Líderes, massas e os outros: elementos da psicologia de massas de Freud

 

Revista Sísifo. N°15, Vol. Único 2022. ISSN 2359-3121. www.revistasisifo.com

 

 


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Hans Magno Alves Ramos.

Mestre em Filosofia e professor de Filosofia no Instituto Federal de Goiás IFG. Nasci em Taiobeiras/MG, formei-me em Licenciatura em Filosofia na Universidade Estadual de Montes Claros, no norte de Minas Gerais, e fiz meu mestrado em 2010, na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE, com a dissertação “A concepção kantiana de virtude”. Email: hans.ramos@ifg.edu.br



Resumo: Este trabalho buscou reunir algumas das categorias da psicologia de massas de Freud para servir à análise da relação dos líderes com a massa, da relação entre os membros da massa e da relação entre estes com os outros, que não pertencem aos seus grupos. Nessa perspectiva, demonstrou-se que a massa é formada por indivíduos que, inconscientemente, elegem a mesma pessoa como ideal de seus eus, estabelecendo com essa pessoa, na condição de líder, uma relação de enamoramento, devoção, de extrema vulnerabilidade às suas sugestões (hipnose) e de disposição ao sacrifício. Entre os membros da massa predomina a identificação, ligação amorosa que surge da percepção do que eles têm em comum, principalmente com respeito aos seus ideais de eu e renúncias em comum, o que garante, entre eles, a mútua influência, o contágio e a possibilidade de compaixão. Em relação aos indivíduos que não pertencem ao grupo, os membros deste se dispõem à hostilidade, como forma de compensação pelos sacríficos e renúncias que a cultura exige de cada um, como se fossem um alvo para se expurgarem das repressões e privações sofridas.

Palavras-chave: líderes, massas, enamoramento, identificação, hostilidade.


Abstract: This article aims to use the categories of Freud's mass psychology to analyze the relationship of leaders with the mass, the relationship between the members of the mass and the relationship between them and the outgroups. From this perspective, it was shown that the mass is formed by individuals who unconsciously elect the same person as the ideal of themselves, establishing with that person, as a leader, a relationship of love, devotion, extreme vulnerability to their suggestions (hypnosis) and willingness to sacrifice. Among the members of the mass, identification predominates, as a loving connection that arises from the perception of what they have in common, especially with respect to their ideal of self and renunciations in common; identification promotes among them a mutual influence, contagion and the possibility of compassion. In relation to individuals who do not belong to the group, its members are willing to be hostile, as a form of compensation for the sacrifices and renunciations that the culture demands of each one, as if the strangers were a target to purge themselves of the repressions and privations suffered.

Keywords: leaders, masses, passionate, identification, hostility.



Este trabalho visa a expor três tópicos da psicologia freudiana de massas que podem ser pertinentes à compreensão dos fenômenos de grupo: a) a relação dos grupos com seus líderes, b) a relação dos membros de um grupo entre si e c) com os outros. Após a exposição, esses tópicos serão ilustrados brevemente a partir de falas relacionadas a líderes carismáticos.

Nesta abordagem, não optamos por percorrer a evolução lógica e cronológica das concepções da teoria freudiana, mas sim fazer, a partir de uma visão panorâmica dos textos, um apanhado das concepções capazes de lançar luzes sobre os tópicos mencionados acima.

O que aqui chamamos de psicologia de massas de Freud (1856-1939) são as teorias desenvolvidas nos textos que tratam da “psicologia dos povos”, da cultura e do comportamento de grupos. São textos que datam de 1913 até 1939: Totem e tabu (1913), Psicologia de massas e análise do eu (1921), O futuro de uma ilusão (1927), O mal-estar na cultura (1930) e Moisés e o monoteísmo (1939). Na adoção da expressão “psicologia de massas”, seguimos o próprio Freud, que, em 1913, em Totem e tabu, seu primeiro texto de aplicação dos ganhos psicanalíticos à compreensão da cultura e do comportamento dos povos, chamou essa abordagem teórica de psicologia dos povos (Völkerpsychologie), mas que, no seu último texto de mesma abordagem, Moisés e o monoteísmo (1939), empregava o termo Massenpsychologie.1 Para uma definição dessa abordagem psicológica, podemos usar as palavras do próprio Freud: “a psicologia de massas trata o ser individual como membro de uma tribo, um povo, uma casta, uma classe, uma instituição, ou como parte de uma aglomeração que se organiza como massa em determinado momento, para um certo fim” (Freud, 2019a, p. 37).

Antes de apresentar alguns dos elementos explicativos do comportamento de massas, é preciso caracterizá-lo, e, para isso, Freud usou do trabalho de Gustave Le Bon (1841-1931), cujo livro Psicologia das multidões teve bastante repercussão na época. Não é desprezível atentarmos ao fato de que a descrição de Le Bon parece se referir especificamente às multidões, aos grupos que se formam como massas de forma efêmera e volátil, nas palavras de Freud, “à aglomeração que se organiza em determinado momento, para um certo fim”. Le Bon empregou a palavra foule, e a tradução alemã do seu livro, Masse. No entanto, Freud usou da descrição para traçar apontamentos explicativos da psicologia de massas de forma geral, conforme sua definição mais ampla. Isso indica que Freud considerou que uma instituição ou grupos, por exemplo, estáveis e altamente organizados, exigem, ainda que com menos intensidade e com redução de danos, as disposições psíquicas próprias da foule. Nesse sentido, ele chamou a igreja e o exército de massas artificiais, e comparou a foule com as ondas mais altas, ao passo que as socializações estáveis seriam as ondas menos perceptíveis no mar: “As massas do primeiro tipo são, por assim dizer, sobrepostas às últimas assim como no mar as ondas curtas, mas altas, se sobrepõem às longas” (Freud, 2019a, p. 61).

Na descrição leboniana, a disposição anímica dos indivíduos em massas aparece como tendo as seguintes características: enfraquecimento da individualidade – há uma homogeneização do comportamento, como se as pessoas anulassem, em alguma medida, as barreiras individuais para formar um organismo maior, uma alma coletiva; enfraquecimento da censura moral oriunda da consciência pessoal (interior) de cada indivíduo e do senso de responsabilidade individual; grande suscetibilidade a seguir palavras e ações dos líderes e dos membros do grupo; tendência ao desprezo das ponderações racionais e da própria realidade, mobilizando-se de forma inconsciente, emotiva e com inclinação aos extremos.

Vale citar a descrição desta última característica:


Quem quiser influir sobre ela [a massa], não necessita medir logicamente os argumentos; deve pintar com as imagens mais fortes, exagerar e sempre repetir a mesma coisa. Como a massa não tem dúvidas quanto ao que é verdadeiro ou falso, e tem consciência da sua enorme força, ela é, ao mesmo tempo, intolerante e crente na autoridade. Ela respeita a força, e deixa-se influenciar apenas moderadamente pela bondade, que para ela é uma espécie de fraqueza. O que ela exige de seus heróis é fortaleza, até mesmo violência (Freud, 2019a, p. 50-1).



Em nome do pai: líderes e massas


Freud acreditava que os indivíduos, ao se agregarem, necessitavam de um líder de forma análoga e inconsciente à necessidade de uma criança de um pai. “A apavorante impressão do desamparo infantil despertou a necessidade de proteção – proteção através do amor – que é satisfeita pelo pai” (Freud, 2018e, p. 58). Para a criança, o pai é proteção, amparo, o poder que ela não tem, inclusive o de satisfazer suas próprias carências é também quem impede a satisfação de alguns de seus impulsos e se interpõe entre ela e sua mãe, objeto primordial do amor da criança.

Sabemos que existe, na massa humana, a forte necessidade de uma autoridade que se possa admirar, à qual as pessoas se dobrem, pela qual sejam dominadas e até maltratadas eventualmente. Na psicologia do indivíduo descobrimos de onde vem essa necessidade da massa. É o anseio pelo pai, inerente a cada um desde a infância (...). Agora começamos a perceber que todos os traços de que dotamos o grande homem são traços paternos, que nesta concordância se acha a natureza do grande homem, que até agora buscamos em vão. A firmeza dos pensamentos, a força da vontade, a energia da ação fazem parte da imagem paterna, mas sobretudo a liberdade e independência do grande homem, sua divina indiferença, que pode chegar à ausência de escrúpulos. É preciso admirá-lo, é possível confiar nele, mas não há como não temê-lo (Freud, 2018d, p. 152).



Ao contrário de muitas abordagens mais recentes, na teoria freudiana não há uma configuração abstrata,2 com um conjunto de características invariáveis, da liderança; o líder não se faz unicamente por sua personalidade, mas sobretudo pela relação que estabelece com o seu grupo, se cumpre bem a função de afastar a inconsciente insegurança infantil, se vem ao encontro de uma demanda emocional ou afetiva não realizada: “Admitamos, assim, que o grande homem influencie os seus contemporâneos de duas formas: por sua personalidade e pela ideia que defende. Tal ideia pode enfatizar um velho desejo3 das massas ou mostrar-lhes uma nova meta de desejo, ou cativá-las de outra maneira” (Freud, 2018d, p. 151).

Embora a relação com o pai suscite uma ambivalência afetiva, por ele ser, ao mesmo tempo, o protetor e o castrador, suscitando admiração, amor, porém também hostilidade, e essa ambivalência seja observada também nos povos primevos em relação aos seus chefes, analisada em Totem e tabu, no texto A psicologia de massas e análise do eu,4 quando abordou fenômenos das sociedades modernas, a caracterização que Freud fez da relação das massas com o líder enfatiza o amor como impulso dominante, sendo, inclusive, chamada de enamoramento, de meta sexual inibida a ligação afetiva que se estabelece entre membros e líder.

O enamoramento busca diretamente satisfação sexual, no entanto, em alguns casos isso tem que ser renunciado, convertendo-se essa energia num sentimento terno e idealizante do objeto. Nesse caso, o líder encanta o sujeito, aparecendo-lhe tão adequadamente como ideal, que passa a ocupar psiquicamente nos membros da massa o lugar de ideal de eu, de Super-eu,5 donde sua grande influência sobre o indivíduo, inclusive lhe servindo de bússola moral. “Pode-se dizer que o grande homem é justamente a autoridade pela qual se realiza o feito [autossacrifício], e, dado que o próprio grande homem produz efeito graças à semelhança com o pai, não é de admirar que lhe caiba o papel de Super-eu na psicologia de massas” (Freud, 2018d, p.162-3).

Isso não é pouco. Ao tentar explicar os traços da cultura judaica (nas palavras de Freud, o caráter dela), e sobretudo a elevada autoestima de seu povo, ele afirmou: “foi o homem Moisés que imprimiu ao povo judeu esse traço” (Freud 2018d: 147).6 No Compêndio de Psicanálise, analisando o trabalho clínico da sua teoria, Freud chamou de transferência o processo pelo qual o paciente transfere ao analista os sentimentos e emoções que atribuíra a alguém que lhe fora na infância seu guia, e explicou:


se o paciente coloca o analista no lugar de pai (mãe), também lhe concede o poder que seu Super-eu exerce sobre seu eu, pois os pais, afinal, foram a origem do Super-eu. O novo Super-eu tem agora a oportunidade para uma espécie de educação a posteriori do neurótico, pode corrigir erros cometidos pelos pais na educação (Freud, 2018b, p. 109).


O líder pode aparecer como ideal justamente por se encaixar num precedente ideal de eu perdido ou não alcançado, o que remete ao “velho desejo das massas”. Na teoria freudiana, todos temos um anseio pelo retorno a uma condição na qual o ideal de eu não era um elemento de tensão entre o que, de fato, somos e o que devemos ser. É plausível, então, que o líder venha a receber adesão, amor e poder de influência justamente por eliminar ou mitigar essa tensão, pois o que o indivíduo “projeta diante de si como seu ideal é o substituto para o narcisismo perdido da infância, na qual ele era seu próprio ideal” (Freud, 2018c, p. 27-8).

Em muitos indivíduos, a separação entre o eu e o ideal do eu não progrediu bastante, os dois ainda coincidem facilmente, o eu conserva amiúde a anterior autocomplacência narcísica. A escolha do líder é bem facilitada por esta circunstância. Com frequência, ele necessita apenas possuir de modo particularmente puro e marcante os atributos típicos desses indivíduos e dar a impressão de enorme força e liberdade libidinal; então vai ao seu encontro a necessidade de um forte chefe supremo, dotando-o de um poder tal que ele normalmente não poderia reivindicar (Freud, 2019, p. 141).


Nesses casos, o enamorar-se pelo líder é ainda mais (psiquicamente) justificado, pois a eliminação da tensão entre o eu e o ideal de eu significa “uma imensa festa para o eu, que então poderia outra vez estar contente consigo mesmo. Resulta sempre uma sensação de triunfo quando algo no eu coincide com o ideal de eu” (Freud, 2019a, p. 145). Porém, não é unívoco ou invariável o processo pelo qual o líder encanta cada indivíduo; em alguns casos, a adesão se porque o líder é compreendido como alguém que conseguiu a façanha de realizar um ideal não alcançado pelo indivíduo, ou seja, nesses casos, o líder não elimina a tensão entre o eu e o ideal de eu, mas encarna o ideal, proporcionando concretude ao modelo aspirado, dando assim um alvo esplêndido às suas inclinações prévias.

Em todo caso, na teoria freudiana, a intensificação dessa ligação afetiva entre os membros da massa e o líder leva à devoção e ao autossacrifício do apaixonado, como num convencional enamoramento, sendo que a influência do líder sobre as massas foi associada por Freud à hipnose.7

Em algumas formas de escolha amorosa se torna inclusive evidente que o objeto serve para substituir um ideal de eu, próprio e não alcançado. Ama-se o objeto devido às perfeições que se aspirou para o próprio eu e que agora se gostaria alcançar por esse rodeio a fim de satisfazer o próprio narcisismo. Se a superestimação sexual e o enamoramento aumentam ainda mais, a interpretação do quadro se torna sempre mais inequívoca. As aspirações que buscam a satisfação sexual direta podem ser rechaçadas inteiramente, como em geral ocorre, por exemplo, no caso do amor exaltado do jovem; o eu se torna sempre mais despretensioso, mais modesto, e o objeto, sempre mais grandioso, mais valioso; ele se apodera, por fim, de todo o amor-próprio do eu, de maneira que o autossacrifício deste é a consequência natural. O objeto consumiu o eu, por assim dizer. Traços de humildade, de restrição do narcisismo e de danos a si mesmos são encontrados em todos os casos de enamoramento (Freud, 2019a, p. 112-3).


Os brutos também amam: os indivíduos e as massas


Por que os indivíduos formam massas e mantêm-se nelas unidas? Por amor. É por se amarem também que os indivíduos buscam se harmonizar, deixam-se contagiar e influenciar uns pelos outros e tendem à formação de uma composição maior do que eles próprios.

Então experimentaremos a hipótese de que as relações de amor (ou, expresso de modo mais neutro, os laços de sentimento) constituem também a essência da alma coletiva. (...). Para começar, apoiaremos nossa expectativa em duas reflexões sumárias. Primeiro, que evidentemente a massa se mantém unida graças a algum poder. Mas a que poder deveríamos atribuir este feito senão a Eros, que mantém unido tudo o que no mundo? Segundo, que temos a impressão, se o indivíduo abandona sua peculiaridade na massa e permite que os outros o sugestionem, que ele o faz porque existe nele uma necessidade de estar de acordo e não em oposição a eles, talvez, então, “por amor a eles”. (Freud, 2019a, p.77).


Mas que tipo de amor é esse? Assim como acontece em relação ao líder, é um tipo de amor em que os impulsos libidinais não realizados sexualmente convertem-se em (recolocam-se como) afeição, resultando daí uma ligação emocional mais duradoura, de caráter mais terno, admirativo e de comunhão. Essa forma de amor está presente na relação com o pai e também com o líder, porém, nesta, ela “evolui” para o enamoramento, não acontecendo o mesmo entre os membros das massas. Freud chamou de identificações esses laços emocionais, algo que ele mesmo reconheceu ser, na sua teoria, “processos insuficientemente conhecidos” (Freud, 2019a, p. 97). Com essa reserva, afirmou em muitos trechos algo semelhante ao que disse em Por que a guerra?: “tudo o que leva os homens a compartilhar de interesses importantes produz essa comunhão de sentimento, essas identificações. E a estrutura da sociedade humana se baseia nelas, em grande escala” (Freud, 2005, p. 42). Porém, no livro A psicologia de massas e análise do eu, apontou como fatores mais relevantes nos processos de identificação a adesão afetiva ao mesmo líder e as renúncias em comum (que envolvem repressões e privações) que os membros da massa têm de fazer. A igualdade de ter que se renunciar a determinados objetos desejados, como acontece com os irmãos em relação aos pais, que cada um queria somente para si, gera não a identificação, mas um senso de justiça, baseada na necessidade de que ninguém seja dispensado das renúncias que devem se impor a todos:

Este [o instinto gregário, social] apenas se forma a partir da relação entre os vários filhos e os pais, e, para ser mais preciso, como reação à inveja inicial com que o filho mais velho recebe o mais novo. O mais velho certamente gostaria de desalojar ciumentamente o seguinte, mantê-lo longe dos pais e privá-lo de todos os seus direitos, mas diante do fato de que essa criança – como todas as posteriores – é amada pelos pais da mesma maneira, e em consequência da impossibilidade de manter sua atitude hostil sem prejuízos para si mesmo, o filho mais velho é obrigado a se identificar com os outros, formando-se no grupo de crianças um sentimento de massa ou de comunidade, que depois continua se desenvolvendo na escola (Freud, 2019, p. 125).


A inibição das pulsões e a interdição do desejo mobilizam os processos identificatórios que possibilitam a internalização do outro, condição para os vínculos afetivos e para a estruturação da vida em comum” (Bittar, 2006, p. 72). A depender do grau de identificação, pode acontecer o que Freud chamou de introjeção do objeto: o amante introjeta algo do amado, seja como característica (imitação), seja de outra forma (sua dor, sua história, suas neuroses – histerias coletivas – ou sintomas).8 “A base desse processo é o que se chama de identificação – isto é, a ação de assemelhar um ego a outro ego, em consequência do que o primeiro ego se comporta como o segundo, em determinados aspectos imita-o e, em certo sentido, assimila-o dentro de si” (Freud, 1976, p. 82). A partir da identificação, a mútua influência e a sugestão ao ponto do contágio de pensamentos e emoções são uma consequência natural, porque o indivíduo está inclinado a se harmonizar com o que ama e simpatiza, de tal forma que é aí que o contágio sentimental acontece na sua forma mais expressiva: “a compaixão surge somente a partir da identificação” (Freud, 2019a, p. 102).

A figura abaixo ilustra, com limitações, os principais traços da psicologia de massas discutidos até aqui, isto é, a formação da massa e a relação dos membros com o líder.


 


Como legenda da figura, podemos citar novamente o próprio Freud: “tal massa primária consiste de certo número de indivíduos que colocaram um único e mesmo objeto no lugar de seus ideais de eu e que, por conseguinte, se identificam uns com os outros em seus eus” (Freud, 2019a, p. 118, grifos do autor).

A identificação, evidentemente, não explica todos os aspectos das relações entre os membros da massa, sendo mais o início da explicação, justamente por ser a energia de ligação entre eles. Mesmo sobre a identificação, Freud reconheceu ter ficado bastante aquém de ter esgotado o tema.9 Também sem dar explicações conclusivas, Freud fez outros apontamentos acerca dessas relações. Dentre eles, vale citar: o fato de que a massa proporciona aos indivíduos uma percepção diferente das suas forças – eles se veem mais potentes, o que influencia na atitude de imprudência típica das massas em tomar medidas mais extremas; a empatia, tão presente nas identificações, proporciona também na coesão da massa um elemento de retroalimentação, uma solidariedade que resulta numa segurança afetiva; a cooperação também se envolve nesse processo, sendo um resultado e, ao mesmo tempo, um reforço (retroalimentação) da identificação; neuroses coletivas protegem as pessoas de desenvolverem neuroses individuais e de ter que enfrentá-las sozinhas.10 Nesse complexo de convivências, a identificação estabelece a ligação original que permite que tudo isso aconteça no interior das massas, resultando, inclusive, que a compaixão exista a partir da identificação, o que tem a ver com o próximo tópico deste trabalho.

É interessante observar, nesses apontamentos, que muitos aspectos da ligação emocional entre os membros coincidem com a ligação com o líder, como a referência à potência, à segurança, ao próprio fato de que a identificação também envolve algum grau de idealização (tomar como ideal) e existir na relação com o líder, sendo aprofundado em enamoramento nesta última relação. Disso, pode-se inferir que líder e grupo formam funções complementares na superação da “apavorante impressão do desemparo infantil”, sendo o líder o ponto de coincidência do enamoramento, de coesão e orientação da massa, e esta, o escudo que nos protege da insegurança primordial. É plausível também pensar que esse sentimento infantil tão marcante pode ter sucedâneos ou evocações em outras fases da vida, sobretudo quando a realidade (o meio natural e, principalmente, o sociocultural) apresentar situações que emergem como ameaças de desamparo, como naquelas em que a própria sobrevivência está em jogo. Nesses casos, os indivíduos se tornam mais propensos a se integrarem (protegerem-se) e, a fim de fazer isso harmônica e eficazmente, ficam mais inclinados também a permitir que alguém ocupe o lugar do seu ideal de eu, do seu Super-eu, da sua bússola moral. A massa, um grupo menor dentro do grupo maior da civilização, pode representar aos indivíduos uma recompensa pelos seus sacrifícios, privações e renúncias que a cultura não está fornecendo, pois, afinal, “o processo civilizatório se constitui pela interdição do desejo e pela promessa de reconciliação e recompensa pelo sacrifício imposto ao indivíduo” (Bittar, 2006, p. 48).

Cabe ainda ressaltar, como mesmo Freud fez, que os fenômenos aqui mencionados não acontecem sempre do mesmo jeito, com o mesmo grau de intensidade e a ponto de ser igualmente atribuídos a todos os indivíduos.

Cada indivíduo é parte integrante de muitas massas, é multiplamente ligado por identificação e construiu seu ideal de eu segundo os mais diversos modelos. Assim cada indivíduo participa de muitas psiques de massa, a da sua raça, da sua classe, sua comunidade religiosa, seu Estado, etc., e pode, indo além delas, se elevar até um fragmentozinho de independência e de originalidade. (Freud, 2019a, p. 140).




As massas e os outros


Chama a atenção o quanto Freud enfatiza a hostilidade como uma constante do comportamento humano. No livro O futuro de uma ilusão, por exemplo, ele afirmou que “é preciso contar com o fato de que em todos os homens há tendências destrutivas, ou seja, antissociais e anticulturais, e que num grande número de pessoas elas são fortes o bastante para determinar seu comportamento na sociedade humana” (p.30). A formação dos grupos diminui a hostilidade entre os indivíduos que lhes pertencem, mas não em relação aos que estão fora do grupo:

uma religião, mesmo que se chame religião de amor, tem de ser dura e sem amor em relação àqueles que não pertencem a ela. No fundo, afinal, toda religião é uma tal religião do amor para todas que ela abrange, e é natural para todas praticar a crueldade e a intolerância com aqueles que não são seus membros (Freud, 2019a, p. 88-9).

Isso se torna compreensível a partir da teoria dos impulsos fundamentais (ou das pulsões). Nas palavras de Freud:

Depois de muitas hesitações e vacilos nos decidimos a aceitar apenas dois impulsos fundamentais: eros e impulso de destruição. (...) A meta do primeiro é produzir unidades cada vez maiores e assim conservá-las, ou seja, produzir ligações; a meta do outro, ao contrário, é desfazer conexões e assim destruir as coisas. Quanto ao impulso de destruição, podemos pensar que sua meta última parece ser a de levar as coisas vivas ao estado inorgânico. Por isso também o chamamos de impulso de morte (Freud, 2018c, p. 54).


Percebemos assim que o ser humano encontra-se com respeito aos seus impulsos fundamentais nessa situação dual, que explica também a ambivalência tão presente nas relações e sentimentos humanos. “Segundo o testemunho da psicanálise, quase toda relação emocional íntima de longa duração entre duas pessoas – casamento, amizade, relações entre pais e filhos – contém um sedimento de sentimentos de rejeição e hostilidade que só escapa à percepção devido ao recalcamento” (Freud, 2019a, p. 93). Antes de postular o impulso de morte (em 1920, na obra Além do princípio de prazer), Freud já havia destacado como as relações humanas eram ambivalentes e como isso era presente na psicologia dos povos (Totem e Tabu, 1913). O polo hostil dessa ambivalência era descrito frequentemente como resultado da frustração dos impulsos eróticos (de prazer). A teoria dual torna essa ambivalência ainda mais incontornável, porque não é só mais uma questão de frustrados se tornarem hostis, mas de haver uma satisfação não contingente na destruição. A ambivalência impulsional abrange também o efeito de amálgama dos impulsos fundamentais, isto é, eros e thánatos encontram-se misturados na formação da motivação das ações humanas, ou seja, as pessoas, em regra, não agem ora por impulso erótico e ora por impulso de morte, mas sim por ambos, ao mesmo tempo, em composições variáveis. “Assim, por exemplo, o instinto de autopreservação certamente é de natureza erótica; não obstante, deve ter à sua disposição a agressividade, para atingir seu propósito” (Freud, 2005, p. 39).

Mesmo levando em consideração a destruição como impulso fundamental do comportamento humano, com respeito à psicologia de massas, resta a questão do porquê da hostilidade ser liberada eminentemente para os que estão fora do grupo. Por que não ser liberada entre os membros ou mesmo para o líder? É claro que isso, provavelmente, impediria a formação da massa em um nível de coesão que lhe garantisse atingir suas finalidades, o que implicaria em ter que reformular a questão para: o impulso de morte não deveria impedir a formação das massas? As descrições freudianas apontam para a seguinte explicação: o impulso de destruição não impede a formação da massa porque é deslocado para fora dela; para dar coesão ao grupo ao ponto de ele se tornar eficaz com respeito aos seus propósitos e ser compensador para os investimentos emocionais envolvidos, é preciso direcionar, para fora dele, a hostilidade (ou a dose mais substancial dela).

Evidentemente, não é fácil para os seres humanos renunciar à satisfação dessa sua tendência agressiva; eles não se sentem bem ao fazê-lo. Não é de se menosprezar a vantagem de um círculo cultural mais restrito, que oferece ao impulso um escape na hostilização daqueles que se encontram fora dele. É sempre possível ligar uma quantidade maior de seres no amor entre si quando restam outros para as manifestações de agressão (Freud, 2018f, p. 164).


Sabemos que um dos ganhos na psicanálise é o entendimento das emoções humanas como energia, algo, pois, ineliminável,11 embora deslocável; nesse sentido, Bittar (2006, p. 51) comentou sobre os processos de repressão aos impulsos individuais inerentes ao convívio social: “ao longo desse processo, instalam-se conflitos permanentes entre as necessidades individuais e as exigências da cultura, pois o desejo, apesar de interditado, continua a existir. Apesar da repressão, se repõe e se recoloca nas relações sociais”. Freud deixou claro também que a civilização e a vida em massas exigem muitas renúncias e privações, as quais provocam como reação a hostilidade.

É impossível não enxergar em que medida a cultura está alicerçada na renúncia dos impulsos, o quanto justamente ela pressupõe de não satisfação (repressão, recalcamento ou o quê?) de impulsos poderosos. Essa ‘frustração cultural’ domina o vasto âmbito das relações do homem; já sabemos que é a causa da hostilidade contra a qual todas as culturas têm que lidar. (...) Não é fácil entender como se torna possível privar um impulso de satisfação. Isso não é de forma alguma tão inofensivo; caso não seja compensado economicamente, deve-se estar preparado para sérias perturbações (Freud, 2018f, p. 146-7).


Temos um quadro então em que a hostilidade fundamental (impulso de morte) e a contingente (das renúncias, repressões e privações) se associam como permanentes ameaças às ligações amorosas humanas, de modo que, para a formação e manutenção dos grupos, as hostilidades dos seus membros têm que alvejar os que não lhes pertencem. Nesse sentido, o custo de fazer o amor e a harmonia predominarem nas massas é aumentar a hostilidade em relação aos outros, em relação aos quais não houve identificações e nem deve, pois, haver compaixão.

Também os bolchevistas esperam ser capazes de fazer a agressividade humana desaparecer mediante a garantia de satisfação de todas as necessidades materiais e o estabelecimento da igualdade, em outros aspectos, entre todos os membros da comunidade. Isto, na minha opinião, é uma ilusão. Eles próprios, hoje em dia, estão armados da maneira mais cautelosa, e o método não menos importante que empregam para manter juntos os seus adeptos é o ódio contra qualquer pessoa além das suas fronteiras. (Freud, 2005, p. 41-2).


Pode ser que não faça bem ao ego das pessoas reconhecerem o quanto são hostis e odiosas, principalmente se acreditam que congregam em nome do amor ou de ideais elevados. Todavia, Freud também relatou o que costuma acontecer quando o ódio é recalcado;12 ele é, amiúde, projetado para o próprio objeto da hostilidade, de modo que, para o odioso, trocam-se quem é sujeito e alvo da hostilidade:

O processo se resolve, isto sim, mediante um mecanismo psíquico especial, que a psicanálise costuma chamar de projeção. A hostilidade, da qual o indivíduo nada sabe nem quer saber, é jogada da percepção interna para o mundo externo, é desprendida da própria pessoa e empurrada para outra (Freud, 2019b, p. 60-1).


O hostil passa, com o recalque e com a projeção, a acreditar que é o outro que tem ódio por ele, a se perceber como alvo original da hostilidade; o ódio recalcado gera assim, no indivíduo, o sentimento de que ele, seu grupo e seus valores estão sendo atacados ou sob séria ameaça, justamente quando ele está, inconscientemente, mais disposto a atacar. Para usar a expressão de Freud, isso não é de modo algum inofensivo, e deve-se estar preparado para sérias perturbações: a situação é tal que hostis são sempre os outros, de modo que a ação agressiva do indivíduo não lhe aparece como realização do seu ódio ou hostilidade, mas sim como reação de autodefesa, de defesa dos valores da sua comunidade e dos seus bons costumes.



Pontos de ilustração

O que segue nesta seção é apresentação de recortes de casos que podem ilustrar as reflexões freudianas feitas aqui; não se trata, pois, de evidências ou provas, o que exigiria um rigor e uma argumentação muito mais extensas, mas sim de uma continuação da apresentação introdutória de uma teoria. Nesse sentido, citamos um exemplo passado e dois mais recentes.

Alguns podem acreditar que os grandes intelectuais, aos quais é atribuída uma aura de independência de pensamento, de insociabilidade e até isolamento, poderiam ser imunes à psicologia aqui retratada. Não foi, porém, o caso de Martin Heidegger (1889-1976), que, relacionando Hitler ao destino do povo alemão (o que pode ser interpretado como uma figura dos “velhos desejos das massas”), pediu voto a esse líder no jornal de estudantes de Freiburg, em 10 de novembro de 1933:

O povo alemão é chamado à votação pelo Führer. Porém, o Führer nada pede ao povo, antes lhe dá a possibilidade mais direta de uma decisão suprema na sua liberdade: se ele – o povo na sua totalidade – quer a existência que lhe é própria ou se não quer. (...) Esta decisão última toca o limite extremo da existência do nosso povo... A nossa vontade de auto-responsabilidade nacionalista quer que cada povo encontre a grandeza e a verdade da sua determinação (apud Habermas, 2010, p. 160).


Mais recentemente, Jacob Chansley ficou mundialmente conhecido ao invadir o Capitólio, centro legislativo dos EUA, no dia 6/1/2021, trajando écharpe de pele de urso e chifres na cabeça, integrando um motim que visava manter Donald Trump na presidência à revelia da sua derrota nas eleições. Foi preso e contou com os serviços do advogado Albert Watkins, que lhe defendeu com uma explicação harmoniosa com a psicologia de massas freudiana.

Meu cliente, como muitos norte-americanos, sentia que sua voz não era ouvida”, alega pelo telefone o advogado Albert Watkins. “Quando Donald Trump chegou, ele sentiu que sua voz por fim era ouvida. Era relevante. Por isso, tinha um carinho apaixonado, inclusive um amor por Trump. Acreditava que as palavras do seu presidente eram para ele. Estamos falando de um fenômeno como o dos seguidores do Grateful Dead. Como os que seguiam a banda de show em show, meu cliente seguia o presidente de comício em comício. Lá era reconhecido, era parte de um grupo”. (...) “Estavam apaixonados por um líder. Ele os motivava. Acreditavam nele. Achavam que estavam salvando nossa nação a pedido específico de nosso presidente”, insiste Watkins. (EL PAIS13, 2021).


No dia 25/08/22, um líder diferente dos citados, não extremista, mas carismático, Luis Inácio Lula da Silva, em entrevista ao jornal televisivo brasileiro de maior alcance no Brasil, foi cobrado sobre sua atitude de fomentar a polarização e forçar uma divisão agressiva entre “nós e eles”, ou seja, entre seu grupo de apoiadores e aqueles que não compõem esse grupo.

Você já foi em um jogo de futebol? Você torce para algum time? Já foi junto com outros companheiros? É nós e eles. (...) A polarização, ela é saudável no mundo inteiro. Polarização tem nos Estados Unidos, tem na Alemanha, tem na França, tem na Noruega, tem na Finlândia, tem em tudo quanto é lugar. Toda vez que tem mais que uma pessoa participando de alguma coisa. Não tem polarização no partido comunista chinês. Não tinha polarização no partido comunista cubano. Agora, quando você tem democracia, quando você tem mais que um disputando, a polarização é saudável. Ela é importante, ela é estimulante. Ela faz a militância ir para a rua. Ela faz a militância carregar bandeira. O que é importante é que a gente não confunda a polarização com o estímulo ao ódio” (PODER36014, 2022).

Ao equiparar política e futebol, o ex-presidente do Brasil toca numa paixão nacional, o que o aproxima dos desejos das massas; ao mesmo tempo, aduz que a divisão essencial de um jogo é a mesma da política; com as palavras seguintes, não só ratifica a divisão entre “nós e eles” como a aponta como a motivação da militância ser ativa politicamente. Diferentemente das outras lideranças aqui mencionadas, ele conclui pela contenção da hostilidade, o que não só o diferencia dos extremistas, como faz um apontamento importante sobre a natureza da democracia, ponto que extrapola as reflexões freudianas.


Considerações Finais


É comum, principalmente em tempos de ascensão de grupos ou movimentos extremistas, termos uma visão depreciativa dos grupos que se formam em torno de uma liderança, causa ou ideologia, quando não somos partes desses grupos. Pode ser que essa visão depreciativa se baseie consciente ou inconscientemente no juízo de que eles agem de forma intelectualmente rebaixada, passional, subserviente, sob o efeito manada e com hostilidade. “Eles são agressivos, são brutos, uma ameaça”, pensamos ou sentimos. A psicologia de massas de Freud nos alerta que também somos assim e, que para o bem e mal, eles se uniram por amor, assim como nós, quando nos unimos, e para odiar também. Os brutos também amam, e nós também somos os brutos.

Sobre a formação das massas, é interessante, na perspectiva freudiana, a forma humanizada como ela é encarada, em que não são cálculos racionais utilitários e egoístas que unem as pessoas, mas a libido, o afeto, o amor, a condição de expansão de si pela inclusão do outro, de suas carências, de sua subjetividade e sofrimentos. Não vivemos em sociedade em virtude de relações reificadas de mercado, em que um suposto cálculo racional de custo-benefício determinaria nossas escolhas. Segundo a análise aqui explorada, vivemos em sociedade e formamos grupos porque expandimos nosso ser e desejamos afastar o desamparo. É necessário, na psicologia de massas, antes de desqualificar os comportamentos de grupos como irracionais e desprezíveis, entender os ganhos emocionais dos indivíduos envolvidos e os ganhos civilizacionais oriundos da capacidade das pessoas de se unirem.

A abordagem freudiana de como os outros (que não pertencem ao grupo) são visados pelas massas fornece importantes pistas para entender as rivalidades entre os mais variados grupos e também as discriminações e expurgos que as minorias sofrem hoje e em quase toda a história. Sua teoria lança luzes sempre que alguém se torna sistemática ou compulsivamente alvo da hostilidade coletiva, apontando para os processos de compensação das repressões e privações que os grupos ou a civilização, nas suas dinâmicas de inclusão e recompensa (exclusão e frustração), impõem aos indivíduos. Embora as respostas freudianas possam indicar prognósticos desoladores, não dúvidas de que seu diagnóstico é promissor e merece aprofundamentos.

Por fim, importa acrescentar algo que não foi o foco deste trabalho, mas que convém mencionar a fim de evitar distorções, fatalismos ou reificações. Não resulta da psicologia de massas de Freud que é impossível agir no sentido de evitar que a formação e manutenção de massas impliquem em rivalidades e disposição à agressão dos outros. Freud reconheceu que a organização e racionalização dos grupos reduzem os danos do comportamento impulsivo e a suscetibilidade a comportamentos extremos;15 além disso, a redução de frustrações, privações e de opressões nas sociedades, bem como a inclusão de todos nas compensações culturais (cooperação, satisfação moral, possibilidade de fruição dos bens materiais e simbólicos disponíveis) e sublimações diminuem a hostilidade contra a própria cultura;16 restam ainda, na perspectiva dele, o aperfeiçoamento das instituições do direito e de repressão à violência e a educação para o exercício da liderança como formas de diminuir os riscos de violência e outras manifestações extremistas da hostilidade.17

Além disso, para quem quer entender a psicologia das massas numa perspectiva emancipadora, ficam várias tarefas. Em que devemos complementar ou superar a abordagem freudiana? Será, como o próprio Freud sugeriu,18 que as técnicas que se mostrarem bem-sucedidas na clínica não poderiam inspirar técnicas ou práticas coletivas de superação das neuroses e sofrimentos típicos do comportamento de massas? É preciso ainda profundar apontamentos de Freud para a mitigação das manifestações extremas e violentas dos impulsos destrutivos, tendo em vista, inclusive, processos educacionais, de modo a evitar que lideranças e ideólogos explorem os afetos das massas para a destruição e intolerância.


Referências bibliográficas

BITTAR, M. Indivíduo e sociedade: a fertilidade da teoria de Freud na contemporaneidade. Tese de Doutorado. Goiânia: Faculdade de Educação/ UFG, 2006.

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FREUD, S. Compêndio de psicanálise. Trad. Renato Zwick. Porto Alegre: L&PM, 2018b [1938].

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GUIMÓN, P. Trump “sem dúvida” causou invasão do Capitólio, diz advogado do ‘xamã do QAnon’. EL PAÍS. 19/01/2021. Disponível em: https://brasil.elpais.com/internacional/2021-01-19/trump-sem-duvida-causou- invasao-do-capitolio-diz-advogado-do-xama-do-qanon.html. Acesso em 14/05/21, às 14:34.

HABERMAS, J. O discurso filosófico da modernidade. Trad. Ana Maria Bernardo. Alfragide: Texto Editores, 2010 [1985].

PODER360. Leia a transcrição da entrevista de Lula ao Jornal Nacional. PODER360. 26/08/22. Disponível em https://www.poder360.com.br/eleicoes/leia-a-transcricao-da-entrevista-de-lula-ao-jornal-nacional/. Acesso em 31/08/2022, às 10:30.

VENTURA, D. (org.). Um diálogo entre Einstein e Freud: por que a guerra? Santa Maria/RS: Fadisma, 2005 [1932].



1 Como em: “Wir verwunden uns kaum, dass der ganze Ablauf eine längere Zeit gebraucht hat, würdigen es wahrscheinlich nicht genug, dass wir es mit einem Vorgang der Massenpsychologie zu tun haben” (p.120) https://ia800206.us.archive.org/33/items/DerMannMosesUndDieMonotheistischeReligion_520/fr eud_mann_moses2_text.pdf

Na tradução usada neste artigo: “Não nos admiramos de que tudo tenha necessitado de algum tempo; talvez não levemos suficientemente em conta o fato de que lidamos com um processo da psicologia de massas” (Freud, 2018d, p.95).

2 “Assim, provisoriamente tendemos à conclusão de que não vale a pena buscar um significado realmente inequívoco para o conceito de ‘grande homem’. Ele seria apenas um reconhecimento, de uso um tanto vago e concessão mais ou menos arbitrária, do desenvolvimento enorme de certas características humanas, numa aproximação ao sentido literal original de ‘grandeza’” (Freud, 2018d, p. 151).

3 Wunshgebilde; traduções usadas em outras edições: formação de desejo, deseo, figura de deseo, configurazione di desiderio, image de désir, group of wishes, wishful image.

4 Com respeito à relação dos membros de um grupo com seu líder, aqui privilegiou-se a abordagem de A psicologia de massas e análise do eu, por estar focado nas sociedades modernas. A relação com o chefe em Totem e tabu é caracterizada de forma muito mais ambivalente, em que o tabu e os seus poderes, inclusive mágicos, estão presentes.

5 Super-eu substitui superego nas traduções brasileiras mais recentes, de Renato Zwick (L&PM) e de Paulo César de Souza (Companhia das Letras). O super-Eu é uma instância psíquica: “no curso de desenvolvimento individual, uma parte dos poderes inibidores do mundo externo é interiorizada, formando-se no Eu uma instância que, observando, criticando e proibindo, se contrapõe ao resto [id, impulsos libidinais vitais, e o eu]. A essa nova instância, denominamos Super-eu” (Freud, 2018d, p.161).

6 Mais à frente, na mesma obra, expressou-se de forma diferente, mas no mesmo sentido: “Queríamos esclarecer de onde vem o caráter peculiar do povo judeu, que provavelmente tornou possível que ele se conservasse até hoje. Descobrimos que o homem Moisés forjou esse caráter, ao dotar os judeus de uma religião que elevou de tal maneira o seu amor-próprio que eles se acreditaram superiores aos outros povos” (Freud 2018d, p.179).

7 “A hipnose não é um bom objeto de comparação com a formação das massas porque é, antes, idêntica a ela. Da complicada estrutura da massa, ela isola para nós um elemento, o comportamento do indivíduo da massa em relação ao líder” (Freud, 2019a, p. 116).

8 “Podemos resumir o que aprendemos dessas três fontes afirmando, em primeiro lugar, que a identificação é a forma mais original de ligação emocional com um objeto; em segundo lugar, que por via regressiva ela se transforma em substituta de uma ligação objetal libidinosa, como que por introjeção do objeto no eu; e, em terceiro lugar, que ela pode surgir sempre que se percebe uma nova característica em comum com uma pessoa que não é objeto de impulsos sexuais” (Freud, 2019a, p. 103).

9 “Uma outra suspeita nos dirá que estamos muito longe de haver esgotado o problema da identificação, que nos achamos frente ao processo que a psicologia chama de “empatia”, que participa enormemente na compreensão daquilo que em outras pessoas é alheio ao nosso eu. Mas nos limitaremos aqui às consequências afetivas imediatas da identificação” (Freud, 2019a, p. 104).

10 “Harmoniza-se bem com isso o fato de o crente estar protegido em alto grau do perigo de certas doenças neuróticas; a aceitação da neurose universal o dispensa da tarefa de desenvolver uma neurose pessoal” (Freud, 2018e, p. 74).

11 “De nada vale tentar eliminar as inclinações agressivas dos homens” (Freud, 2005, p. 41). “Esse traço [agressividade] indestrutível da natureza humana também o acompanhará aonde for” (Freud, 2018f, p. 164). “O impulso recalcado nunca desiste de aspirar por sua satisfação completa” (Freud, 2018a, p. 108).

12 O recalque consiste numa operação em que um impulso ou algo nele amalgamado é mantido fora da consciência por entrar em conflito com o ego.

1515 Ver capítulo III de Psicologia de massas e análise do eu, no qual Freud argumenta que a estabilização das massas em grupos ou instituições assemelha-se à formação de um indivíduo maior em que as desvantagens do comportamento da massa volátil são minimizadas, sobretudo o rebaixamento intelectual.

1616 “Penso que a ética pregará em vão enquanto a virtude não for recompensada já na Terra. Também me parece fora de dúvida que uma mudança real nas relações do homem com a propriedade seria de mais ajuda do que qualquer mandamento ético; no entanto, no caso dos socialistas, essa compreensão é turvada e perde seu valor de execução por causa de um novo equívoco idealista acerca da natureza humana” (Freud, 2018f, p. 198).

1717 Ver a carta de resposta de Freud a Albert Einstein sobre o que devia ser feito para evitar guerras. Usamos aqui a edição Um diálogo entre Einstein e Freud: por que a guerra? (Fadisma, 2005).

1818 “Há uma questão, contudo, que me é difícil evitar. Se o desenvolvimento cultural apresenta semelhanças tão amplas com o do indivíduo e trabalha com os mesmos meios, não seria justificado diagnosticar que muitas culturas ou épocas da cultura – e possivelmente toda a humanidade se tornaram neuróticas sob a influência das aspirações culturais? A decomposição analítica dessas neuroses poderia ser acompanhada de propostas terapêuticas merecedoras de grande interesse prático. Eu não diria que semelhante tentativa de transferir a psicanálise para o âmbito da comunidade cultural fosse absurda ou condenada à esterilidade”. (Freud, 2018f, p. 199).

 

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