Hannah Arendt e a condição humana da pluralidade

Marcus G. M. Santos*
RESUMO:
Discutimos aqui a noção arendtiana de pluralidade enquanto condição constituinte daquilo que vem a ser a humanidade do humano. A pluralidade como a pensa Hannah Arendt não é meramente uma condição contextual posterior em meio a qual nos inserimos e com a qual lidamos desde a substancialidade de uma “natureza humana” já pré-constituída. É, pelo contrário, um fator determinante mesmo para aquelas atividades que, aparentemente apenas, têm precedência por comporem o domínio interno do indivíduo como p. ex. a vontade e o pensamento. Trata-se então neste escrito de, primeiro, compreender como, para o pensamento político desta autora, a noção de pluralidade (à qual respondemos por meio da atividade humana fundamental da ação) funciona como um baluarte; e, segundo, de perlustrar através das lentes da crítica arendtiana da nossa tradição de pensamento político que possíveis caminhos de pensamento e ação se abrem para nós em meio ao mundo em que nos toca viver, suas crises e suas catástrofes em curso. 

PALAVRAS-CHAVE: pluralidade, política, condição humana, singularidade, Hannah Arendt. 

"Não almejar nem os que passaram nem os que virão. Importa ser de seu próprio tempo".
                                                                                                                          Karl Jaspers


1. INTRODUÇÃO

            Se levamos a sério as supracitadas palavras de Karl Jaspers, que não atoamente são aquelas escolhidas por Arendt para abrir As origens do totalitarismo (2012), podemos talvez vislumbrar, como é típico da função exercida por epígrafes, pela fresta intuitiva de uma porta entreaberta, a dimensão de algo que ainda não compreendemos em toda sua magnitude. A saber, no contexto aqui em jogo: a profunda atualidade do pensamento de Hannah Arendt, sua  diligente preocupação, ainda quando envolvida em investigações de cunho metafísico, com o rastreamento dos problemas e acontecimentos de nossa era e de nosso mundo. 

            Neste sentido, fazer o exercício espiritual de pensar com ela a condição humana; o trabalho, a obra e a ação; a natalidade e a mortalidade; a vida, o mundo e a pluralidade (objeto, mais especificamente, deste escrito); deve sempre – caso importe, como acreditamos importar, fazer jus ao pensamento e a obra da autora em questão – ter como chão onde firmamos os pés e realidade à qual nos reportamos, o mundo presente onde de fato existimos e apenas em vista do qual o passado é relevante e o futuro horizonte.

            Cabe ressaltar ainda, de antemão, que um aspecto dos mais importantes para a arquitetura do pensamento arendtiano é sem dúvida a noção de que a nossa tradição se nos apresenta com o fio condutor roto. Nas palavras do poeta francês René Char que aparecem como epígrafe da coletânea de ensaios Entre o passado e o futuro (2012): “nossa herança não é precedida por nenhum testamento”. O fato é que para Arendt nos encontramos num momento límbico entre um passado que nos lega categorias de pensamento já sem força testamental e um futuro, portanto, sem perspectiva. Se, por um lado, a situação é amplamente desesperadora e a reação mais comumente adotada pareça ser a de agarrar-se a qualquer pedaço da tradição que apesar de em desmoronamento nos pareça mais solido relativamente aos demais; por outro, são particularmente nesses momentos que a atividade de pensar emerge como um apelo urgente não mais apenas para filósofxs e intelectuais em geral, mas para toda e qualquer pessoa aturdida pelo desmantelamento das “verdades” que lhe serviam de referência para pensar e agir no mundo.

            De tal forma que, a nossa esperança aqui ao propormo-nos a apresentar e discutir a noção de pluralidade como a pensa Arendt, tem como pressuposto a crença, que pretendemos justificar ao longo do texto, de que a noção arendtiana de política, centrada na condição humana da pluralidade à qual respondemos com a atividade fundamental da ação, é de algum modo propicia e frutífera para que reflitamos sobre o nosso atual estágio civilizacional moderno e suas consequências para a condição humana e o modo próprio que temos de a ela responder. Trata-se, portanto, assim como afirma Hannah Arendt no prólogo de A condição humana (2014) sobre o que viria a seguir, de “pensar o que estamos fazendo”.

            Tudo isso dito e as considerações preliminares feitas, permitam-nos agora passar mais propriamente ao assunto que nos traz aqui à baila, que nos faz, como diria o professor Emmanuel Carneiro Leão, participar da “capoeira do pensamento”.

            Nossa problemática central gira em torno da noção de pluralidade enquanto condição humana fundamental tanto à constituição quanto à compreensão daquilo que venha a ser a a humanidade do humano, o modo de ser próprio deste ser que somos. O caminho, entretanto, a ser trilhado entre a noção de pluralidade e a de humanidade do humano perpassa, ou melhor, se funda centralmente, uma vez que é esta atividade humana o fenômeno que responde apropriadamente à condição da pluralidade, no estudo e compreensão da ação.  

            Assim, pois, o desenvolvimento central do texto perpassará: em 2. (A condição humana e a atividade da ação), por avaliar dentro do contexto mais amplo da condição humana a relação entre a atividade da ação e sua condição específica, a pluralidade; em 3. ( Essa “paradoxal pluralidade de seres únicos”), por melhor explicitar os pormenores da noção de pluralidade humana como a entende Hannah Arendt; e em 4. (O grande teatro das narrativas humanas), pelo enfrentamento da problemática relativa a como, por que meios, a ação humana, ao constituir um “entremundo” intersubjetivo intangível e pluralmente relevante via a capacidade narrativa, logra instaurar sentido e fazer-se trampolim para toda sorte de atividades intelectivas. Sendo pois, esta atividade, a pedra de toque para a distinção daquilo que é o modo de ser próprio do humano, sua humanidade.


2. A CONDIÇÃO HUMANA E A ATIVIDADE DA AÇÃO

            De acordo com Hannah Arendt, os seres humanos, desde que temos noticias de sua trajetória, têm estabelecido neste planeta certas atividades fundamentais. Tais atividades – apesar de não serem fixas nem imutáveis, mas terem, pelo contrário, ao longo do percurso histórico do ocidente, sofrido diversas transformações e inversões de hierarquia – respondem, entretanto, a certas condições. Condições que, conquanto não sejam também fixas e imutáveis ao ponto de darem corpo a uma ideia justificada de “natureza humana” como foi o intento metafísico tradicional inverso de derivar tais condições de alguma natureza tal imutável – dos antigos aos modernos –, permanecem com relativa estabilidade ao longo da existência humana neste planeta, urgindo para si respostas constantes e condizentes para com seu apelo. É mediante uma tal consideração que é possível falar, de acordo com o pensamento de Hannah Arendt, de uma condição humana. E é o fato de responderem a tal condição que nos permite dar a tais atividades o epiteto de fundamentais. 

            As condições as quais nos referimos são, entre outras, pois, sem pretensão de esgotamento: o próprio planeta Terra, até onde sabemos o único ambiente capaz de gestar e suportar, sem esforço ou artifício, em um nível tal de complexidade orgânica a vida e a experiencia humanas de mundo; a natalidade, o fato de que constantemente novos seres humanos, “recém-chegados”, nascem para a vida e para o mundo; a mortalidade, antigamente talvez a mais profundamente reconhecida destas condições, que traçava, desde ao menos a Grécia do período homérico, a linha distintiva tanto entre seres humanos e deuses, quanto entre os seres humanos e a natureza terrena; a vida mesma em sua penosa urgência material; o mundo em sua mundanidade relativamente durável; e a pluralidade característica de seres únicos e biograficamente identificáveis no tempo.

            É, fundamentalmente, a esta última condição, o fato de que não o ser humano, mas os seres humanos no plural vivemos na terra e habitamos um mundo comum (ARENDT, 2014, p. 8), a que respondemos quando, por meio de palavras e atos, discurso e ação, tomamos iniciativa e, ao atuarmos em meio publicidade do mundo, nos revelamos enquanto agentes.

            Buscaremos então refletir aqui sobre este fato a muito negligenciado: de que somos, enquanto seres humanos, ontologicamente condicionados pela pluralidade de nossa existência. Essa pluralidade, contudo, se apresenta em nós constelada por estrelas únicas e de brilho singular. Pretende-se, portanto, mais que nada, elucidar as peculiaridades da condição humana da pluralidade e sua relação com a revelação do agente através do discurso e da ação, compreendendo assim, nesse aspecto específico – nem de longe suficiente para entendermos em profundidade a própria atividade da ação em toda sua importância para a teoria política e filosófica desta autora –, o mais fielmente possível a leitura arendtiana dessa inalienável atividade humana à qual a nossa tradição ocidental de pensamento político, com raríssimas exceções, tão danosamente virou as costas.

            O milagre humano, afinal, o fato de que nossa vida, nosso mundo, nossa existência, é capaz de ter sentido antes que este possa ser colhido em pensamento, advém, em última instância, da capacidade que temos de agir e expressar-nos via discurso. E é mediante ação e discurso, portanto, que rompemos com os automatismos e condicionamentos inerentes à natureza e ao mundo físico. Para tanto, dependemos, como veremos, sobretudo, da presença de outros seres humanos. Para nós, por conseguinte, seres plurais por excelência, Ser corresponde a Aparecer; e a realidade só nos é concedida via o mundo e a pluralidade de agentes e de seus pontos de vista.


3. ESSA “PARADOXAL PLURALIDADE DE SERES ÚNICOS”

            Para Arendt, “a pluralidade é a lei da Terra”(ARENDT, 1981, p. 19) e “a Terra é a própria quintessência da condição humana”(ARENDT, 2014, p. 2). Duas afirmações das quais o sentido se enraíza na própria experiencia que o ser humano faz de si mesmo, de outros, do mundo em sua mundanidade e da relação íntima, constitutiva, e até o momento irrevogável, que entabula com a natureza terrena em sua totalidade. Em última análise, todas as atividades humanas, mesmo aquelas de um caráter fenomênico interno como o pensar, ainda que não sejam diretamente condicionadas por este fator, guardam alguma relação com a condição da pluralidade.

            Assim, quando consideramos a pluralidade do ponto de vista da existência humana, nos deparamos com as mais fortes consequências dessa realidade. O fato de que os seres humanos não são meramente distintos uns dos outros, mas que têm a capacidade de distinguirem ativamente a si próprios é um dos condicionantes da existência humana. De forma que, para citar alguns exemplos particulares, os seres humanos não vivem na Terra e habitam o mundo da mesma maneira que o fazem os “bem-te-vis”, os pés de “capim limão” ou as pedras de ametista.

            É, de fato, verdade que não há no mundo duas pedras de ametista completamente iguais, nem tampouco duas rosas idênticas, mas tal distinção entre seres do mesmo tipo ou espécie é bastante diversa daquele modo de singularidade propriamente humano. Enquanto as distinções do primeiro tipo são, ou quantitativas, relativas à proporção compositiva dos seres inorgânicos, ou dadas mediante qualidades objetivas, observáveis, passíveis de classificação, como no caso dos seres vivos em geral; as que dizem respeito à pluralidade humana, apesar de abarcarem também em si tais distinções qualitativas, se expressam de maneira “indeterminável” e “incristalizável” em sua essência através do discurso e da ação em meio a publicidade do mundo humano comum.

            Diante dessa possibilidade ativa de autodiferenciação, aquela mera distinção objetiva dos minerais, vegetais e animais em geral, é em grande medida insuficiente para compreender em seu âmago a pluralidade humana.

            Ao lermos em suas minúcias a seção 24 de A condição humana, podemos notar que Arendt distingue entre três grandes níveis em que se mostra na terra tal lei da pluralidade. O mais amplo  deles, característico de tudo aquilo que existe, é a alteridade, por meio da qual é possível dizer que nem mesmo a multiplicidade inorgânica de um mesmo objeto seja idêntica entre si – não existem na Terra duas coisas completamente idênticas entre si. O nível que se segue, em ordem decrescente de amplitude, é a distinção característica da pluralidade existente entre a vida orgânica, característica responsável pelo fato de que, como já mostramos acima por meio de exemplos, mesmo dois seres pertencentes a uma mesma espécie podem ser distinguidos entre si. A pluralidade, porém, trazida ao nível da experiência propriamente humana neste planeta nos fala de uma singularidade e unicidade ativa dos indivíduos a ser revelada através do discurso e da ação. E assim:

No homem, a alteridade, que ele partilha com tudo o que existe, e a distinção, que ele partilha com tudo o que vive, tornam-se unicidade, e a pluralidade humana é a paradoxal pluralidade de seres únicos (ARENDT, 2014, p. 220).

            Se, portanto, o discurso e a ação, palavras e atos, são os modos propriamente humanos de responder à uma condição tal de pluralidade, é através destas atividades que o “quem” do agente aparece, é “revelado”, em meio à trama de ações e palavras que conformam o que Hannah Arendt chama de a “textura dos assuntos humanos”. Precisássemos, pois, distinguir o mais originariamente possível os animais em geral dos seres humanos, deveríamos dizer que estes últimos são, ademais, nos termos da pluralidade estabelecidos até aqui, seres de ação. E isso porque, por mais coletivo que possa parecer o comportamento de certos seres não-humanos, não se tece entre eles, a partir de seus atos singulares, um “entremundo”  próprio, onde as coisas ganham sentido comum e os agentes correm o risco e colhem a potência, intrínsecos e imprevisíveis, de ter ativamente o seu “quem” revelado.

            Se nos atemos, porém, somente ao aspecto, inerente a esta pluralidade, da diferença, teremos apenas uma parte dessa dinâmica, uma vez que, por outro lado, é a igualdade, mediante a qual dizemos “seres humanos”, que nos dá o próprio esteio mútuo onde uma possível relação de comunicabilidade, entendimento e gestação de sentido comum pode se dar. Neste sentido, um dos aspectos mais marcantes da complexidade da condição humana é certamente o caráter “paradoxal” dessa “pluralidade de seres únicos”, desse “viver como um ser distinto e único entre iguais”(ARENDT, 2014, p. 223).

            Tal paradoxo, permanente até enquanto não venha a transformar-se radicalmente a própria condição humana, é a pedra de toque para a compreensão da íntima relação entre discurso e ação, assim como para o entendimento do agente em seu aparecimento revelador e suas capacidades de iniciador de novos processos.

            A ação humana só tem sentido pluralmente relevante se revela um agente a quem se lha atribui. Para que tal agente venha a ser revelado é preciso que para além de um “realizador de feitos” seja também um “pronunciador de palavras”. É, pois, o discurso que ilumina os feitos, aferindo-lhes um sentido comum, e nele, portanto, que a ação ganha relevância política e o agente se revela. A singularidade do agente humano precisa então, para tornar-se pública, do discurso. É através dele que, para além de certas identidades físicas singulares observáveis (tonalidade da pele e dos olhos, altura, timbre da voz, etc) – um “quê” – e modificáveis é verdade, mas originalmente dadas, uma outra dimensão de identidades, pessoais e únicas –  seu “quem” – emergem do privado ao público, aparecem.

            O discurso, apesar de contar entre seus empregos corriqueiros, a utilidade prática comunicativa, seu caráter informativo, não tem aí sua residencia mais cara, nem é para tanto o melhor instrumento. Para tal, nos mostra Arendt, seria deveras mais proveitoso, devido à eficiência da precisão, fazer uso de uma linguagem de signos, como é o caso já na matemática e em grande parte um direcionamento comum nas ciências[1]. Do mesmo modo, no que tange à vita activa, âmbito das atividades “exteriores” do indivíduo, as outras atividades humanas fundamentais, por mais que façam, por vezes, uso do discurso, prescindem dele. De forma que, sendo a ação a “única atividade que ocorre diretamente entre os homens, sem a mediação das coisas ou da matéria”(ARENDT, 2014, p. 8), “nenhuma outra realização humana precisa tanto do discurso quanto a ação”(ARENDT, 2014, p. 224).
            E portanto:

A ação e o discurso são tão intimamente relacionados porque o ato primordial e especificamente humano deve conter ao mesmo tempo, resposta à pergunta que se faz a todo recém-chegado: “Quem és?”(ARENDT, 2014, p. 223)

            É, pois, fundamentalmente do fato da pluralidade que emanam a ação e o discurso humanos. É única e exclusivamente em meio à publicidade e à visibilidade constituída pelo espaço da aparência que se forma do estar junto dos seres humanos que os nossos ditos e feitos podem colher sentido da experiência de serem vistos e ouvidos e darem corpo às estórias que além de fazerem surgir, situado em nós, um “quem”, são capazes de engendrar no mundo a novidade de que somos capazes pelo simples fato de termos nascido.

            Dessa forma, o poder humano político, assim como o espaço da aparência, mantêm sempre seu caráter potencial, pois existe enquanto possibilidade onde quer que os seres humanos se congreguem, mas mostra sua efetividade apenas onde esta reunião se faz sentir na modalidade da ação e do discurso, e de tal forma que “as palavras não sejam vazias”, usadas para ludibriar, e “os atos não sejam brutais”, usados para violentar e destruir. Atos e palavras não podem divorciar-se, aqueles devem sempre ser o engendramento da realidade que estas vêm revelar.

            Não é, portanto, sempre que existe uma pluralidade humana e consequentemente um espaço da aparência que a ação humana “mostra as caras”. A existência de um tal espaço da aparência nos dá sim a ação em potência, mas sua atualização depende intrinsecamente de uma igualdade de possibilidades participativas dos agentes envolvidos que aos nossos ouvidos já calejados por um passado histórico e um presente político marcado por relações amplas e diversas de opressão e índices exorbitantes de desigualdades socioeconômicas soa, não sem razão, extremamente irrealista. Ergue-se então um primeiro problema: não seria a descrição arenditana da ação, apesar de muito belamente centrada na pluralidade da existência humana, toldada pela incompatibilidade de suas exigências com a nossa desigual estrutura social? Queremos argumentar que não, mas devemos nos reportar mais adiante a este problema. Busquemos agora ainda uma melhor compreensão da dimensão própria desse espaço da aparência que é para Arendt palco da individualidade humana e espaço próprio da política a partir de sua capacidade ilimitada de produzir relações e narrativas.


4. O GRANDE TEATRO DAS NARRATIVAS HUMANAS

            Gostaríamos de fazer notar a grande espontaneidade presente no conceito de ação arendtiano – e o mesmo vale para o discurso, que não deixa de ser um modo do agir humano, e de fato o mais comum, uma vez que, a grande maioria das ações são realizadas na forma de discurso. A gratuidade, pois, espontânea da ação fica clara na distinção da autora entre as três formas tipicamente humanas de experienciar a pluralidade, a saber: estando a favor (“pró”) dos outros, estando “contra” eles, ou estando simplesmente com as pessoas. Esta última é a única que suporta a existência de ação no sentido aqui empregado. É a única, portanto, em que a pluralidade é realmente levada em conta em seus múltiplos pontos de vista. Isso porque as outras duas disposições para com a pluralidade citadas aqui, são em verdade formas extremamente solitárias de existência imediata entre seres humanos – pois são várias as formas em que se pode estar só, e muitas vezes nos encontramos extremamente desamparados em meio à maior das multidões. A primeira delas, característica do agente realizador de boas obras, o “benfeitor”, exige deste uma negação do si-mesmo (self), um anonimato, uma recusa a revelar sua pessoa, seu “quem”. A segunda, típica do criminoso, ou “malfeitor”, exige mais ainda do agente um esgueirar-se e esconder-se da visibilidade do espaço público que também rechaça a experiencia própria da pluralidade e da revelação do agente. É, então, apenas estando com os outros, “no puro estar junto dos homens”, “nem “pró” nem “contra”” eles, e, portanto, espontaneamente, que “essa qualidade reveladora do discurso e da ação passa a um primeiro plano”(ARENDT, 2014, p. 225).

            São essas as condições sem as quais não há revelação do agente. Sem as quais o discurso se torna “mera conversa”, ilusória ou propagandística, ou ainda, como vimos anteriormente, informação imprecisa, deixando de colher o sentido da pluralidade do intercurso humano; e a ação perde espaço para a violência muda. Em todos estes casos o que se perde é o caráter espontâneo do agir e falar humanos, pois o discurso tomado como um meio para determinado fim ou bem é um instrumento impreciso que pode ser substituído por uma linguagem de símbolos mais unívocos, ou, por mais eficiente que seja enquanto propaganda, nada revela, mas pelo contrário, esconde e distorce; e a ação é tão ineficiente como meio para fins práticos que é nestes casos sempre preterida seja em relação à violência muda e tirânica, seja em relação aos aparatos burocráticos. Nos diz Arendt:

Sem o desvelamento do agente no ato, a ação perde seu caráter específico e torna-se um feito como outro qualquer. Na verdade, passa a ser um meio de atingir um fim, tal como a fabricação é um meio de produzir um objeto. Isso acontece sempre que se perde o estar junto dos homens (…) (ARENDT, 2014, p. 225).
           
            O ponto crucial da distinção está em que a ação e o discurso humanos – diferentemente do trabalho, que tem como ambiente de inserção a natureza terrena e produz bens de consumo, fúteis mas relativamente sólidos e observáveis durante seu curto aparecimento; e da obra, que tem como ambiente característico um espaço-entre [in-between] mundano de coisas fisicamente interpostas entre os seres humanos e produz objetos de uso, estes propriamente tangíveis – não nos dá nenhum objeto de consistência e solidez observável, mas apenas algo de extrema intangibilidade. A ação e o discurso têm, em falta de uma palavra mais adequada, como “resultado”, apenas estórias, passíveis de serem contadas e até mesmo reificadas, mas que apesar de terem majoritariamente como referência o espaço-entre mundano de coisas que “inter-essam” [inter-est] mutuamente os agentes em questão, habitam e co-constroem em verdade uma terceira ambiência, intangível e de consequências incertas: a complexa teia de relações humanas. Existem, pois, para Hannah Arendt, além, obviamente, da Terra, que não está aqui em questão, dois outros tipos de espaço-entre nos quais se desenrola a existência humana: um espaço-entre tangível de coisas mundanas e por isso objetivo; e um outro espaço-entre intangível e subjetivo, pois inter-relaciona por meio das estórias encenadas sujeitos humanos.

            Tais estórias, que se mostram muito mais àquele que observa do que àquele que age, formam, retrospectivamente reunidas, a estória de vida de determinada pessoa, sua biografia, da qual foi o ator, porque agiu e foi orador de si mesmo. Essas estórias, entretanto, não possuem um autor. Se o tivessem, então minha pessoa seria algo do qual eu disporia como uma qualidade objetiva, e isso significaria que eu poderia desimplicadamente inventar ou criar, e este parece ser o sentido que se deu à liberdade em toda a tradição hegemônica de pensamento político, minha própria estória de vida. Para tanto, é evidente que o sujeito teria que ser algo alijado da Terra, do mundo e da “teia de relações humanas”, um ego transcendente, substancia pensante por natureza, um puro cogito como queria Descartes, ou ainda uma alma racional ideal presa ao corpo como queria Platão e mesmo toda a tradição medieval hegemônica. Para Arendt, estas não passam entretanto de tentativas filosóficas de, por meio da adoção de uma lógica própria à atividade do artífice, afastar do âmbito dos assuntos humanos, da política, sua intrínseca incerteza – mas tratar disso exigiria sem dúvida um outro trabalho e reflexão mais específicos.

            Aqui, o que vale a pena destacar é a diferença entre uma estória inventada, “criada” [made up], obra de determinado autor; e as estórias reais resultantes da ação e do discurso humanos, encenadas pelos atores no fluxo vivo do agir e falar da vida real, guardando sempre algo de incerteza, imprevisão e improviso. Não é, mostra Arendt, por acaso que a arte grega do drama (do verbo grego δρᾶν [dran], ou no nominativo presente singular δράω, “agir”) tragediográfico seja a melhor forma de representar, “reificar”, não através do coro, mas da imitação [μίμησις (mimẽsis)] das estórias, a ação, dando forma ao “quem” dos, sob esta condição, ditos personagens. É que a “essência viva da pessoa humana” não fica bem representada apenas na letra morta do roteiro, e é por isso que “a peça teatral só adquire plena existência ao ser encenada no teatro” (ARENDT, 2014, p. 234).

            Há, portanto, considerados estes pontos, uma frustração fundamental inerente ao campo da ação humana relacionada ainda com o tipo de revelação do agente que está aqui em jogo. Se por um lado a ação deve, para ter relevância plural, revelar o agente, por outro essa revelação se dá de forma extremamente intangível. A “essência viva da pessoa humana” não se dá a conhecer com a mesma solidez dos objetos do mundo, e isso porque esse “quem” que a pessoa é, se faz e habita, como vimos, não o mundo objetivo das coisas, mas cada ato e cada palavra vêm a fazer parte de uma teia de relações intersubjetivas intangível preexistente e na qual cada ação possui uma relação em rede, um verdadeiro “enredo”, portanto, no qual se enredam, inserindo-se com palavras e atos, e mutuamente influenciando suas estórias de vida, os mais diversos agente singulares. A frustração na revelação consiste em que por mais exaustivamente que tentemos dizer com palavras “quem” alguém é, devido à generalidade própria da linguagem humana, que opera por distinções e noções comuns, e à contrastante unicidade característica destes seres, o fracasso de uma tal empresa, caso esteja em jogo aqui uma definição fixa e estável, é cristalino.   

            É ainda oportuno ressaltar, com base no que vimos, a grande peculiaridade deste conceito de ação, muito mais restrito do que aquele a que estamos acostumados a usar cotidianamente. Feitos e ações não são para Arendt exatamente a mesma coisa. Todas as ações são feitos, mas, no entanto, a recíproca não é verdadeira. As ações, em meio ao universo conceitual arendtiano, são um tipo específico de feito, realizado diretamente entre seres humanos, no plural, e o discurso um dos modos desse agir humano, onde ao mesmo tempo fica exposto, com toda a carga ambígua do termo, o sujeito[2].

            Assim:

Embora todos comecem a própria vida inserindo-se no mundo humano por meio da ação e do discurso, ninguém é autor ou produtor de sua própria estória de vida. Em outras palavras, as estórias, resultado da ação e do discurso, revelam um agente, mas esse agente não é nem autor nem produtor. Alguém as iniciou e delas é o sujeito, na dupla acepção da palavra, seu ator e seu paciente, mas ninguém é seu autor (ARENDT, 2014, p. 230).

            O fato é que a ação humana se insere através das relações que produz entre agentes numa cadeia de ações ilimitadas e em rede, onde a imprevisibilidade e a irreversibilidade ameaçam qualquer empreitada. Um verdadeiro “efeito borboleta” dos assuntos humanos está em jogo, pintado, contudo, pelas trágicas consequências que pode vir a ter, com a tonalidade sombria da negatividade do adágio popular conhecido como “a lei de Murphy”.  

            Vemos, então, como a ação aqui descrita coloca o agente expressamente como um refém de si mesmo, opacas que são as consequências de seus atos para si próprio. Ergue-se parece um segundo grande problema: não seria demasiado perigosa a ação pensada em meio a tamanha espontaneidade e imprevisibilidade? Muitos perguntarão: a quem responsabilizaremos pelos erros que possam brotar dessa ação plural?


5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

            Até aqui, pudemos fixar talvez que Hannah Arendt nos apresenta um conceito de ação altamente centrado na noção de pluralidade. Ademais, que tal pluralidade não se reduz à uma multiplicidade uniforme, mas compõe-se de seres únicos, singulares. E assim, que a singularidade humana não é algo pré ou antipolítico, resguardada no espaço privado, mas que, pelo contrário, é modo próprio da pluralidade humana e constituinte, em sua revelação no espaço da aparência, do “entremundo” subjetivo dos assuntos humanos.

            Assim, a ação e o discurso, os dois grandes pilares do exercício político, são mais que nada respostas a essa esfera da condição humana que nos coloca em contato direto com outros seres tão capazes de agir e desencadear processos novos e ilimitados quanto nós próprios.

            Retomemos, pois, o primeiro problema com o qual nos deparamos no meio do percurso: não seria a descrição arenditana da ação toldada pela incompatibilidade de suas exigências com relação à nossa desigual estrutura social?

            Para uma resposta a tal questionamento precisamos antes ter em mente que quando Arendt busca fazer a descrição fenomenológica da atividade humana da ação esta é parte de uma descrição mais ampla da vida ativa do indivíduo humano em suas três grandes dimensões, as relações que entabula biologicamente com a natureza; as relações que estabelece com os artefatos, instrumentos e objetos de uso; e as relações que diretamente perfazem-se entre seres humanos. Ora, essas três dimensões existem cristalinamente na existência cotidiana de cada um de nós, e é à última delas a que diz respeito a ação.

            A condição da pluralidade é, portanto, um fato, e seja por meio de uma ação plural onde os agente estão em par de igualdade, seja de outra forma qualquer, urge de nós uma resposta. O que sem dúvida tem o poder de embaçar a boa visibilidade da questão é que, muito por causa do segundo problema que nos assola (a grande ilimitabilidade, impresciência e irreversibilidade dos resultados dessa atividade), decidimos historicamente optar pela redução drástica do poder da ação humana. Se isso foi feito consciente ou inconscientemente é irrelevante ao menos para o escopo deste escrito.

            A redução a que nos referimos se deu, numa modalidade mais tradicional, por meio da substituição da ação pela fabricação no âmbito político (o que significa traçar uma verticalidade estabilizadora em meio às relações humanas, a típica relação governante – governados); ou ainda, mais contemporaneamente, a partir da adoção de fins últimos econômicos e vitalistas, tidos por inquestionáveis, para as decisões tomadas no domínio público. Tratamos, assim, seja por sincero medo das consequências da ação livre, seja por imiscuídos interesses aristocráticos, tradicionalmente e contemporaneamente, a ação, respectivamente, ou a partir do modelo da obra, pensando os corpos políticos e as relações humanas como um produto acabado da maestria de um profissional apto; ou, ademais e não por substituição, através de lentes naturalistas características da atividade humana do trabalho. Essa é, linhas gerais e no que tange aqui os aspectos diretamente relacionados com as questões que abordamos, a leitura que faz Arendt das transformações modernas da hierarquia das atividades humanas no âmbito da vida ativa quando nos fala em A condição humana de uma vitória do homo faber (o ser humano enquanto um fabricante), seguida de uma ascensão do animal laborans (o ser humano enquanto parte da natureza terrena)[3]
 
            Não nos é possível tratar aqui das consequências de todo esse processo de negação da ação humana política livre (e consequentemente da pluralidade!), mas podemos quiçá indicar comparativamente as formas de contraponto às quais assinala Hannah Arendt. Ora, não nos é permitido manter ao mesmo tempo a liberdade política (oposta a noção de soberania!)[4], relações horizontais, e não arcar ao menos em certa medida com a incerteza do futuro e a irreversibilidade do passado no âmbito dos assuntos humanos. Mas, temos no próprio âmbito da ação, sem precisarmos recorrer a expedientes daninhos à existência humana plural, duas capacidades ativas verdadeiramente milagrosas e sanadoras nesse quesito. Tais remédios possíveis para as vicissitudes características e inerentes ao modus operandi da pluralidade humana são, nos diz Arendt, a promessa e o perdão. Aquela dando-nos a “capacidade de dispor do futuro como se fosse o presente”(ARENDT, 2014, p. ; 305); e esta a de sermos “liberados das consequências daquilo que fizemos”, sem o que “nossa capacidade de agir ficaria, por assim dizer, limitada a um único ato do qual jamais nos recuperaríamos; seríamos para sempre vítimas de suas consequências”(ARENDT, 2014, p. 295).

            Explicamos melhor: são, em linhas gerais, duas as possibilidade que temos de assentar corpos políticos, de viver em comunidades, escapando à grande imprevisibilidade do agir humano e à irreversibilidade de suas consequências. Neste sentido, ou bem permitimos que a força vinculante da promessa, dos tratados e alianças, ou, em última instância, da confiança e da fé mútuas, estabeleçam seus “marcos de confiabilidade” para o futuro e que o perdão de alguma forma forneça parâmetros para o não aprisionamento dos sujeitos às consequências de seus atos passados; ou, negando a pluralidade em sua dimensão radical (mas usando-a entretanto como meio e mera multiplicidade massiva), recusamos a necessidade de ter que confiar na palavra alheia e permitindo a fixação de uma hierarquia, qualquer que seja o critério pelo qual é ela nutrida, verticalizamos as relações humanas e estabelecemo-nos sob relação de governo e soberania (há ainda, certamente, o problema mais recente da ampla adoção política, institucionalizada e tudo, dos anseios do animal laborans que citamos anteriormente, mas que segue também deste ponto de vista a mesma linha de negação da pluralidade).

            A grande armadilha embutida nesta última opção está, para usar uma metáfora, em que, talvez cansados de debater-nos perante as vicissitudes do agir humano, estejamos deitando a descansar nossa existência sob o leito oferecido por Procusto.  

            Assim, o ponto está em perceber que a ação humana de que se trata aqui é algo bastante peculiar e extraordinário, que, entretanto, a partir da conformação histórica de comunidades políticas tornou-se um componente diário da “vida” desses corpos políticos, apenas por meio da qual sua sustentação se faz no tempo. Em oposição a ela, existe o que poderíamos chamar de “ação determinada”, condicionada por motivos e fins, guiada pelo domínio interno do indivíduo e entendida como um meio de realização deste. Esta é particular e cada um pode e deve ser devidamente culpado das que venham a causar dano; aquela, sem embargo, é plural e diz respeito à comunidade em geral que se vincula e mantêm unida sob a égide de promessas mútuas em relação um mesmo propósito, e é por meio dela que escrevemos a história (que nada mais é do que o grande livro de estórias encenadas da humanidade) nas linhas do tempo.

            De tal forma que, se perguntamos pela culpa de um ato ofensivo para com as promessas que estabelecemo-nos mutuamente enquanto comunidade política, esta caberá àquelx que assim individualmente agiu; mas se, entretanto, o que queremos saber, é realmente sobre a quem imputar a responsabilidade pelas nossas ações e decisões políticas, ou mesmo às omissões: claro está que a responsabilidade é coletiva. Não adianta imputá-la aos “políticos profissionais”(coisa que em si mesma já é uma contradição em termos e deve a qualquer indivíduo ciente da fonte de onde emana a política, a saber: a pluralidade, soar talvez tão esdrúxula quanto “triangulo redondo”), ou mesmo aos educadores em termos de qualidade de educação, ou ainda aos médicos em termos de acesso à a saúde, todas as mazelas relativas a organização destes campos fundamentalmente plurais, serão sempre parte daquilo que compõe nossa responsabilidade enquanto pertencentes a uma mesma comunidade política.

            Sempre que um problema ou uma pergunta tiver, no mínimo calcanhar que seja, do ponto de vista prático, um cunho político, nenhum indivíduo isolado será suficientemente capaz de respondê-la. É que uma resposta a essas questões depende sempre da reunião, participação e consideração recorrente de muitas e nunca pode ser dada por “políticos profissionais” ou teóricos de qualquer área que seja. Não é uma questão de técnica ou habilidade, não é uma questão de força ou audácia, mas de pluralidade e responsabilidade.

Em cada refeição que fazemos juntxs, a liberdade é convidada a sentar-se. A cadeira permanece vazia, mas o lugar está estabelecido.
                                                                      René Char

REFERÊNCIAS
ARENDT, H.; A condição humana.  Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2014.
___________; As origens do totalitarismo. São paulo: Companhia das Letras, 2012.
___________; Between Past and Future; Eight Exercises in Polítical Thought. London: Penguin Books, 2006.
___________; Responsibility and Judgment. New York: Schocken Books, 2003.
___________; The Life of the Mind. Harcourt, Inc. San Diego, 1981.
LIDDELL, Henry George; SCOTT, Robert; A Greek–English Lexicon, revista e aumentada por JONES, Sir Henry Stuart, com a ajuda de MCKENZIE, Roderick; Oxford, Clarendon Press, 1940.
PORCEL, Beatriz. Pescando pérolas: Hannah Arendt e a ruptura da tradição,in. O futuro entre o passado e o presente: Anais do V Encontro Hannah Arendt, Passo fundo: IFIBE, 2012.


AUTOR
* Marcus G. M. Santos é graduando em Filosofia pela Universidade Federal da Bahia.




[1]     Gostaríamos aqui de fazer notar que o termo usado por Arendt “linguagem de signos” nenhuma relação tem com linguagens de sinais como por exemplo a LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais). E que, portanto, a distinção que se estabelece é entre o discurso enquanto esteio possibilitador de qualquer língua que colha sentido vivo da realidade, e portanto seja capaz de expressão espontânea, seja ela oral-auditiva como é o caso do português e do inglês, ou visual-espacial como é o caso da LIBRAS e da ASL (American Sign Language); e uma linguagem de símbolos, precisos e não ambíguos, preocupada apenas com a exatidão e acurácia informacional típica das máquinas executoras de tarefas programadas (a redução da física à matemática atende, por exemplo a tais propósitos). Quisemos aclarar este ponto pois poderia a leitora ou leitor desavisado(a) incorrer, devido à similaridade dos termos, numa má interpretação e crer que a autora estava imbuída de preconceitos acerca das línguas de sinais. Não é, como vemos, o caso.
[2]     A palavra, no sentido usado por Arendt, não deve tomar a tonalidade da correlação sujeito-objeto cunhada no bojo da Era Moderna pela filosofia cartesiana. Pelo contrário, está animada de um espírito de superação daquela correlação como ela se estabeleceu na ontologia moderna. O sujeito aqui, muito longe de ser coisa pensante apartada do mundo, configura-se enquanto ser não apenas no mundo, mas sempre do mundo, ativo, de pensamento, mas também de trabalho, de obra e, no que vem ao caso, de ação. Cf. Hannah Arendt, The Life of the Mind, 1981, p. 19-20. Ademais, nem mesmo enquanto ser de ação tem as pretensões de controle e domínio sobre si e sobre o mundo que se depreendia da proposta cartesiana. Pelo contrário, age sim ativamente, mas isso, aqui, quer dizer também espontaneamente.
[3]     Para um compreensão mais pormenorizada de todo esse desenvolvimento cf. capítulos V e VI de A condição humana, 2014.
[4]     Sobre a noção de uma “liberdade em condição de não-soberania”, característica do conceito arendtiano de ação e por conseguinte de toda a teoria política arendtiana, cf. o ensaio What is freedom? In: Between Past and Future; Eight Exercises in Political Thought, 2006. 

FEIRA DE SANTANA-BA | nº 6 | vol. 1 | Ano 2017

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