O legado de Platão sobre o adoecimento da alma e a controvérsia de seu dualismo


Publicado há mais de uma década, o trabalho de Ivan Frias intitulado Doença do corpo, doença da alma: medicina e filosofia na Grécia clássica (2005) agrega virtudes suficientes para se caracterizar como leitura de interesse permanente a estudantes e estudiosos de Filosofia e Medicina. A obra abrange parte significativa de sua tese de doutorado e se divide em dois capítulos. O primeiro situa Hipócrates no nascimento da arte médica, cujos ramos distintos são pontuados e discernidos. O segundo capítulo apresenta uma minuciosa análise do diálogo Timeu, obra na qual Platão, que tem na medicina um paradigma, evidencia esta influencia e define, “pela primeira vez na cultura do ocidente, doença da alma”, para retomar as palavras do autor. A análise não apenas nos oferece bases consistentes para repensar a complexidade do nexo corpo-alma, como problematiza a interpretação costumeira do dualismo platônico. Nessa medida, além de nos convidar a repensar a indissociabilidade entre corpo e alma na imagem cósmica platônica, propicia-nos um contraponto fundamental para se pensar o tema da melancolia, nome genérico que se atribui, entre os modernos, aos males da alma associados à espontaneidade indomável da imaginação.
Com o intuito de convidá-los a ler o estudo, interrogamos o autor sobre seis assuntos que nos inspiraram a leitura de seu livro. As réplicas se lêem a seguir.


Bruna Torlay: Segundo sua obra (p. 133-135), Platão caracteriza a amathía como a pior doença da alma. Essa doença individual, tendo por premissa paralela uma constituição física ruim, é também engendrada por uma doença social, a saber, instituições defeituosas, regimes políticos viciosos. A terapia preconizada pelo filósofo para promover ou restabelecer o equilíbrio entre corpo e alma seria a prática da ginástica combinada ao exercício da música e da filosofia. Nesse sentido, uma existência saudável parece pressupor, em Platão, o constante manejo da alma, trabalho artesanal de esculpir-se, retocar-se e polir-se. O senhor identifica a permanência dessa terapêutica na cultura do ocidente, ainda que os fundamentos cosmológicos que tenham nutrido a reflexão platônica já não sejam os nossos?

Ivan Frias: No final do séc. V a.C. / início do séc. IV a.C., o autor do tratado hipocrático intitulado “Ares, Águas, Lugares” já assinalava a relação entre medicina e política ao afirmar que o desempenho de um guerreiro durante uma batalha era determinado pelo regime político ao qual estava submetido. Os gregos, que viviam sob o regime democrático, seriam mais corajosos na defesa do Estado que os povos asiáticos. O que está sendo descrito no tratado é a relação entre natureza e cultura, entre físico e mental, se utilizarmos uma linguagem atual para expressar o que disseram os intérpretes modernos do Corpus Hippocraticum.
No início do século XX, Freud ainda utilizava o termo “alma” para referir-se à interioridade do homem ocidental. Em outras culturas, como a dos povos da floresta amazônica, os termos mudam e a própria concepção de interioridade remete ao coletivo.
Platão – como o autor do tratado “Ares, Águas, Lugares” – tinha em vista o todo da sociedade. E para tratar a parte é preciso antes curar o todo, como o filósofo exemplifica no Cármides: a cefaleia que atinge o personagem que dá nome ao diálogo não se resolverá se antes ele não cuidar do todo representado por corpo e alma. O que está em jogo aqui é a questão da sophrosyne, da prudência que faltava a Cármides, um jovem discípulo de Sócrates. A proposta do mestre é então empregar o pharmakon (Cármides, 155 b) associado à belas palavras.
Esse é um texto original que Freud conhecia. Acredito que a terapia da alma seja um legado platônico herdado pela psicanálise.
A paidéia grega tinha também uma função terapêutica ao educar o cidadão, e impedir que a amathia, a ignorância, se instalasse em sua alma e a tornasse enferma. Como disse W. Jaeger (“Paidéia”): a ética socrática tem como modelo a medicina.

Bruna Torlay: Ainda sobre o problema anterior: considerando que a possibilidade de restabelecer a saúde individual e coletiva tem por pressuposto a harmonia do real (isto é, das formas), real este que nos transcende, seria possível superar o adoecimento coletivo num universo carente de parâmetros absolutos?

Ivan Frias: No Sofista, Platão procura aplicar sua Teoria das Formas ao mundo sensível. Os gêneros supremos – Ser / Movimento / Repouso / Mesmo / Outro – reúnem diferentes Formas e as agrupam de acordo com a natureza do Sensível. Há um paralelo com o método da medicina. O desafio do médico é relacionar o Um e o Múltiplo, ou seja: encontrar entre os diferentes tipos de doença aquele que representa o tipo clínico de cada paciente. Esse é o método diagnóstico que ainda vigora. É difícil fazer uma arqueologia do pensamento médico. Mas, se concordarmos que as primeiras teorias médicas são transposições de teorias filosóficas que explicavam o movimento dos astros, o ciclo das águas, as estações do ano, a alternância entre dia e noite, etc., então estamos aptos a afirmar que a partir do séc. V a.C. a medicina grega já possuía um quadro nosológico. Alguns tratados hipocráticos (Epidemias) descrevem o curso de certas doenças, seu desenvolvimento no tempo – o que permite avançar um prognóstico. Nessa dinâmica do Sensível há, portanto, algo que se repete, algo de permanente. O Um e o Múltiplo se relacionam numa dialética em que as Formas agrupadas em gêneros representam o sustentáculo do Sensível. Platão teria então se inspirado no método da medicina, neste e em outros diálogos – como no passo 270 do Fedro, quando ele cita Hipócrates. Nesse passo, o filósofo opera uma transposição filosófica do método da medicina, tendo em vista a elaboração do método da Retórica.
A harmonia do real é um pressuposto do pensamento grego. Há uma ordem no Sensível, como há uma ordem no cosmos, este é um pressuposto que Platão parece ver confirmado pelo método diagnóstico / terapêutico da medicina. E a terapêutica médica é sempre aplicada ao doente individual. O que o tratado “Ares, Águas, Lugares” traz de novo é uma visão coletiva que problematiza os vários fatores que influenciam na saúde individual / coletiva, e que estão relacionados com o clima, com os hábitos de vida, com a qualidade das águas, com a geografia física, etc. Mas igualmente com o regime político ao qual certo grupamento humano está submetido.


Bruna Torlay: O senhor afirma (p. 152) que a abordagem platônica da doença da alma toca em problemas que dizem respeito às suas preocupações éticas e políticas, como por exemplo o problema do conhecimento. Como o filósofo articula uma resposta a esse problema, tendo por premissas reflexões de ordem médica?

Ivan Frias: Em vários diálogos platônicos, principalmente aqueles classificados pela crítica como “diálogos políticos” (República / Leis / Político), há essa preocupação do filósofo com a cidade. A terapia da alma não se restringe ao indivíduo, ela deve ser aplicada ao indivíduo tendo em vista a coletividade. E a educação grega é a base de uma sociedade justa, na qual prevalece um dos pilares, senão o principal da ética socrática (presente em diálogos como República, Górgias, etc.) – “se tivesse de escolher entre praticar e sofrer uma injustiça, preferiria sofrê-la” (Górgias, 469 c) ou “cometer a injustiça é apenas o segundo dos males em grandeza; o primeiro e o maior de todos é praticar a injustiça sem ser castigado” (Górgias, 479 d).


Bruna Torlay: Os tratados epistemológicos dos séculos XVII e XVIII excedem em metáforas médicas. Segundo Bacon, para evocar um exemplo explícito, o primeiro passo em direção à investigação sadia da verdade é expurgar a mente dos ídolos que a perturbam, distorcendo nossos juízos e nossa capacidade de interpretar a natureza. Para Spinoza, corrigir o intelecto (ou praticar a filosofia), resulta de ele ter se visto “em um perigo extremo e forçado a procurar, com todas as forças, um remédio, ainda que incerto, assim como um enfermo que possui uma afecção mortal, que vê a morte iminente se não emprega um remédio, e está coagido a procurá-lo, ainda que seja incerto, pois toda a sua esperança nele está”. Ao enunciar sua decisão de alcançar a felicidade (para ele “o conhecimento da união que a mente possui com toda a natureza”), afirma também que o primeiro passo seria “excogitar o modo de curar e purificar o entendimento”.[1] O senhor entrevê, em juízos como esses, o caminho traçado por Platão ao enfrentar o problema do conhecimento, assim como o legado terapêutico da tradição hipocrática?

Ivan Frias: Platão, leitor dos textos hipocráticos, ao longo de sua obra utiliza a medicina, ora o método ora a ética médica, como modelo de suas doutrinas. No Górgias, o filósofo estabelece uma relação de equivalência entre pares de opostos, e coloca a culinária no campo da empeiria, enquanto a medicina no da tekhne (464). No mesmo passo do diálogo, ele faz uma diferença entre artes que visam o bem do corpo (ginástica e medicina) e as que visam o bem da alma (legislação e justiça). No passo 478 do mesmo diálogo, Platão afirma que a medicina livra o corpo da doença, enquanto a justiça liberta a alma dos males da intemperança e da injustiça.
Utilizar a medicina como paradigma não foi um privilégio de Platão. Aristóteles também o fez.
Analogias entre a medicina e outros saberes – filosofia, ciências, artes atravessam os séculos.
No século XVII, além de Bacon e Spinoza temos outros autores que fizeram da medicina um modelo. Modelo de crítica, como na obra de Molière (O doente imaginário). Mas também como modelo a ser seguido, ou mesmo – como em Descartes – como inspiração para o trabalho filosófico: “resolvi não empregar o tempo de vida que me resta em outra coisa exceto procurar adquirir algum conhecimento da natureza, que seja de tal ordem que dele se possam tirar regras para a Medicina” (Discurso do método).
Alguns estudiosos (M. Grmek) apontam o século XVII como a época da primeira revolução médica, a partir da descoberta feita por W. Harvey de que o coração é o responsável por bombear o sangue para os vasos e fazê-lo circular.
Logo após a Revolução Francesa, com o desenvolvimento da medicina moderna anatomoclínica (R. Laënnec e X. Bichat), a metáfora médica passa a ser muito utilizada na arte literária (Flaubert / Baudelaire).
Os primeiros textos de Sociologia também utilizam a linguagem médica para referir-se à sociedade (corpo social / organismo social, etc.).


Bruna Torlay: Em virtude do modo como aborda a interdependência entre o físico e o psíquico – relação corpo-alma –, Platão não entenderia a doença da alma, conclui o senhor, como sintoma de uma doença física, conforme a concebiam os médicos hipocráticos. O senhor caracteriza essa concepção como uma “descoberta de Platão”, a qual constitui “um marco na cultura ocidental”, tendo em vista que “anuncia no século IV a.C. desenvolvimentos que irão se fazer algumas centenas de anos depois, na psiquiatria e na psicanálise” (p. 156). Considerando que essa descoberta é fruto da amplitude da área de interesses dos filósofos antigos, como o senhor avalia a setorização do saber e a restrição do que hoje se entende por filosofia? Essa setorização dos saberes tende a empobrecer a cultura, ou seria consequência de um enriquecimento impossível de se manejar individualmente? O que os trabalhos de hermeneutas como Jean Starobinski e Jackie Pigeaud têm a nos ensinar a esse respeito?

Ivan Frias: A filosofia platônica é herdeira do pensamento do séc. V a.C., do pensamento filosófico – da filosofia da natureza –, do conhecimento da física celeste e da matemática, do conhecimento médico (Alcméon / Empédocles / Hipócrates), e do pensamento político da mesma época. No Timeu, texto no qual Platão define – pela primeira vez na cultura do Ocidente – “doença da alma”, há uma fisiologia médica herdada de Empédocles, e não da medicina hipocrática. O texto é metafórico, p. ex.: refere-se ao fígado como um “espelho liso e brilhante”. O mundo que o filósofo descreve, inspirado no Ser de Parmênides, é uma esfera onde a Terra ocupa o centro, e em torno da qual circulam os planetas então conhecidos. Não há nada exterior, o mundo é fechado. Tudo está em movimento, mas em harmonia. Existe uma alma do mundo que dá origem à alma humana. Há uma matematização da alma. A matemática é uma espécie de intermediário entre o inteligível e o sensível – para que o conhecimento se realize, é necessário que a alma possua elementos sensíveis. No conjunto corpo-alma existe uma hierarquia – a alma exerce o domínio sobre o corpo. Não é possível separar um do outro, a não ser quando o conjunto se desfaz na morte. Portanto não é correta a leitura que considera dualista a filosofia platônica. No pensamento grego existe uma interdependência de saberes, já que oriundos do mesmo horizonte cultural.
Na contemporaneidade, pelo contrário, a setorização do saber é uma imposição da técnica. Na prática médica, isto se evidencia na impossibilidade de um único profissional ser capaz de manejar a técnica empregada em diferentes especialidades. Certamente que há um empobrecimento da visão que o médico contemporâneo possui do todo, da relação corpo/alma. Os progressos proporcionados pela pesquisa biológica acarretaram uma profunda mudança de raciocínio no campo da medicina – do todo orgânico, passa-se ao interior da célula e, desta, à molécula. P. Meyer (A irresponsabilidade médica) declara: “a tecnomedicina  desviou (a atenção) do médico do comportamento individual de seu paciente, de sua personalidade e alma”; e pergunta: “um positivismo médico estaria, de algum modo, nascendo diante de nossos olhos?”


Bruna Torlay: Tendo em vista que a melancolia revela, conforme diz o senhor (p. 157), a interdependência entre o físico e o psíquico, objeto de investigação e dúvida permanentes na medicina como na filosofia, poderíamos afirmar que este amplo e misterioso estado de espírito é um registro estratégico na história do pensamento? Como o senhor ilustraria seu posicionamento?

Ivan Frias: Nesse ponto sigo Anne Larue (L’Autre Mélancolie) que afirma ser a melancolia uma forma de resistência do pensamento. Ela se refere especificamente à Acédia – a melancolia dos monges, que fundaram as primeiras ordens cristãs, e buscaram no deserto uma vida de recolhimento que traria as condições ideais para a prática religiosa. Mas a própria vida monástica, com tudo o que ela representa de renúncia e abnegação, provocou em alguns deles o surgimento de um comportamento semelhante ao estado melancólico. O isolamento e o cortejo de rituais a serem seguidos à risca transformaram alguns monges em pecadores, dominados por pensamentos obsessivos – no sentido religioso: a “tentação” dos maus pensamentos – que os impediam de orar e seguir as regras do monastério. A Acédia torna-se então um dos pecados capitais, o mais nobre, aquele que incide sobre o pensamento.
Acredito que essa forma de entender a melancolia pode ser aplicada em outros momentos da história da cultura ocidental. Na atualidade, o “stress” representa um importante fator desencadeante dessa forma de resistência do pensamento – resistência à alienação da vida moderna.


AUTOR
Ivan Frias é médico. Começa a estudar filosofia como autodidata na década de 70, ainda acadêmico de medicina, e ingressa na Faculdade de Filosofia da UFRJ na década seguinte. Bacharel e mestre em Filosofia pelo IFCS–UFRJ, é doutor em Filosofia pela PUC-Rio. Autor de Platão, leitor de Hipócrates (2001) e Doença do corpo, doença da alma: medicina e filosofia na grécia clássica (2005), organizou e traduziu uma coletânea de ensaios de Jackie Pigeaud, intitulada Metáfora e melancolia: ensaios médico-filosóficos, publicada em 2009 pela Contraponto.

Bruna Torlay é graduada e mestre em Filosofia pela Unicamp, e se dedica ao estudo de pensadores antigos e modernos.



[1] SPINOZA. Obra completa I. São Paulo: Perspectiva, 2016. p. 329-331

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