Do primeiro Discurso ao Emílio : uma jornada em busca da virtude

 Revista Sísifo. Nº 13, Vol. 2. Janeiro/Junho 2021. ISSN 2359-3121. www.revistasisifo.com

 

Caio Cezar Pontim Scholz

Doutorando em filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná Unioeste. Linha de pesquisa ética e filosofia política moderna e contemporânea. E-mail para co ntato: cezar.cs@hotmail.com.

 

 

 


 

 

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Resumo: Este artigo tem a pretensão de explorar a afirmação de Rousseau, em um relato autobiográfico, de que os seus dois primeiros Discursos em conjunto com o Emílio compõem um mesmo todo indivisível. Para tanto, inicialmente, tal relato é investigado a fim de reconstruir o cenário em que se inicia a formulação de seu pensamento filosófico, juntamente com o forjar do primeiro Discurso. Na sequência, é estabelecido relações entre os temas anunciados nesse texto e, posteriormente, retomados e aprofundados no segundo Discurso e no Emílio. Por fim, compreende-se que o conceito de virtude ocupa a função de fio condutor para a delimitação de um percurso teórico entre a articulação dos três textos. Com base em tal empreendimento, objetiva-se propor uma espécie de convite ao estudo do pensamento filosófico de Rousseau e abrir possibilidades para investigações minuciosas de seu aparato conceitual.

Palavras-Chave: Rousseau; virtude; ética; política.

Abstract: This article intends to explore Rousseau's claim, in an autobiographical report, that his first two Discourses together with Emile make up a single indivisible whole. Therefore, initially, this report is investigated to reconstruct the scenario in which the formulation of his philosophical thought begins, along with the forging of the first Discourse. In sequence, relations are established between the themes announced in this text and, later, taken up and deepened in the second Discourse and in Emile. Finally, it is understood that the concept of virtue plays the role of a guiding line for the delimitation of a theoretical path among the articulation of the three texts. Based on this undertaking, the objective is to propose a kind of invitation to study Rousseau's philosophical thought and open possibilities for detailed investigations of his conceptual apparatus.

Keywords: Rousseau; virtue; ethic; politics.

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Introdução

Em um relato autobiográfico, contido na segunda carta ao Senhor de Malesherbes, Rousseau descreve o momento de inspiração em que teria obtido o esclarecimento sobre os conteúdos que permeiam o seu pensamento filosófico. Em seguida, ele afirma que as ideias que foram possíveis de serem retidas após o ato estariam transcritas no primeiro Discurso (1750), no segundo Discurso (1755) e no Emílio (1762). Por fim, ele revela que os três textos compõem um todo inseparável.

Diante de tal contexto, indaga-se em que medida é possível mostrar essa totalidade a partir do próprio conteúdo de cada um dos textos? Como identificar um percurso teórico que perpasse por eles? A fim de explorar tais questões, inicialmente, será reconstruído, a partir dos relatos autobiográficos, o momento de inspiração vivido por Rousseau. Em seguida, serão estabelecidas algumas aproximações e relações entre as temáticas apresentadas no primeiro Discurso e, posteriormente, aprofundadas no segundo Discurso e no Emílio.

Durante a realização de tal empreendimento, não há como intenção mostrar, aqui, o vínculo entre os textos a partir do estudo minucioso de seus conteúdos conceituais. Desse modo, este artigo limitar-se-á a mostrar como os principais temas pertencentes ao segundo Discurso e ao Emílio já são previamente anunciados no texto do primeiro Discurso, uma vez que eles são frutos do mesmo momento de inspiração. No decorrer do presente argumento, também será possível mostrar como, após a prévia apresentação dos temas, Rousseau os retoma e com qual intuito eles são estudados nos dois textos seguintes. Logo, este artigo poderá ser compreendido como um texto introdutório de apresentação ou convite ao estudo do pensamento filosófico de Rousseau.

Ademais, com esse estudo, será possível esboçar um percurso teórico delimitado entre a articulação dos três textos, em que o seu início está localizado no primeiro Discurso, com a apresentação dos problemas acerca do movimento de degeneração da natureza humana, que ocorre na transição do natural para o social e, consequentemente, produz efeitos como a corrupção dos costumes, a perda da liberdade, a origem do mal, o uso inadequado das ciências e das artes, o surgimento das desigualdades, a degeneração da formação educacional e a erradicação da figura do cidadão. E, diante da denúncia de tais problemas, há, sobretudo, a inauguração da busca pela virtude, que corresponde ao fio condutor do percurso. Em seguida, os temas citados são retomados e aprofundados, propriamente, no texto referente ao segundo Discurso. E, por fim, eles obtêm seus desfechos e resoluções com a proposta de formação do homem da natureza e do cidadão, acompanhado da aquisição da virtude, descrita no Emílio.

O cenário de origem do primeiro Discurso

O cenário em que é iniciado o forjar do primeiro Discurso pode ser parcialmente reconstruído e compreendido a partir de um relato autobiográfico de Rousseau, encontrado na segunda carta enviada ao Senhor de Malesherbes1, em janeiro de 1762. No início da carta, Rousseau descreve uma espécie de retrospectiva breve do período que vai desde a sua infância até a idade próxima dos quarenta anos. Nesse resgate, é mencionado algumas das características de sua personalidade, hábitos de seu modo de vida, seus conflitos internos e sociais e, principalmente, um ponto de ruptura e esclarecimento, que ele denomina de um “feliz acaso (...) que fez da minha vida uma época tão singular e que estará sempre presente em mim” (ROUSSEAU, 2009, p. 25). Assim, pode-se afirmar que é justamente nessa experiência ímpar que se dá o início da formulação do primeiro Discurso.

A respeito da ilustração do momento singular revelado na carta, duas passagens são dignas de maior atenção. A primeira delas se refere, justamente, ao ato inicial dessa experiência, que corresponde ao encontro de Rousseau com a questão motivadora do primeiro Discurso: “O restabelecimento das ciências e das artes contribuiu para aprimorar ou corromper os costumes?” (ROUSSEAU, 1973, p. 341). Na referida carta, Rousseau descreve esse encontro da seguinte forma:

Eu iria visitar Diderot, então prisioneiro em Vincennes; trazia no bolso um Mercure de France que me pus a folhear ao longo do caminho. Caiu-me sob os olhos a questão da Academia de Dijon que ocasionou meu primeiro escrito. Se alguma coisa já se assemelhou a uma inspiração súbita, foi o movimento que se fez em mim diante dessa leitura; de repente, sinto meu espírito ofuscado por mil luzes; multidões de ideias vivas nele se apresentavam ao mesmo tempo, com uma força e uma confusão que me lançaram numa perturbação inexprimível; sinto a cabeça tomada por um atordoamento semelhante à embriaguez. Uma violenta palpitação me oprime e ergue meu peito; não podendo mais respirar ao caminhar, deixo-me cair sob uma das árvores da avenida, e passo meia hora em uma tal agitação que, ao levantar-me, percebi toda a frente do meu casaco molhado de minhas lágrimas sem ter sentido que as derramava (ROUSSEAU, 2009, p. 25-26).

A partir desse relato, é possível compreender que a origem do primeiro Discurso se dá em um momento de inspiração, ocorrido ao acaso do encontro entre Rousseau e a questão motivadora. Porém, fica evidente também que, nesse momento, a origem se dá apenas no âmbito das ideias e que o processo de redação do texto ocorreria posteriormente.

Ainda a respeito desse cenário, a segunda passagem digna de atenção corresponde ao momento em que Rousseau revela o conteúdo das ideias obtidas no encontro descrito, acompanhado de uma breve observação a respeito da não transcrição delas durante a inspiração:

Se tivesse podido alguma vez escrever a quarta parte do que vi e senti sob aquela árvore, com que clareza teria feito ver todas as contradições do sistema social, com que força teria exposto todos os abusos de nossas instituições, com que simplicidade teria demonstrado que o homem é naturalmente bom e que é somente por tais instituições que os homens se tornam maus. Tudo o que pude reter dessas multidões de grandes verdades que durante um quarto de hora me iluminaram sob aquela árvore ficou bem frouxamente disperso nos meus três principais escritos, isto é, esse primeiro discurso, aquele sobre a desigualdade e o tratado da educação, três obras que são inseparáveis e formam, juntas, um mesmo todo (ROUSSEAU, 2009, p. 26).

Quanto ao conteúdo das ideias resultantes da inspiração mencionado nessa passagem, primeiramente, observa-se a presença das principais temáticas que permeiam todo o pensamento filosófico de Rousseau, ou seja, a tese da bondade natural e a origem do mal, acompanhado dos conflitos de forças duais2 existentes tanto no interior do gênero humano quanto na sua relação com o outro em meio a realidade da ordem social, que são aprofundadas, pelo filósofo, em outros diversos momentos e contextos específicos de seus demais textos3.

Outro ponto importante a ser ressaltado na passagem acima diz respeito a impressão de que a totalidade do conteúdo do pensamento filosófico de Rousseau se fez presente no ato da inspiração, porém, mais tarde, nos períodos de redação dos textos, não houve a possibilidade de transcrevê-lo em sua plenitude. No entanto, ainda assim, teria sido possível a formulação e a transcrição da totalidade de um percurso teórico na produção dos três principais textos: O Discurso sobre as ciências e as artes (1750), o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (1755) e, por fim, o Emílio ou da educação (1762).

Diante dessas observações acerca do relato de Rousseau sobre o momento singular vivido, que também caracteriza a origem do primeiro Discurso; em conjunto com a afirmação da relação entre eles; pretende-se aqui, não investigar, minuciosamente, os vínculos que caracterizam essa relação de totalidade entre os três textos e o que os tornam inseparáveis. Mas, sim, investigar em que medida e de que forma o conteúdo do segundo Discurso e do Emílio já se fazem presentes no texto que compõe o primeiro Discurso, uma vez que o conteúdo deles é fruto do mesmo momento de inspiração, como foi visto, anteriormente, no relato autobiográfico.

Do anúncio no primeiro Discurso ao desdobramento do segundo Discurso

Após a compreensão do cenário em que o primeiro Discurso foi forjado, com o intuito, agora, de identificar, nele, a presença de temas que terão seus desdobramentos no estudo minucioso que compõe a produção do segundo Discurso, torna-se necessário direcionar o olhar para o texto com o qual Rousseau respondeu a questão acerca do avanço das ciências e das artes, proposta pela academia de Dijon. No decorrer da investigação, se tornarão evidentes algumas menções prévias de temas e questões que se fazem presentes no argumento de Rousseau, mas que ainda não são profundamente discutidos no primeiro Discurso.

Ao fazer a leitura do texto em que Rousseau trata especificamente do tema acerca do avanço das ciências e das artes, faz-se necessário uma primeira observação sobre seu conteúdo para que seja possível viabilizar a pretensão deste estudo. O pressuposto diz respeito a dualidade entre o natural e o social, que servirá tanto para contextualizar a presença dos temas do segundo Discurso e, também, do Emílio quanto para delimitar os polos extremos pelos quais boa parte do argumento de Rousseau transitará, no sentido de mostrar não um elogio, mas, sim, uma crítica ao uso inadequado das ciências e das artes, vigente na ordem social de seu tempo. Esse pressuposto já pode ser identificado logo de imediato, quando Rousseau lança a tese defendida no texto:

Enquanto o Governo e as leis atendem à segurança e ao bem-estar dos homens reunidos, as ciências, as letras e as artes, menos despóticas e talvez mais poderosas, estendem guirlandas de flores sobre as cadeias de ferro de que estão eles carregados, afogam-lhes o sentimento dessa liberdade original para a qual pareciam ter nascido, fazem com que amem sua escravidão e formam assim o que se chama povos policiados (ROUSSEAU, 1973, p. 342-343).

Assim, de um lado, afirma-se que o governo e as leis são os elementos que caracterizam o polo extremo da ordem social, enquanto, de outro, o sentimento afogado da liberdade original é o elemento que corresponde ao polo da natureza. Ademais, pode-se afirmar que o segundo elemento também corresponde a um dos anúncios dos temas estudados no segundo Discurso, pois, apesar de mencioná-los, Rousseau não explicita, propriamente, a definição do que seria a liberdade original, as cadeias de ferro e, muito menos, expõe como se dá esse processo de afogamento de um sentimento original por um amor a uma escravidão adquirida. Mas, o estudo e compreensão dessas ideias é realizado por ele, depois, na produção do texto referente ao segundo Discurso.

Atrelado a tese e, também, circunscrito entre os polos do natural e do social, Rousseau menciona outro elemento que cumpre uma função importante em seu argumento, mas, assim como o anterior, somente será aprofundado posteriormente no segundo Discurso. Tal elemento diz respeito ao tema da necessidade. Mencionado, incialmente, por Rousseau nas linhas que precedem a citação da tese do primeiro Discurso, ao afirmar que “como o corpo, o espírito tem suas necessidades. Estas são o fundamento da sociedade, aquelas constituem seu deleite” (ROUSSEAU, 1973, p. 342). Mais adiante, nas linhas seguintes ao anúncio da tese, em relação às necessidades, Rousseau afirma que “a necessidade levantou os tronos; as ciências e as artes os fortaleceram” (ROUSSEAU, 1973, p. 343).

A partir das duas passagens, é nítido que, para Rousseau, há dois tipos distintos de necessidades que cumprem funções específicas em seu argumento. A primeira delas, relacionada ao corpo, deve estar próxima ao polo da natureza e da liberdade original, por outro lado, a segunda, relacionada ao espírito, deve ser adquirida e próxima ao polo do social, uma vez que ela própria é responsável pelo fundamento da sociedade e constituição dos tronos. Porém, apesar de mencionar essas ideias preliminares acerca da necessidade, Rousseau também não se dedica, no primeiro Discurso, a explicitar a definição e a distinção entre as necessidades do corpo e do espírito. Assim como, também, não se ocupa em mostrar como elas podem ser naturais ou adquiridas e, principalmente, como se dá o processo de aquisição ou surgimento de novas necessidades, que tornam possível a fundação da realidade da ordem social.

Para elucidar e compreender a temática que gira em torno da necessidade, faz-se pertinente uma investigação específica sobre um outro objeto de estudo e conhecimento, isto é, o próprio gênero humano. Pois, como foi visto, as necessidades são pertencentes ao corpo e ao espírito humano, logo, para compreendê-las, torna-se necessário compreender propriamente em que consiste o gênero humano. Dada a complexidade do tema, essa investigação não caberia no texto do primeiro Discurso, no qual a questão principal gira em torno do uso das ciências e das artes. Para tanto, é justamente ao estudo e investigação do humano que Rousseau dedica o texto do segundo Discurso, como pode ser observado logo nas primeiras linhas de seu prefácio:

O mais útil e o menos avançado de todos os conhecimentos humanos parece-me ser o do homem e ouso afirmar que a simples inscrição do templo de Delfos continua um preceito mais importante e mais difícil que todos os grossos livros dos moralistas. Considero, ainda, o assunto deste discurso como uma das questões mais interessantes que a filosofia possa propor e, infelizmente para nós, como uma das mais espinhosas a que possam responder os filósofos, pois, como conhecer a fonte da desigualdade entre os homens, se não se começar a conhecer eles mesmos? E como o homem chegará ao ponto de ver-se tal como o formou a natureza, através de todas as mudanças produzidas na sua constituição original pela sucessão do tempo e das coisas, e separar o que pertence à sua própria essência daquilo que as circunstâncias e seus progressos acrescentaram a seu estado primitivo ou nele mudaram? (ROUSSEAU, 1973, p. 233).

Ainda que a questão que move a escrita do segundo Discurso diz respeito a origem e o fundamento da desigualdade entre os homens, fica evidente que o caminho que Rousseau segue para respondê-la é aquele que o leva ao estudo e ao conhecimento do gênero humano. Aliás, também é nítido, na passagem, que tal conhecimento depende da distinção entre o que é originário na natureza humana e o que é adquirido ou artificial. Logo, o tema sobre a necessidade, anunciado no primeiro Discurso, será um dos principais objetos de estudo que compõe o texto e o argumento do segundo Discurso.

Apesar do conhecimento do gênero humano ocupar boa parte do estudo do segundo Discurso, pode-se afirmar que Rousseau já antecipa uma breve síntese dele no argumento do primeiro Discurso, associado ao uso pernicioso das ciências e das artes e, também, vinculado aos dois polos referentes ao natural e ao social. Essa evidência é encontrada no momento do texto em que Rousseau trata da influência que as ciências e as artes podem exercer sobre os costumes humanos em dois contextos distintos, um referente aos costumes naturais e originários, outro referente aos costumes sociais e adquiridos. Assim, Rousseau constata sobre o primeiro caso:

Antes que a arte polisse nossas maneiras e ensinasse nossas paixões a falarem a linguagem apurada, nossos costumes eram rústicos, mas naturais (...) a natureza humana não era melhor, mas os homens encontravam sua segurança na facilidade para se penetrarem reciprocamente, e essa vantagem, de cujo valor não temos mais noção, poupava-lhes muitos vícios (ROUSSEAU, 1973, p. 344).

E, mais adiante, ele mostra a diferença dos costumes após a influência do uso pernicioso das ciências e das artes, presente na realidade social moderna:

Atualmente, quando buscas mais sutis e um gosto mais fino reduziram a princípios a arte de agradar, reina entre nossos costumes uma uniformidade desprezível e enganosa, e parece que todos os espíritos se fundiram num mesmo molde: incessantemente a polidez impõe, o decoro ordena; incessantemente seguem-se os usos e nunca o próprio gênio (ROUSSEAU, 1973, p. 344).

Ao confrontar as duas realidades distantes, de um lado a natureza originária, do outro, o ordenamento social e artificial, é possível identificar que, pelo menos em relação aos costumes influenciados pelo uso das ciências e das artes, houve um movimento de degeneração. Ou seja, fica evidente na passagem que, quanto mais os costumes se afastaram de sua natureza originária e se aproximaram da realidade social, artificial e adquirida, mais eles, em conjunto com as ciências e as artes, corromperam-se e se aproximaram dos vícios.

Assim, pode-se afirmar que o movimento de transição e degeneração do natural e originário para o social e artificial, contextualizado na questão que envolve as ciências e as artes, também corresponde a prévia de outro tema que será amplamente aprofundado, por Rousseau, no segundo Discurso. Pois, no referido texto, com o intuito de

(...) assinalar, no progresso das coisas, o momento em que sucedendo o direito à violência, submeteu-se a natureza à lei; de explicar por que encadeamento de prodígios o forte pôde resolver-se a servir ao fraco, e o povo a comprar uma tranquilidade imaginária pelo preço de uma felicidade real (ROUSSEAU, 1973, p. 241).

Rousseau se ocupará, por meio de um argumento hipotético, em descrever como poderia ter ocorrido esse movimento de transição do estado de natureza para o estado social, a fim de mostrar como acontece o processo da perda da bondade e liberdade original pertencente a natureza humana e como ela se coloca em uma situação de opressão, em uma realidade social despótica.

Junto ao o movimento de transição do natural para o social, ainda no texto do primeiro Discurso, Rousseau anuncia outro tema essencial para a compreensão de seu pensamento filosófico, citado anteriormente nas passagens da carta a Malesherbes. O tema diz respeito a origem do mal e pode ser exemplificado no momento em que Rousseau trata de como o movimento de transição teria afetado até mesmo as relações entre os humanos e os deuses. Segundo ele:

Quando os homens inocentes e virtuosos amavam ter os deuses como testemunhas de suas ações, moravam juntos na mesma cabana, mas, assim que se tornaram maus, cansaram-se com esses espectadores incômodos e os isolaram em templos magníficos. Escorraçaram-nos por fim para aí se estabelecerem eles próprios, ou, pelo menos, os templos dos deuses não se distinguiram mais das casas dos cidadãos. Chegou-se então ao cúmulo da depravação (ROUSSEAU, 1973, p. 354).

Diante dessa passagem, é importante observar que Rousseau parte do princípio de que, originariamente, a maldade não é algo constituinte da natureza humana, ou seja, houve em algum momento uma mudança e, consequentemente, o gênero humano teria adquirido a maldade. Nota-se que, nesse momento, Rousseau apenas afirma que os homens tornaram-se maus, porém, também não explica como se deu esse processo. Assim como os temas citados anteriormente, a origem do mal faz parte da descrição do processo de transição entre o natural e o social, realizado na primeira parte do segundo Discurso.

Semelhante aos temas expostos, por fim, há ainda uma última antecipação, mais evidente, do segundo Discurso, no contexto do primeiro Discurso, em relação ao tema das ciências e das artes. Mais especificamente, no momento do texto em que Rousseau encaminha o término da crítica para, em seguida, iniciar a argumentação em favor dos antídotos perante os males originados do uso inadequado das ciências e das artes. É possível observar que o auge da crítica de Rousseau ao uso inadequado delas fica evidente quando é lançada a seguinte questão:

De onde nascem todos esses abusos senão da funesta desigualdade introduzida entre os homens pelo privilégio dos talentos e pelo aviltamento das virtudes? (...) não se pergunta mais a um homem se ele tem probidade, mas se tem talento; nem de um livro se é útil, mas se é bem escrito (...) há mil prêmios para os belos discursos, nenhum para as belas ações (ROUSSEAU, 1973, p. 356).

A partir da passagem4, compreende-se que o ponto máximo dos efeitos perniciosos produzidos pelo mau uso das ciências e das artes está diretamente relacionado com uma funesta desigualdade em relação aos talentos humanos. Porém, no pensamento filosófico de Rousseau, essa influência da desigualdade é apenas uma de suas formas de manifestação, pois, como foi visto, esse tema é o principal objeto de estudo pertencente ao segundo Discurso. Logo, no início do segundo texto, Rousseau apresenta as várias formas de manifestação da desigualdade:

Concebo, na espécie humana, dois tipos de desigualdade: uma que chamo de natural ou física, por ser estabelecida pela natureza e que consiste na diferença das idades, da saúde, das forças do corpo e das qualidades do espírito e da alma; a outra, que se pode chamar de desigualdade moral ou política, porque depende de uma espécie de convenção e que é estabelecida ou, pelo menos, autorizada pelo consentimento dos homens. Esta consiste nos vários privilégios de que gozam alguns em prejuízo de outros, como o serem mais ricos, mais poderosos e homenageados do que estes, ou ainda por fazerem-se obedecer por eles (ROUSSEAU, 1973, p. 241).

Diante da presença da desigualdade em ambos os discursos, observa-se que, no segundo, o tema ocupa maior espaço na medida em que corresponde ao principal objeto de estudo do texto. Além disso, pode-se afirmar que a desigualdade de talento, mencionado no primeiro Discurso, estaria associada ao segundo tipo de desigualdade, definido no segundo Discurso, uma vez que a desigualdade de talento da arte também depende das convenções humanas. Aliás, os abusos decorrentes da desigualdade de talentos, anunciados no primeiro, permanecem no segundo, porém, com uma dimensão extremamente maior e com efeitos muito mais perniciosos, na medida em que eles têm sua origem nas desigualdades morais, políticas e econômicas.

Estabelecidas as aproximações entre os temas anunciados previamente no primeiro Discurso e amplamente aprofundados, mais tarde, no segundo Discurso, o próximo passo a ser dado diz respeito a fazer o mesmo exercício, porém, agora, a partir da aproximação entre o primeiro Discurso e o Emílio.

Do primeiro Discurso ao desfecho no Emílio

A fim de estabelecer, agora, a aproximação entre o primeiro Discurso e o Emílio, torna-se necessário abordar o texto do discurso com o olhar direcionado a outros três temas, de suma importância para a totalidade do pensamento filosófico de Rousseau. E, assim como os demais, aparecem de forma prévia no texto inicial e são minuciosamente aprofundados, mais tarde, na produção do tratado sobre a educação. São eles: a educação vinculada ao problema do aprender, a formação do cidadão e, em especial, a virtude, que é entrelaçada aos outros dois temas.

O tema da educação, acompanhado da questão acerca do aprender, é anunciado por Rousseau já no texto do primeiro Discurso, mais precisamente quando ele argumenta sobre os efeitos perniciosos que o uso inadequado das ciências pode exercer sobre as qualidades morais do ser humano5. Logo, é lançada a seguinte denúncia:

Já desde os primeiros anos, uma educação insensata orna nosso espírito e corrompe nosso julgamento. Vejo em todos os lugares estabelecimentos imensos onde a alto preço se educa a juventude para aprender todas as coisas, exceto seus deveres (ROUSSEAU, 1973, p. 355).

A partir da passagem, observa-se que a visão de Rousseau aponta para uma crítica à formação educacional vigente na ordem social moderna. No entanto, nesse texto, Rousseau ainda não define o que seria a educação insensata, não apresenta como ocorre a corrupção do julgamento e, também, não define os deveres a serem aprendidos. Apenas, pontua, nas linhas seguintes, alguns exemplos, como o uso da língua materna, a dificuldade em distinguir o erro da verdade, o amor à pátria e a relação com Deus.

Após essa breve apresentação dos temas, é justamente no Emílio ou da Educação que Rousseau os aborda como objetos de estudo propriamente dito. Nele, são explorados, minuciosamente, tanto as críticas à formação educacional vigente em seu tempo quanto as alternativas possíveis para a constituição de um novo processo formativo. Exemplo pode ser encontrado já no prefácio, quando Rousseau revela suas intenções para com o texto:

Pouco falarei da importância de uma boa educação; tampouco me deterei provando que a educação hoje corrente é má; mil outros o fizeram antes de mim (...) observarei apenas que, há infinitos tempos, todos protestam contra a prática estabelecida, sem que ninguém se preocupe em propor outra melhor. A literatura e o saber de nosso século tendem muito mais a destruir do que a edificar (...) apesar de tantos escritos que, segundo dizem, só tem por fim a utilidade pública, a primeira de todas as utilidades, que é a de formar homens, ainda está esquecida (ROUSSEAU, 1999, p. 3-4).

Diante das duas passagens que mostram a prévia crítica à educação moderna, mencionada no primeiro Discurso, somado a pretensão de propor um novo processo formativo para o homem no Emílio, pode-se afirmar que ambas caminham no mesmo sentido. Nele, elas convergem no ponto em que diz respeito ao problema do aprender, pois, ainda em relação a presença da temática acerca da educação no primeiro Discurso, Rousseau a conclui textualmente dando ênfase no problema do aprender com a seguinte questão: “sei que é preciso ocupar as crianças e que a ociosidade constitui para elas o maior dos perigos a evitar. Que deverão, pois, aprender?” (ROUSSEAU, 1973, p. 355). Logo em seguida, ele mesmo a responde com a afirmação da seguinte tese: “Que aprendam o que devem fazer sendo homens e não o que devem esquecer” (ROUSSEAU, 1973, p. 355-356).

Assim como foi feito nos casos anteriores do segundo Discurso, aqui, Rousseau também apenas anuncia o problema do aprender e a tese a ser defendida, porém, não os desenvolve no decorrer do argumento do primeiro Discurso. O estudo específico do tema só é realizado mais tarde, no Emílio. Ao continuar a leitura do prefácio, nas linhas seguintes da apresentação das suas pretensões para o referido texto, Rousseau retoma o problema do aprender da seguinte forma:

Não se conhece a infância (...) os mais sábios prendem-se ao que aos homens importa saber, sem considerar o que as crianças estão em condições de aprender. Procuram sempre o homem na criança, sem pensar no que ela é antes de ser homem. Eis o estudo a que mais me apliquei (ROUSSEAU, 1999, p. 4).

A respeito dessa passagem, é pertinente realizar duas observações. Primeiramente, nela, Rousseau apresenta o problema do aprender vinculado a outro problema que diz respeito ao desconhecimento da infância. E, consequentemente, em segundo lugar, compreende-se que o conhecimento da infância é justamente o tema principal do texto. Assim, é possível traçar uma aproximação entre o segundo Discurso e o Emílio, uma vez que, como foi visto, Rousseau dedica o segundo Discurso ao estudo e conhecimento do homem. Agora, no Emílio, interessa a Rousseau estudar e conhecer o que é a infância, ou seja, o estágio anterior em que tal homem é formado.

O estudo da infância se justifica por duas razões. Primeiro, para definir o que deve ser ensinado e aprendido, como foi dado na tese mencionada no primeiro Discurso. Posteriormente, para adequar o que deve ser aprendido com o que a criança está apta a aprender nos diversos estágios que compõe o seu desenvolvimento na infância6.

Além do problema do aprender, a tese sobre o que um homem deve fazer, anunciada no primeiro Discurso, também é retomada no início do livro primeiro do Emílio, quando Rousseau afirma:

Viver é o ofício que quero ensinar-lhe. Ao sair de minhas mãos, concordo que não será nem magistrado, nem soldado, nem padre; será homem, em primeiro lugar; tudo o que um homem deve ser, ele será capaz de ser, se preciso, tão bem quanto qualquer outro; e, ainda que a fortuna o faça mudar de lugar, ele sempre estará no seu (...) aquele de nós que melhor souber suportar os bens e os males desta vida é, para mim, o mais bem educado (ROUSSEAU, 1999, p. 14).

Apesar de apresentar a tese de forma um pouco mais elaborada do que a forma anterior do primeiro Discurso, Rousseau não define em que consiste o dever ser do homem, o que é feito por ele mais adiante, no decorrer dos livros seguintes que compõe a totalidade do texto.

Associado à questão da formação humana, encontra-se o segundo tema que permite a aproximação entre o primeiro Discurso e o Emílio, isto é, a formação do cidadão. Em relação ao tema, Rousseau o menciona em dois momentos da segunda parte do primeiro Discurso. Primeiramente, ao fazer um comparativo entre os políticos modernos e os políticos antigos, a fim de criticar os modernos por se interessarem apenas por comércio e por dinheiro e, consequentemente, tratar os seus governados mediante ao mesmo interesse. Assim, após elencar exemplos desse comparativo, é anunciada a temática acerca do cidadão, em tom de advertência aos políticos modernos, quando Rousseau alerta: “Que nossos políticos se dignem, pois, a suspender seus cálculos para refletir sobre esses exemplos e que aprendam, de uma vez por todas, que com dinheiro se tem tudo, salvo costumes e cidadão” (ROUSSEAU, 1973, p. 353).

Nessa breve menção ao cidadão, a impressão proveniente da leitura é a de que a figura do cidadão se encontra escassa na ordem social moderna, ou à caminho da escassez, devido ao interesse abusivo dos políticos modernos pelas questões econômicas que, por sua vez, não contribui, propriamente, para a formação dos respectivos cidadãos. Mais adiante, no andamento do argumento, essa impressão é reforçada a partir de outra menção ao tema do cidadão, porém, agora não mais em relação aos políticos modernos, mas, sim, como um dos efeitos decorrentes do uso inadequado das ciências e das artes, mediante a desigualdade em relação aos talentos7. Logo, Rousseau apresenta sua constatação:

Eis o que, com o correr do tempo e em todos os lugares, causa a preferência dos talentos agradáveis aos úteis e o que a experiência vem confirmando, à saciedade, desde o renascimento das ciências e das artes. Temos físicos, geômetras, químicos, astrônomos, poetas, músicos, pintores; não temos mais cidadãos ou, se nos restam alguns deles dispersos pelos nossos campos abandonados, lá perecem indigentes e desprezados. Esse o estado a que estão reduzidos, esses os sentimentos que encontram, em nós, aqueles que nos dão o pão e dão o leite a nossos filhos (ROUSSEAU, 1973, p. 356-357).

Além de reforçar a impressão da perda da figura do cidadão na ordem social moderna, a passagem revela a visão de Rousseau acerca da condição de vida em que os poucos cidadãos que ainda resistem se encontram. Assim, diante da ameaça de erradicação do cidadão8, acompanhado do desinteresse dos políticos modernos em preservá-los e promovê-los, pode-se afirmar que a necessidade de formar cidadãos passa a ser, também, um dos temas de interesse a ser discutido, mais tarde, no Emílio, em conjunto com a temática a respeito da formação humana. Ou seja, para Rousseau, não bastaria apenas formar homens, faz-se necessário, igualmente, formar cidadãos.

Exemplo dessa necessidade, pode ser encontrado nas páginas iniciais do Emílio, onde Rousseau retoma o tema sobre a escassez dos cidadãos na realidade social moderna; realiza a crítica a formação educacional vigente, que seria incapaz tanto de formar homens quanto de formar cidadãos, pois o processo vigente, segundo Rousseau, promove uma contradição entre a natureza humana e as instituições sociais, circunscritos nos polos extremos do natural e do social; define as três formas de educação9 existentes e aponta o acordo entre elas como o caminho a ser seguido, capaz de viabilizar a realização de ambas as formações; identifica, por um lado, a formação do homem como uma educação doméstica e privada com vistas a ser bom para si e, por outro, identifica a formação do homem com a educação pública e comum com vistas a ser bom para o outro, o que caracteriza a formação do cidadão.

Por fim, vinculado ao tema do cidadão, é possível encontrar o outro tema essencial para a compreensão do pensamento filosófico de Rousseau e, assim como os demais, permite reforçar a aproximação, de forma bastante evidente, entre o primeiro Discurso e o Emílio. Ele diz respeito ao conceito de virtude, um dos que mais aparece na maioria dos textos de Rousseau e, a princípio, como coadjuvante, mas que, aqui, pretende-se compreendê-lo como o fio condutor do percurso teórico que perpassa pelos três textos citados no início do presente artigo.

Em relação ao conceito de virtude, três menções podem ser destacadas na leitura do texto do primeiro Discurso. Uma delas diretamente relacionada ao tema do cidadão, na segunda parte do discurso, quando no argumento, após a exposição das críticas às ciências e às artes, Rousseau muda completamente o tom de sua escrita e revela um ar de otimismo em relação as soluções possíveis para os problemas levantados no decorrer do texto. Como exemplo, pode ser apontado o momento em que Rousseau afirma a existência de instituições que contribuem para o uso adequado das ciências e das artes e, principalmente, oferecem espaço para a preservação da figura do cidadão. Segundo ele:

Essas sábias instituições (...) servirão pelo menos de freio aos letrados que, aspirando todos à glória de serem admitidos nas academias, velarão por si mesmos e se esforçarão por se tornarem dignos, graças as obras úteis e costumes irrepreensíveis. Aquelas dentre essas companhias que, pelo prêmio com que homenageiam o mérito literário, fizeram uma escolha de temas capazes de reanimar nos corações dos cidadãos o amor à virtude, demonstrarão aos povos o prazer, tão raro e tão doce, de ver as sociedades cultas se dedicarem a lançar sobre o gênero humano não somente luzes agradáveis, mas também instruções saudáveis (ROUSSEAU, 1973, p. 357)10.

Ao afirmar que as sábias instituições são aquelas capazes tanto de reanimar o amor e a virtude no coração dos cidadãos quanto de fornecer instruções saudáveis, além do breve anúncio da importância da virtude para o tema, é possível observar que, ao defini-las dessa forma, Rousseau antecipa e apresenta a prévia de sua tese acerca das mesmas, que será desenvolvida no Emílio. Como foi visto, o tema da educação é localizado entre os conflitos que envolvem a relação da natureza humana com as instituições sociais. Logo, a respeito delas, Rousseau afirma, no início do Emílio, a tese a ser defendida: “As boas instituições sociais são as que melhor sabem desnaturar o homem, retirar-lhe sua existência absoluta para dar-lhe uma relativa, e transferir o eu para a unidade comum” (ROUSSEAU, 1999, p. 11, grifo do autor). É justamente a partir do desenvolvimento dessa tese que Rousseau se dedicará a buscar resoluções capazes de desfazer os conflitos e contradições que envolvem o processo de formação humana, vigente na ordem social de seu tempo.

Diante do cenário em que se encontra a relação entre as instituições e o cidadão, a virtude, nessa parte do texto, se faz presente de forma secundária ou auxiliar. Porém, há outros momentos em que Rousseau deixa evidente toda a importância desse conceito e seu local central para o desenvolvimento de seu pensamento filosófico. Um deles é encontrado já no início do primeiro Discurso, no preâmbulo, quando Rousseau justifica a posição por ele defendida em seu argumento, ao revelar que “não é em absoluto a ciência que maltrato, disse a mim mesmo, é a virtude que defendo perante homens virtuosos” (ROUSSEAU, 1973, p. 341). Logo, observa-se que o principal interesse de Rousseau para com o referido texto é concentrado na defesa da virtude.

Essa observação ganha ainda mais força, pois da mesma forma em que Rousseau inicia o discurso, com a intenção de expor a defesa da virtude, ele também o conclui com a retomada do tema. Porém, no término, o levantamento de novas questões mostra que tanto a definição de virtude ainda se encontra em aberto bem como os caminhos que ele pretende seguir na produção dos demais textos que estão por vir. Assim, no último parágrafo, Rousseau questiona:

Oh! Virtude, ciência sublime das almas simples, serão necessários, então tanta pena e tanto aparato para conhecer-te? Teus princípios não estão gravados em todos os corações? E não bastará, para aprender tuas leis, voltar-se sobre si mesmo e ouvir a voz da consciência no silêncio das paixões? (ROUSSEAU, 1973, p. 360).

Diante dessas três presenças distintas do conceito de virtude no texto do primeiro Discurso, percebe-se a sua importância para a obra de Rousseau, porém, nota-se também, que ele não se dedica em definir, claramente, o conceito de virtude. Tão somente, indica possibilidades de caminhos a serem seguidos na busca de sua compreensão, com as questões que encerram o discurso, mas que ainda deixam a temática em aberto para a continuação futura nos próximos textos. Assim, pode-se afirmar que a virtude se caracteriza como o fio condutor para o percurso teórico que seguirá no interior dos textos que estão por vir e que a jornada em busca dela está apenas no início.

A busca pela descoberta e obtenção da virtude, inaugurada no primeiro Discurso, terá seu desfecho propriamente mais tarde, no processo de formação educacional do homem da natureza, proposto por Rousseau no Emílio. Nele, Rousseau assume a função de preceptor de seu aluno fictício Emílio e se dedica na missão de ensiná-lo, da infância ao início da vida adulta, justamente a voltar o olhar para si mesmo, a perceber e a compreender os princípios da virtude em seu próprio coração; a saber emitir juízos adequados a partir da relação entre os sentimentos, a consciência e a razão; a constituir uma moralidade capaz de fundamentar o agir livre de contradições entre o ser e o parecer e entre o dizer e o fazer. Em síntese, ensiná-lo a seguir o seu próprio gênio11 tanto como um homem particular quanto como um cidadão pertencente a uma pátria.

Como se dá todo esse processo formativo é desenvolvido e descrito, minuciosamente, por Rousseau, no decorrer do ordenamento dos cinco livros que compõe a totalidade do texto do Emílio. A título de exemplo, é possível mostrar uma síntese do processo, localizada em seus momentos finais, quando Rousseau encaminha o término do argumento, com uma de suas últimas falas direcionadas ao personagem Emílio:

Ó Emílio! Onde está o homem de bem que nada deva a seu país? Quem quer que seja deve-lhe o que há de mais precioso para o homem, a moralidade de suas ações e o amor da virtude. Nascido no fundo de um bosque ele teria vivido mais feliz e mais livre, mas, contra nada tendo de lutar para seguir suas inclinações, teria sido bom sem mérito, não teria sido virtuoso, e agora sabe sê-lo apesar de suas paixões. Basta a aparência da ordem para a conhecê-la e amá-la. O bem público, que só serve de pretexto aos outros, só para ele é um motivo real. Ele aprende a lutar consigo mesmo, a vencer-se, a sacrificar seu interesse pelo interesse comum. Não é verdade que ele não tire proveito das leis: elas proporcionam-lhe a coragem de ser justo, mesmo entre os maus. Não é verdade que elas não o tornaram livre, ensinaram-lhe a reinar sobre si mesmo (ROUSSEAU, 1999, p. 670).

Nessa síntese, ao estabelecer a relação de aproximação entre o natural e o social, fica evidente, primeiramente, a identificação que Rousseau estabelece entre a formação do homem com a moralidade de suas ações, mediadas pela prática da virtude em conjunto com a liberdade. Em seguida, também é nítida a identificação da formação do cidadão com a valorização legítima ao bem público. E, por fim, Rousseau revela a função da lei tanto na formação do homem, ao ensinar-lhe a prática da liberdade e, consequentemente, na formação do cidadão apto a prática da justiça. Assim, o início da busca pela virtude, inaugurada no primeiro Discurso, alcança o seu desfecho no término do Emílio e, com isso, Rousseau cumpre suas pretensões expostas no início do terceiro texto e brevemente já anunciadas no primeiro.

Considerações finais

Diante da presente exposição, foi possível esboçar um percurso teórico iniciado por questões e temas brevemente anunciados no Discurso sobre as ciências e as artes, e que, mais adiante, tornaram-se objetos de estudo minuciosamente conduzidos no Discurso sobre a origem e no Os fundamentos da desigualdade entre os homens e, que por fim, foram retomadas e obtiveram suas resoluções no Emílio ou da Educação.

O aqui percurso proposto teve por motivação o relato autobiográfico de Rousseau escrito na segunda carta a Malesherbes, em que o próprio autor relata um momento singular de inspiração, vivido por ele mesmo, onde teria obtido o esclarecimento a respeito dos conteúdos que, mais tarde, teriam dado origem aos três textos. Da mesma forma, outra motivação foi criada a partir da continuidade do relato, especificamente, quando Rousseau afirma que eles compõem um todo inseparável.

Assim, pretendeu-se investigar e mostrar, por meio do argumento dos referidos textos, a afirmação de Rousseau contida na carta. No entanto, esse exercício limitou-se a identificar, no primeiro Discurso, se os principais temas, abordados nos outros dois textos, de algum modo já teriam sido previamente anunciados no primeiro, uma vez que o esclarecimento acerca deles havia sido obtido pelo autor no mesmo momento de inspiração.

Além dessa identificação, também foi possível apontar de que forma os temas foram retomados, depois, no segundo Discurso e no Emílio. O que deu margem para construir a interpretação de que os principais problemas que permeiam o pensamento filosófico de Rousseau são apresentados previamente no primeiro Discurso, em seguida são aprofundados no segundo e, por fim, obtêm suas resoluções no Emílio. Porém, não foi a intenção aqui mostrar, textualmente, como articula-se o vínculo conceitual entre os três textos mencionados por Rousseau, a partir do estudo aprofundado dos conteúdos que os compõem. Na realidade, a intenção do exercício foi de apresentar um texto introdutório que serve de apresentação e de convite para o estudo do pensamento filosófico de Rousseau.

A realização desse exercício com base no segundo Discurso e no Emílio em relação ao primeiro Discurso, poderia ser realizado, de forma semelhante, com base em outras obras do autor. Uma vez que, no decorrer da leitura do primeiro texto, também foi encontrado indícios de menções prévias de temas e questões que são estudadas, propriamente, em outros textos que não foram citados aqui. Como exemplo, o terceiro Discurso, Do Contrato Social, o Ensaio sobre a origem das Línguas e a Carta a D´Alembert. Que, inclusive, podem ser considerados como correlatos ou extensão dos três textos aqui abordados. Porém, a investigação de tais correlações já renderia material para a abertura de outras possibilidades de estudos, em conjunto com a continuação de possíveis pesquisas e produções de artigos futuros, decorrentes do percurso teórico esboçado no presente artigo.

Referências bibliográficas

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social; Ensaio sobre a origem das línguas; Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens; Discurso sobre as ciências e as artes / Jean-Jacques Rousseau; Trad. Lourdes Santos Machado; Introdução e notas de Paulo Arbousse-Bastide e Lourival Gomes Machado. 1.Ed.; São Paulo: Abril Cultural, 1973.

_____. Emílio ou da educação. Trad. Roberto Leal Ferreira. 2. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

_____. Textos autobiográficos & outros escritos/Jean-Jacques Rousseau; tradução, introdução e notas Fulvia M. L. Morreto. – São Paulo: Editora UNESP, 2009.





1Na introdução da obra Jean-Jacques Rousseau Textos autobiográficos e outros escritos, Moretto (2009) esclarece: “Sr. Chrétien Guillaume de Lamoignon de Malesherbes, o poderoso Diretor da Librairie, o organismo que controlava as publicações da França do antigo regime”.

2A título de exemplo pode ser mencionado as dualidades: natural e artificial, ser e parecer, em si e fora de si, amor-de-si e amor-próprio, dizer e fazer, transparência e ocultação, mediato e imediato, liberdade e opressão.

3Como exemplo dos contextos específicos em que as dualidades citadas anteriormente são estudadas por Rousseau, pode-se apontar: a própria crítica ao avanço das ciências e das artes; as desigualdades econômicas, morais e políticas; a forma de contrato corrompido que legitima as desigualdades, as críticas aos governos representativos; a formação e deformação do gênero humano e do cidadão; as críticas ao teatro moderno, à música moderna e a língua moderna.

4Nela, também há menção a virtude em uma condição vil, que é de extrema importância, corresponde à pretensão deste artigo e será abordado na seção seguinte.

5Essa temática também está localizada naquele movimento de degeneração que ocorre na transição do natural para o social.

6Esses estágios também são definidos por Rousseau e estudados minuciosamente em sequência de acordo com o ordenamento dos livros que compõem a obra Emílio.

7É pertinente relembrar que essa temática foi abordada na seção anterior, mais especificamente, no momento em que foi tratado sobre as desigualdades como objeto de estudo do segundo Discurso.

8No segundo Discurso, Rousseau também menciona a completa dissolução do homem particular e, consequentemente, também do cidadão quando denuncia a instituição do governo despótico, com o último grau de desigualdade: “é este o último grau da desigualdade, o ponto extremo que fecha o círculo e toca o ponto de que partimos; então, todos os particulares se tornam iguais, porque nada são (...)” (ROUSSEAU, 1973, p. 286).

9Educação da natureza, educação dos homens e a educação das coisas.

10É possível interpretar também essa passagem do discurso como uma forma de elogio de Rousseau para com a própria Academia de Dijon, uma vez que, no prefácio, Rousseau inicia por elogiar a questão proposta pela academia que motiva a escrita do discurso: “eis aqui uma das maiores e mais belas questões jamais agitadas (...) uma daquelas verdades que importam à felicidade do gênero humano (ROUSSEAU, 1973, p. 339).

11O não seguir o próprio gênio também caracteriza um problema anunciado por Rousseau no primeiro Discurso, no mesmo momento em que ele argumenta sobre a corrupção dos costumes na realidade social, ele afirma da seguinte forma: “Atualmente, quando buscas mais sutis e um gosto mais fino reduziram a princípios a arte de agradar, reina entre nossos costumes uma uniformidade desprezível e enganosa, e parece que todos os espíritos se fundiram num mesmo molde: incessantemente a polidez impõe, o decoro ordena; incessantemente seguem-se os usos e nunca o próprio gênio” (ROUSSEAU, 1973, p. 344).

 

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