zollikon”, financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb).



Referências Bibliográficas:
DIAS, E. O. A teoria do amadurecimento emocional de D. W. Winnicott. Rio de Janeiro: Imago, 2003.
______. O “brinquedo divino”: a ilusão em Winnicott. In: Sobre a confiabilidade e outros estudos. São Paulo: DWW, 2011.
GOETHE, J. W. (1774). Os sofrimentos do jovem Werther. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
______. (1774). Werther. Abril Cultural, 1971.
ROCHA, M.P. Elementos da Teoria Winnicottiana na Constituição da Maternidade. São Paulo, 2006. 138f. Dissertação de Mestrado – Pontifícia Universidade Católica.
WINNICOTT, D. W. (1987). Os bebês e suas mães. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
p. 04-15.
______. (1970). Vivendo de modo criativo. In: Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 31-42.
______. (1971). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975 (PDF).
______. (1963). O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Porto Alegre: Artmed, 1983.






[1] Apesar de ter familiaridade com o conceito de ego formulado por Sigmund Freud, Winnicott o emprega como uma nomenclatura para uma conceituação distinta, abrangendo duas características centrais: a) o ego como um dos componentes da personalidade, tendendo à integração, sendo, de início, um potencial para o desenvolvimento e necessitando que haja uma estrutura cerebral que administre as experiências organizadamente; b) para que se desenvolva é preciso que haja a presença de um ambiente facilitador.
[2] Diferente de outras abordagens da psicologia, Winnicott emprega o termo self para designar um potencial que está a experimentar a continuidade da existência, angariando, de forma peculiar e a seu tempo, a realidade psíquica e o esquema corporal pessoal.
[3] Dentre algumas, estão a esquizofrenia infantil ou autismo, esquizofrenia latente, desenvolvimento da personalidade falso self e personalidade esquizoide.
[4] A personalização surge como resultado do manejo, característico do handling, configurando a unidade psique-soma.



FEIRA DE SANTANA-BA | nº 3 | vol. 1 | Ano 2016

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