Traçados negros sobre uma escrita de si em Riografias

Camila do Nascimento Carmo*
 Sensitiva SG, por Lucas Nunes de Oliveira.

Resumo
Discutir sobre a literatura e o que é o escrever, sobretudo no que diz respeito à poesia, sublinha os processos de devir e movimentos do mundo, através das propriedades do ritmo, da imagem e da linguagem que compõem a operação poética, esta que é, também, social e política. Desse modo, proponho para o presente artigo por em cena a escrita negra da poeta Lívia Natália, que por entre os fios de seus versos publicados no poema Canção do Silêncio nos convocam a pensar sobre como o fazer literário produz no poema uma máquina de invenção que implica produção, expressão, experiência, representação, devir e simulacro. O modo de operação deste trabalho consiste em acompanhar os processos que constituem a escrita em versos de agrimensar, metamorfosear e despersonalizar da poeta Lívia Natália. Desse modo, compreender, através de um agenciamento político-acadêmico, como constroem-se discursos em espaços políticos colonizados sobre a mulher negra que escreve e assim subverter o apagamento e silenciamento produzido sobre as mulheres negras na vida social e pública brasileira. Sendo isso, o que gera potência para a problematização das intersecções – raça, gênero, sexualidade de maneira a destacar a literatura como lugar de exercício do poder onde é produzido lugares subalternos para os traçados negros e as escritoras negras.
Palavras- Chave: Escrita de si. Devir. Mulher Negra. Poesia.

Abstract
Discussing literature and writing, especially regarding poetry, underlines the processes of becoming and movements of the world, through the properties of rhythm, of image and of the language that compose the poetic operation, this one that is also social and political. Given that, I propose for this article to bring on scene the black writing of the poet Livia Natalia, who among the threads of her verses published in the poem Canção do Silêncio summons us to think about how the literary making produces in the poem a machine of invention that implies production, expression, experience, representation, becoming and simulacrum. The operation mode of this work consists in following the processes that constitute the writing in verses of measuring, metamorphosing and depersonalizing of the poet Livia Natalia. In this way, to understand, through a political-academic agency, how discourses are built in colonized political spaces about black women who write and thus subvert the erasure and silencing produced about black women in Brazilian social and public life. This being so, what generates potency for the problematization of intersections - race, gender, sexuality in order to highlight the literature as a place for the exercise of power where subaltern places are produced for black traces and black female writers.
Keywords: Writing of self. Becoming. Black woman. Poetry.

Impulsionada a pensar sobre a literatura e o que é o escrever, em um agenciamento político-acadêmico, proponho construir e desfazer territórios ao problematizar discursos sobre a mulher negra que escreve por entre os traçados negros, que é uma maneira de fazer sangrar frente “a parecença de reservatórios infindos, de represas de felicidade inteira” (EVARISTO, 2016, p. 52) e aquilo que se ouve, (re) produzidas em força revolucionária pelos poemas publicados por Lívia Natália.
Desse modo, proponho colocar em cena os versos da poesia negra de Lívia Natália que aqui foram selecionados por entre os processos de captura e exercícios do silêncio. Ao ser afetada por essa escrita heterogênea e de vínculo múltiplo, vou tecendo problematizações por entre os fios dos versos da poeta, no poema Canção do Silêncio publicado no livro Água negra e outras águas (2016):

Um carnaval me atravessa violento,
meu ouvido apenas digere algo do que se ouviu,
numa oficina lenta de mastigar palavras.
Minhas gengivas sangram mudas,
tanto colorido de pura sofreguidão
é como a morte nos descampados da primavera imensa.

Para além da flor em seu perfume,
há a vespa e o áspero de seu ferrão.
Meu grito de dor e calma,
este mesmo que vaza grosso de meus olhos,
imita a voz das cigarras.

Amigo,
aprenda agora
que a cigarra não morre cantando.

Jamais.

Dentro dela vive uma ferida sem remédio,
ela abriga no seu ventre
um corte nascido de dentro,
que dilacera as entranhas.

No seu ventre moram medos insondáveis.
E um corte que sangra alto.
Toda cigarra,
como eu,
Morre gritando!
(NATÁLIA, Lívia. 2016, p. 61)

Ao extrair potências que atravessam a vida, o poema Canção do Silêncio em tom agudo faz ecoar o mais necessário conteúdo da música: melodias, medidas, cadências, sofreguidão, calma, medos e alegrias. Assim, as possibilidades de vida são encenadas e encarnadas, reunindo elementos literários ou não para dizer das coisas no fazer poético.
Escrever nada tem a ver com significar, mas como disse Deleuze e Guatarri, é “agrimensar, cartografar, mesmo que sejam regiões ainda por vir" (DELEUZE; GUATARRI, 1995, P.13), e por assim ser não se pode acumular em nenhum estrato para dizer-se de alguém, porque se perde rizomaticamente nas alianças, bem como não será possível dizer-lhe de alguém porque se aliançou ao mundo e se constituiu raízes aéreas (DELEUZE; GUATTARI, 1997).
Agenciamentos coletivos, multiplicidades e não individualidades, alianças, linhas de fuga, articulações, territorialidades, expressão, produção, simulacro e experiência foram minhas alianças com a escrita dos versos, marcados por um falar de si, para constituição deste artigo o qual poderá fazer passar as intensidades e expandir vidas negras apagadas e silenciadas pelo racismo.
Ao construir e desfazer territórios, o poema cria, recria, corta, recorta, dobra, desdobra e assim percorre sentidos vários possibilitando romper com as barreiras construídas para impedir de fazer passar fluxos que evidenciem estratégias políticas-artístico-estéticas, as quais expõem os modos de operação do poder nos versos do poema Canção do Silêncio, ao suscitar questões raciais geradas em um contexto de colonialidade, o que nos possibilita problematizar discursos que circulam e são produzidos sobre a mulher negra que escreve de maneira a romper com as hierarquias de gênero e raça, enegrecendo as produções literárias, como aponta Sueli Carneiro ao estudar a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. Com isso, afirma a pesquisadora que “as mulheres negras fazem parte de um contingente de mulheres que não são rainhas de nada, que são retratadas como antimusas da sociedade brasileira, porque o modelo estético de mulher é a mulher branca” (CARNEIRO, 2011).
O poema Canção do Silêncio é o traçado que não reproduz aquilo que vemos de maneira a valorizar a essência, mas nos faz ver processo ao exaltar a diferença a qual está relacionada com o escapar aos códigos e estabelecer alianças frente aos versos e a vida. Em consonância com Cristina Pescuma, “trata-se de pensar o paradoxo, sair do pensamento determinante, categórico, idealista, que não admite contradições, que não está aberto para irrupção do caos que subjaz a todo ser existente, como fundo obscuro de tudo” (PESCUMA, 2013, p. 35.)
Assim, quando os versos contam das feridas sem remédios e o corte nascido de dentro, abrigado no ventre que dilacera as entranhas, é possível visualizar processos que reconstituem um sujeito e suas representações, mas ao levantar os olhos e enxergar a superfície é possível também desfazer as permanências vinculadas a tais questões, de maneira a descentralizar o EU - não de modo a excluir singularidades, mas como uma maneira de ultrapassar a si mesmo - em movimentos múltiplos que não param de se mover numa relação de força com as intensidades em desvios e fugas.
As dores espalhadas pelo poema inviabilizam a experiência e produzem interdições, mas dessas dores as normatividades são questionadas, desarticulando as hierarquias e ordens, marcando outros compassos no ritmar da vida que foge aos medos insondáveis que moram no ventre. Desse modo, movem-se intensidades em desvios e fugas que arrastam esses traçados negros em composições de gestos, sons, cores, terra, pedra, água, conjunto que forma alianças com uma escrita feita de água a elaborar riografias.
O filósofo Gilles Deleuze, em seu livro Lógica do Sentido (2015), na seção Platão e o Simulacro, propõe retomar o projeto de Nietzsche em reverter o platonismo e insiste na abolição do mundo sensível e das aparências, não na tentativa de negar Platão, mas de estendê-lo para enxergar as lacunas e produzir outras linhas.
Assim, é importante dizer que há em Platão a separação do mundo sensível do inteligível constituindo seleções e divisões entre essências e aparências, ideia e imagem, original e cópia, modelo e simulacro. Diante disso, Deleuze subtrai tais binarismos desfazendo os fundamentos do verdadeiro e falso em que há um mundo autêntico o qual consistiria, segundo o platonismo, em ser a medida de tudo que há no mundo das cópias.
Ao romper com os dualismos, Deleuze aponta que tudo é cópia não mais com o modelo de um original como referência, pois que todas as cópias aparecem como simulacros, ao entender que há vínculo com o inacabado, “sempre uma indefinição a ser continuada, levada adiante, produção subterrânea que se entrelaça, se desenvolve no meio do ícone, fazendo-o se perder, desterritorializando-o” (PESCUMA, 2013, p. 84). O simulacro, segundo Deleuze, não é uma cópia degradada, mas “uma potência positiva que nega tanto o original como a cópia, tanto o modelo como a reprodução” (DELEUZE, 2015, p. 267) e assim deixa de assumir posição hierárquica frente aos processos de subjetividade sendo estes potências de criação.
Diante as rupturas produzidas na leitura dos versos, pude experimentar os acordes do poema em que tomam as águas doces e salgadas como as responsáveis em costurar o livro Água negras e outras águas (2016) alinhavando ponto a ponto do conjunto harmônico dos sons que compõem o poema recortado neste artigo. Desse modo, pude compreender a composição de uma escrita de si em riografias, ou seja, grafias de água que dizem de reexistências negras as quais traduzem modulações do pensamento decolonial, consiste ainda em um processo de devir e produção de simulacro que rompe com as estruturas ao desfazer as bordas de modo que se coloque em expansão a afirmação da diferença.
O rio, feito de água doce, é atravessado por conflitos políticos em meio a vida urbana e contemporânea diante a tentativa de domesticá-lo com represas e estações de tratamento, pauta que mobiliza movimentos de resistências dentro das comunidades tradicionais. No entanto, aqui, o rio é narrador das memórias da escrita negra da poeta Lívia Natália, grafa aquilo que escorre pelos dedos sem que seja possível apreender ou fixar-se, ainda que também esteja tomado por conflitos. Portanto, dizer de riografias é colocar-se na fluidez do a-significado e experimentar fluxos da vida os quais desestabilizam a linearidade e homogeneidade é, ainda, desfazer hegemonias que classificam e binarizam discursos já que essas grafias de água passam as margens e assim desfaz as beiradas de modo a nos fazer perceber a existência.
Nessa escrita de agrimensar, buracos são cavados em movimentos circulares e desse movimento outros são criados. Diante esse plano de intensidades, singularidades são evidenciadas e as palavras são mastigadas enquanto os ouvidos digerem aquilo que se ouve. Nesse sentido, retomo as interrogações que a personagem de Chimamanda Adichie no conto Seu Pescoço foi submetida por entender que tais questionamentos circulam cotidianamente nas ruas, nas escolas, nos corredores das universidades, dentre tantos outros espaços de maneira a evidenciar e ratificar a organização hierárquica que separa corpos negros considerados como não importantes:
Elas perguntaram onde você tinha aprendido a falar inglês, se havia casas de verdade na África e se você já tinha visto um carro antes de vir para os Estados Unidos. Olharam boquiaberta para o seu cabelo. Ele fica em pé ou cai quando você solta as tranças? Elas queriam saber. Fica todo em pé? Como? Por quê? Você usa pente? Você sorria de um jeito forçado enquanto elas faziam essas perguntas. (ADICHIE, 2017, p. 126)

São essas composições, instituídas no discurso, que fazem as gengivas sangrarem mudas nessa “oficina lenta de mastigar palavras”. Desse modo, as riografias estão agenciadas no poema à flor, que nasce nas margens do rio, e o perfume que dela exala desterritorializa, formando a imagem, uma cópia da vespa e o “áspero de seu ferrão”, mas reterritorializa quando a poeta diz dos gritos de dor e calma “este mesmo que vaza grosso de meus olhos” (NATÁLIA, 2016, p. 61) e volta a desterritorializar tornando-se outra coisa ao imitar a “voz das cigarras”.
Os versos da poeta instalam-se nas composições da semelhança e do mesmo, ao atravessarem blocos de feminilidade, poder, raça, dor, decolonialidade, morte e afirmação de vida, assim expõem o funcionamento do simulacro.
O poema movimenta-se na produção de várias formas e máscaras, não mais de maneira hierarquizada como se pretendia na relação binária, mas em simulações, ou melhor, ficções, em uma narrativa que ao contar sobre si mesmo em versos investe e constrói outro real possível porque é efeito de experimentação a qual, segundo Cristina Pescuma, “constitui um universo acentrado, mundo de máscaras, e sob cada máscara não há o verdadeiro a ser encontrado e decifrado, um conhece-te a ti mesmo socrático, e sim outra máscara e outra e outra...” (PESCUMA, 2013, p. 86).
Portanto, não se trata de compreender e/ou interpretar os significados do poema, mas acompanhar quais os processos estão sendo atravessados nos versos. Qual seu funcionamento quando deixa de representar e passa a criar linhas de vida possíveis? Tal qual uma máquina constitui mecanismos de uso para operação através de forças, da poesia eclode o poema que desafia a dicotomia e multiplicidade que fabrica a vida e assim possibilita subverter as referências colonialistas que teorizam a produção afro-brasileira, sobretudo no que diz respeito às mulheres que escrevem, reduzindo esse corpo apenas a força de trabalho e objeto sexual, colocando sua escrita em um lugar menor:
Apegam-se à defesa de que a arte é universal, e mais do que isso, não consideram que a experiência das pessoas negras ou afro-descendentes possa instituir um modo próprio de produzir e de conceber um texto literário, com todas as suas implicações estéticas e ideológicas (EVARISTO, 2009, p. 17).
           
Ao pensar sobre os processos que constituem o poema e sobre essa escrita que ocupa um lugar menor, penso na máquina-poesia acoplada aos poemas e de como este produziu conexões várias, dentre elas uma máquina-revolucionária onde corta, processa e produz uma “literatura menor” de modo que a escrita da mulher, poeta, nordestina, baiana, negra, ao ser acoplada neste trabalho, e em minha trajetória acadêmica, rompe com os estratos da grande literatura onde as relações de poder medem a vida e fabricam barreiras para seus movimentos.
Sobre as raízes aéreas do rizoma, dentre a multiplicidade de movimentos, o poema rompe com as repetições dos dias, produz estranhamentos e faz alianças com outros modos de pensar que se afastam do condicionamento racista-sexista de que mulheres negras são “sexualmente permissivas, disponíveis e ávidas pelos assaltos sexuais de qualquer homem, negro ou branco” e ainda “a designação de todas as mulheres negras como sexualmente depravadas, imorais e perdidas” (HOOKS, 2014, p. 39), elementos que inscrevem o corpo negro feminino em relações de superioridade e inferioridade produzindo apagamentos e silenciamentos, também, frente a produção literária negro feminina.
Ao retomar os processos que constituem a literatura e seu status de menor, rememoro Deleuze e Guattari quando interessados em questionar o cânone literário explicavam que “uma literatura menor não é a de uma língua menor, mas antes a que uma minoria faz em uma língua maior” (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 25), o que implica desterritorializar o espaço e a língua para desviar do padrão e criar o novo que não esteja partindo de uma unicidade, mas sim em um estado de coisas nos traçados da multiplicidade e diferença em desconstrução com a ordem e estrutura, ou seja, constituição daquilo que tenho chamado de riografias para pensar a escrita literária negro feminina de Lívia Natália.
Uma literatura menor alude desvalorização e ausência, e por isso afirmam os autores que nelas “tudo é político” (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 26), não estão no espaço da individualidade, mas da construção e enunciação coletiva que implica romper com a tradição por meio de exercício político e social numa série de operações que incluem desfazer laços hierárquicos de maneira que possa ser desterritorializado de uma maioria:
Por maioria nós não entendemos uma quantidade relativa maior, mas a determinação de um estado ou de um padrão em relação ao qual tanto as quantidades maiores quanto as menores serão ditas minoritárias: homem-branco, adulto-macho, etc. Maioria supõe um estado de dominação, não o inverso (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 92).

Nessas operações que incluem o minoritário, estão a potência do devir o qual não pretende atingir uma forma, pois que se afirma na invenção ao compor e criar um conjunto de percepções e sensações que atravessam a literatura forjados numa rede de relações as quais fazem vazar novos sentidos, linguagens, corpos, políticas, estéticas em um agenciamento coletivo no campo literário.
Desse modo, os processos que configuram a escrita dos versos da poeta figuram como discursos que potencializam a existência e a resistência, produzindo aquilo que a professora Ana Lúcia da Silva Santos (2011) chamou de reexistências, pois a construção poética dos versos criam e propõem neste estudo sobre a escrita de si e devir afirmação política e estratégias que perturbam o amálgama construído pela colonialidade do poder, como exercício prático político da intersubjetividade que faz funcionar categorias conceituais em um espaço de dominação/construção colonial do pensamento cujo funcionamento é explicado por Quijano (2014, p. 285):
La colonialidad es uno de los elementos constitutivos y específicos del patrón mundial de poder capitalista. Se funda en la imposición de una clasificación racial/étnica de la población del mundo como piedra angular de dicho patrón de poder y opera en cada uno de los planos, ámbitos y dimensiones, materiales y subjetivas, de la existencia social cotidiana y a escala societa.[1]

Segundo a pesquisadora Ana Cristina Givigi, “a diferença habita e constitui o campo da política de forma inesgotável porque as diferenças não param de se produzir” (GIVIGI, 2009, p. 190) e assim como eixo de resistência ao poder para reexistências em caminhos sonoros num devir-música da cigarra que morre gritando, temos nos traçados negros da poeta Lívia Natália uma poesia que é incessantemente diferença. Em Canção do Silêncio, o perfume da flor é sucumbido pelo ferrão da vespa que corta e fere fazendo ecoar grito de dor, mas que também é de calmaria por seu agenciamento sonoro ao canto da cigarra.
Ao pensar na ferida que carrega a cigarra no poema sou levada aos corpos generificados, estes que são territórios de inscrição de acontecimentos onde funcionam classificações e hierarquizações sociais, com isso trago interrogações, ainda sem respostas acabadas, em busca de entender sobre como o poder articula-se e modula-se para produzir invisibilidades nas produções dos sujeitos? Como em suas multiplicidades e intersecções constitutivas, hegemonizam, classificam e binarizam discursos delegando polaridades rígidas entre a supremacia racial e a negritude, entre feminino e masculino? Como as relações de poder são estabelecidas frente a produção literária da mulher negra que escreve? De que maneira o poema constitui processos de reexistências?
Ao levantar problematizações que circulam em torno das intersecções – raça, gênero, sexualidade – é possível a compreensão de que as narrativas de si no poema geram potências para a escrita negra e mulheres negras e assim destaco a literatura como espaço de conflitos e tensões em que o poder é exercido.
Silêncios e apagamentos também são forças presentes na escrita e no exercício de poder literário, onde as práticas e vozes dissonantes desafiam os cânones ao produzirem imagens as quais nos fazem ver que as ferramentas teóricas e metodológicas do ocidente são insuficientes, ou ainda, em muitas vezes, não nos servem na América Latina, na África ou no Caribe.
Portanto, ao esparramar as palavras no papel, o poema nos conta de como em meio a um espetáculo carnavalesco onde música e dança deveriam encontrar-se para produzir alegrias, ainda que sempre efêmeras, atravessa violento aquilo que nos dilacera como o racismo, o machismo, a misoginia, a lesbofobia. Assim é possível visualizar que “[...] dentro dela vive uma ferida sem remédio,/ela abriga no seu ventre/um corte nascido de dentro,/que dilacera as entranhas [...]” (NATÁLIA, 2016, p. 61), as dores sangram alto e por isso a cigarra morre gritando e diante disso, o que resta do corpo depois que todas as dores sangrarem? A ferida ora é grande, ora é miúda e sem remédio os versos arrastam a vida, empurrando-a para além das bordas tal qual faz o rio quando transborda. As riografias, essas que estão na produção literária de Lívia Natália e no poema aqui analisado, atravessam o cotidiano, as memórias e a experiência através das palavras que seguem o curso das águas num aglomerado.
Ainda que “medos insondáveis” façam moradas neste corpo marcado por feridas, traçados por rituais e regras determinadas por modelos hegemônicos, temos no “corte que sangra alto” possibilidades de (re)inventar a existência distinta daquela vivida, imprimindo na escrita em versos ensaios de reexistências por entre a sonoridade da cigarra, ainda que sejam disformes, fragmentadas e de dores.
Os versos apresentam-se como a “arte da existência”, e ainda que seja possível buscar correspondências e relações nestas narrativas sobre si, ao afirmar que elaboram, trabalham e constituem os sujeitos, diante a crença de que ao escrever a poeta conta sobre si mesma, rememoro Deleuze quando disse: “não há literatura sem fabulação” (DELEUZE, 1997, p. 13).
Desse modo, o poema instaura um processo de devir que não são expressões do vivido, percepções ou recordações da poeta elaboradas pela imaginação, mas antes são possibilidades de existência distintas daquelas vividas, experiência de um devir-outro ou outra coisa para reexistências.
Entre múltiplas entradas e saídas, os versos da poeta Lívia Natália em toda sua consistência, produzem potências fincadas em metamorfoses e despersonalizações que se constituem nas fissuras e rachaduras dos mecanismos que produzem hierarquias para as escritas de mulheres negras. Em um agenciamento coletivo, os traçados negros do poema Canção do Silêncio constituem em relações intensas de afeto as quais estão sempre variando.
Entre brechas e barreiras, este trabalho se afirma na invenção em busca das margens que constituem linhas que nos atravessam, longe de atingir uma forma. Portanto, ao problematizar e questionar discursos hegemônicos sobre a produção de mulheres negras que escrevem, traço estratégias políticas - artísticas - estéticas e problematizo, ainda, os femininos invalidados e inferiorizados pelo racismo o qual, por entre os traçados de uma escrita negra, evidenciam possibilidades múltiplas da existência, pois que o poder que circula faz calar ao mesmo passo que também mobilizam resistências.
Portanto, é possível compreender que a construção poética de Lívia Natália se constitui como afirmação política que produz problematizações na intersecção gênero-raça-classe. Assim, em diálogo com as reflexões realizadas por teóricos da literatura, cientistas sociais e pensamentos filosóficos, sobre a literatura e o que é escrever, pude criar passagens para as intensidades as quais fazem vibrar a escrita em riografias, versos de água, que incitam a produção de um texto acadêmico em potência com implicações estéticas-artísticas-políticas a partir do entendimento de que escrever é uma questão de devir e de sujeitos que se (re) fazem enquanto escrevem.

AUTORA
Mestra em Literatura e Cultura pelo Programa de Pós Graduação em Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia. Licenciada em Letras com habilitação em Língua Portuguesa e Língua Brasileira de Sinais, pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Membro do Núcleo de Pesquisa e Extensão em Culturas, Gêneros e Sexualidades (NuCuS), na linha de pesquisa em Lesbianidades, Interseccionalidade e Feminismos.

Referências
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. No seu pescoço. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na américa latina a partir de uma perspectiva de gênero. Geledés, São Paulo, 06 março 2011. Disponível em https://www.geledes.org.br. Acesso em 27 novembro 2017.
DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2015.
_______. Crítica e clínica. São Paulo: editora 34, 1997.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34 LTDA, 1997, v.4.
_______. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1995, v.1.

_______. Kafka: por uma literatura menor. Trad. Rafael Godinho. Lisboa: Assírio & Alvim, 2002.
EVARISTO, Conceição. Olhos D’água. Rio de Janeiro: Pallas Fundação Biblioteca Nacional, 2016.
_______. Literatura Negra: uma poética de nossa afro-brasilidade.Revista Scripta, Belo Horizonte: v.13, n. 25, 2009, p. 17-31.
GIVIGI, Ana Cristina Nascimento. Do ressentimento à potência: o uso-desuso de drogas, a escola e as políticas de expansão no cotidiano. 2009. 219 p. Tese (Doutorado). Programa de pós-graduação em Educação, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2009.
HOOKS, Bell. Não sou eu uma mulher. Mulheres negras e feminismo. Trad.Plataforma Gueto: 2014.
NATÁLIA, Lívia. Água negra e outras águas. Salvador: EPP, 2016.
PESCUMA, Cristina. A arte contemporânea e o pensamento da diferença. Salvador: 2013.
_______. Arte como Jogo. Salvador: 2015
QUIJANO, Anibal. Cuestiones y horizontes: de la dependencia histórico-estructural a la colonialidad/descolonialidad del poder. Buenos Aires: Clacso, 2014.




[1] “A colonialidade é um dos elementos constitutivos e específicos do padrão mundial de poder capitalista. Baseia-se na imposição de uma classificação racial/étnica da população do mundo como pedra angular do dito padrão de poder e opera em cada um dos planos, âmbitos e dimensões, materiais e imateriais”. (QUIJANO, 2014, p.285)
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