Considerações sobre a Sociedade do Desempenho e o problema da alteridade em Byung-Chul Han

 Revista Sísifo. N° 14, Julho/Dezembro 2021. ISSN 2359-3121. www.revistasisifo.com




Camila Braga

Mestranda em Filosofia pela UFRRJ

 

Leandro Pinheiro Chevitarese

Doutor em Filosofia pela PUC-Rio, Professor do Departamento de Educação e Sociedade e Professor da Pós-graduação em Filosofia da UFRRJ

 

Resumo: O presente artigo pretende investigar o problema da alteridade no cenário contemporâneo, particularmente a partir das análises desenvolvidas por Byung-Chul Han acerca da Sociedade do Desempenho. A partir da consideração acerca da transição da Sociedade Disciplinar de Foucault, para a Sociedade de Controle de Deleuze, pretende-se caracterizar a condição do atual sujeito do desempenho, que padece de um processo de agonia do pensamento, de violência neuronal, de aprisionamento narcísico e de perda da possibilidade de experiência da alteridade atópica. Este artigo visa, assim, investigar os desafios de reconfiguração das relações de alteridade no âmbito da Sociedade do Desempenho, tendo em vista a pergunta sobre as possibilidades de repensar o “bem-viver” diante de nossa condição contemporânea.

Palavras-chave: Alteridade; Eros; Agonia do Pensamento; Sociedade do Desempenho; Produção de Subjetividade

 

Abstract: This article intends to investigate the problem of alterity in the contemporary scenario, particularly from the analysis developed by Byung-Chul Han about the Performance Society. Through the consideration of the transition from Foucault's disciplinary society to Deleuze's control society, it is intended to characterize the condition of the current performance subject, who suffers from a process of thought agony, neuronal violence, narcissistic imprisonment, and loss of the possibility of experiencing atopic otherness. Thus, this article aims to investigate the challenges of reconfiguration of alterity relations within the scope of the Performance Society, considering the question about the possibilities of rethinking “well-living” in face of our contemporary condition.

Keywords: Alterity; Eros; Thought Agony; Performance Society; Subjectivity Production

 

Introdução

 

O presente artigo propõe uma investigação sobre a agonia do pensamento e a perda do papel da alteridade nas relações humanas, no âmbito da atual Sociedade do Desempenho.

A partir da análise de Foucault (2010) sobre a Sociedade Disciplinar e a transição para a Sociedade de Controle por Deleuze  (1992), Han (2015) estabelece um diálogo em que analisa os dispositivos de produção de subjetividade e relações de poder na contemporaneidade. O filósofo investiga os cenários e deslocamentos das tecnologias de poder, anteriormente centradas no esquema de poder pela negatividade e, posteriormente, pela positividade na atualidade, considerando que a segunda opera de modo bem mais sutil, porém ainda mais eficiente que a primeira (HAN 2015, 2017b). Observa que as transformações contemporâneas se complexificam e estimulam que o sujeito da Sociedade do Desempenho e do Cansaço seja um modulador de seus projetos e se constitua, cada vez mais, um empresário de si mesmo. Estimulado pela hiperatividade do sistema capitalista neoliberal, com foco determinante no desempenho em todas as esferas da vida, edifica-se como aquele que busca possibilidades sem limites, imbricando significados de liberdade e controle e transpondo seus empreendimentos ao máximo de visibilidade e imediatez (HAN, 2017b). Ao tempo que atinge um objetivo, já persegue outro, e deste modo, se vê emaranhado neste mecanismo. Assim, o esquema de poder vai se deslocando de técnicas coercitivas para outras mais sedutoras que inebriam o sujeito e visam níveis cada vez mais altos de produtividade.

Han aponta que tal dinâmica recursiva e visível, estabelecida agora num panóptico[1] digital e compartilhado (HAN, 2017b), acaba por estimular que o sujeito confie seus dados e imagens em mídias de afetos e no monitoramento, trabalhe contínua e irreflexivamente para a otimização de sua performance em todos os setores da vida, tais como: saúde, beleza, família, realizações pessoais e econômicas etc. – o que necessariamente precisa tornar-se visível no mundo digital. Tal processo, à primeira vista, cria uma analgesia instantânea (HAN, 2021a) mas devassa esferas privadas da vida em espaços de exposição transparentes, agoniza o pensar, tensiona as relações com o outro (HAN, 2017a), despercebe as coisas e, sobretudo, dilacera a noção de valores (HAN, 2020a). Como consequência, o sujeito da Sociedade do Cansaço pode se notar dependente de sua expectativa de sucesso, imerso numa profusão de distúrbios neuronais[2] provocada pelo “não mais poder” (HAN, 2015). Envolto por uma proliferação de idênticos (HAN, 2018c), em que tudo é comparável e consumível, deriva-se deste processo um fenômeno de apagamento do indivíduo em sua singularidade com o desaparecimento da alteridade e a capacidade de estranhamento  da realidade (HAN, 2015). E, por fim, o sujeito do desempenho se encontra em um mecanismo narcísico que mais aprisiona do que liberta, reputando a este processo uma espécie de violência microfísica que se expressa nas síndromes neuronais.

Considerando a agonia do pensamento e a violência neuronal que acometem o sujeito que empreende, formulam-se as seguintes questões que emergem de tal panorama:  em que medida seria possível recuperar as relações de alteridade como contraponto aos mecanismos ensimesmados de produção de subjetividade na contemporaneidade? Quais seriam possibilidades de subjetivação que nos fariam reconfigurar as relações de ser e viver?

 

 

Cenários e Deslocamentos: a Sociedade Disciplinar, de Controle e do Desempenho.

Nas sociedades disciplinares, Foucault (2010) destaca que os indivíduos não podiam prescindir do dever e da obediência através da “disciplina[3]” e da referência à “norma”, cujos corpos ganhavam uma organização espacial e hierárquica em instituições tradicionais de confinamento, tais como: hospitais, quartéis, escolas, fábricas e presídios construídos. Um dos importantes elementos de tal análise é o Panóptico de Bentham, que “pode ser bem representado como um puro sistema arquitetural e óptico: é na realidade uma figura de tecnologia política que se pode e se deve destacar de qualquer uso específico” (FOUCAULT, 2010, p.228-229). A funcionalidade do tipo de edificação do Panóptico favorece o aparelhamento do poder frente à sistematização de corpos e tarefas.

Diferentemente de sociedades anteriores, os mecanismos de poder na sociedade disciplinar se mostravam mais velados e distribuídos de cima para baixo na sua estrutura espaço-temporal, ao contrário daqueles que eram visíveis e centrados em um opressor. A tecnologia de poder disciplinar torna possível a produção de subjetividade, tema central das pesquisas de Foucault, por contraste com a “anormalidade” via “antagonismo das estratégias” (FOUCAULT, 1995, p. 234). Para se descobrir significados de sanidade propunha-se investigar a insanidade, e outros pares opostos, tais como, a saúde-doença ou a legalidade-ilegalidade. Foucault denomina de “práticas divisoras” a forma de poder que faz do indivíduo um sujeito, ou seja, que faz uma divisão no seu interior e em relação aos outros. Produzir o sujeito requer um olhar sobre dois significados da palavra sujeito: “sujeitá-lo a alguém pelo controle e dependência, e preso à sua própria identidade por uma consciência ou autoconhecimento. Ambos sugerem uma forma de poder que subjuga e torna sujeito a.” (FOUCAULT, 1995, p. 235). Tal dinâmica de poder observa, fiscaliza e compara o comportamento humano calculativa e relativamente a um grupamento ou coletivo, sob pena de micropenalidades associadas ao corpo, retoricamente justificadas em um discurso de medidas de ordem, saúde e segurança.

Assim, na visão do filósofo, a fim de produzir a construção da “normalidade”, na sociedade disciplinar, investia-se em estratos mais fragilizados como os de crianças, ou aqueles mais marginalizados como os de “delinquentes”, “doentes” ou dos considerados “loucos”, vis-à-vis seus opostos. Configurava-se em um processo complexo de individualização descendente viabilizado pelas novas tecnologias de poder, de forma anônima e funcional, por meio da disciplina e do cumprimento à norma (Foucault, 2010, p.217).

Ainda que o indivíduo seja o foco de atenção para a construção da Sociedade Disciplinar, para compreender tal tipo de sociedade e as relações de poder nela inerentes, é necessário descontruir concepções tradicionais, pois, na verdade, “o poder funciona (...) o poder se exerce em rede” (FOUCAULT, 2005, p. 35).  Trata-se de rejeitar os desdobramentos do poder em suas formas “pejorativas” para se alcançar o que se pode maquinar de “verdade” e “conhecimento” através das descobertas de “produção entre sujeito, campos de objetos e rituais disciplinares”.  

O indivíduo é sem dúvida o átomo fictício de uma representação “ideológica” da sociedade; mas é também uma realidade fabricada por essa tecnologia específica de poder que se chama a “disciplina”. Temos que deixar de descrever sempre os efeitos de poder em termos negativos: ele “exclui”, “reprime”, “recalca”, “censura”, “abstrai”, “mascara”, “esconde”. Na verdade, o poder produz; ele produz realidade; produz campos de objetos e rituais da verdade. O indivíduo e o conhecimento que dele se pode ter se originam nessa produção (Foucault, 2010, p.218).

 

Foucault procura explicar que o exercício bem-sucedido do poder estava centrado no funcionamento de suas relações, na forma de governar o outro, ou seja, determinar e conduzir a conduta do outro, e isso não pode ser simplificado apenas a uma ideia da conservação-reprodução das relações de produção. Tais relações precisam estar fundeadas na formação de uma triangulação entre “poder, direito e verdade” emergindo sem dissociar-se da força do discurso. Assim, o autor descreve que “somos submetidos pelo poder à produção da verdade e só podemos exercê-lo através da produção da verdade” (FOUCAULT, 2017, p. 279).

Destaca-se também a revisão da proposta inicial de Foucault, que complementa sua análise disciplinar com a noção de governamentalidade, tratando das tecnologias de segurança exercidas sobre o “corpo social” para fomentar discursos de “verdade” e gerir comportamentos coletivos. Na concepção atualizada de Foucault, o mecanismo biopolítico é uma forma de poder ainda mais sutil, que nunca evidencia seus efeitos, apresentando-se em nome de uma “necessidade de segurança”, estendendo suas relações de poder por todo o corpo social (CHEVITARESE e PEDRO, 2005).

Em relação à Sociedade Disciplinar, Han (2015) argumenta que mesmo que as relações de poder sejam tomadas enquanto dinâmica de produtividade, há que se lidar com a inerência coercitiva no ato de dever, presente no “indivíduo da obediência” desta sociedade. Sendo assim, a produção de subjetividade precisa ser compreendida mais por elementos “proibitivos” do que por aqueles “permitidos”, mais por “mandamentos e leis” a serem cumpridos do que por possibilidades de ação. Por isso, para Han (2015), a Sociedade Disciplinar é determinada pela negatividade da proibição, em que prevalece o “não-ter-o-direito”. Nesta atmosfera, por mais bem disciplinado e aplicado que o sujeito seja, a técnica disciplinar atingirá rapidamente seus limites. E isto ocorre porque o poder que se manifesta pela negatividade “verga as vontades e nega a liberdade” (HAN, 2018a, p.25).

Em Capitalismo e impulso de morte, Han (2021c) acrescenta mais elementos no sentido de demonstrar os limites que emergem neste tipo de sociedade prevalentemente repressora, cuja violência culminava em protestos e tensionamentos capazes de derrubar a relação dominante de produção. Em decorrência dos mecanismos de exploração, proibição e de repressão, o autor destaca os atos de manifestação e resistência que acompanham os efeitos da negatividade. Han (2015), acompanhando a análise antecipada por Deleuze (1992; 2000), sinaliza os desgastes de governamentalidade e a vulnerabilidade do sistema de poder pela tecnologia disciplinar.

Em sua análise sobre as Sociedades de Controle, Deleuze (1992; 2000) acrescenta à discussão de biopoder de Foucault (2010), tendo em vista a dinâmica do capitalismo e o desenvolvimento de novas tecnologias, a problematização do controle para além do modelo panóptico tradicional. Assim, Deleuze destaca a substituição das edificações arquitetônicas e ópticas da sociedade anterior, em função do surgimento de novas configurações espaço-temporais mais apropriadas para formas de produção operáveis em ambientes abertos e não mais em meios de confinamento, como outrora, eram, nas Sociedades Disciplinares.

São as sociedades de controle que estão substituindo as sociedades disciplinares. “Controle” é o nome que Burroughs propõe para designar o novo monstro, e que Foucault reconhece como nosso futuro próximo. Paul Virilio também analisa sem parar as formas ultrarrápidas de controle ao ar livre, que substituem as antigas disciplinas que operavam na duração de um sistema fechado (DELEUZE, 2000, p.220).

 

Perspectivas deste deslocamento da Sociedade Disciplinar para a Sociedade de Controle trazem como evidência “a crise de todos os meios de confinamento” e, como consequência, o enfraquecimento das instituições tradicionais com fronteiras rígidas e o surgimento de novas estruturas espaço-temporais mais flexíveis.

Considerando a transição entre as sociedades disciplinar e de controle, Deleuze (2000) caracteriza as arquiteturas de confinamento disciplinares como “moldagens”, indo de uma instituição a outra, na medida em que separam estágios e criam ciclos de inícios e términos de atividades durante a vida, enquanto aquelas de controle seriam “modulações” que de forma distinta, fazem estes ciclos ininterruptos e simultâneos. Sugere, portanto, que o homem da disciplina e da obediência, em confinamento, esteve sempre à mercê de um recomeço e “era um produtor descontínuo de energia” (DELEUZE, 2000. p.223). Já o homem do controle não encerra uma atividade. Ele estará sempre modulando atividades umas nas outras, se mostrando “ondulatório, funcionando em órbita, num feixe contínuo” (DELEUZE, 2000. p.223).

Ao aprofundar as distinções sobre as sociedades, Deleuze (2000) ressalta elementos presentes na linguagem que também são próprios a cada uma delas: linguagem analógica (disciplinar) como foco indivíduo-massa[4] e linguagem numérica (controle), através de cifras que autorizam e rejeitam – reforçando a concepção de modelagem e modulação nas respectivas sociedades. O autor lança mão da metáfora da toupeira e da serpente para ilustrar tal distinção. A primeira é capaz de transitar bem em ambientes fechados e a segunda necessita de espaços mais abertos para seus movimentos e flutuações.

A leitura de Han (2018a) sobre a metáfora da toupeira e a serpente é que a primeira representa um sujeito “submisso” e a segunda um “projeto”. A toupeira é trabalhadora e, como visto, por mais disciplinada que venha a ser, não alcança grandes níveis de produtividade. Já a serpente, supera as limitações encontradas pela toupeira, através de novas formas de movimento. Se abre para a competição fazendo alusão a um “empreendedor que se motiva”. Na visão de Han (2018b), enquanto projeto, nos lançamos a uma condição de deslocamento potencialmente infinito quando “deixamos de nos pensar como um sujeito que se submete e nos vemos antes como um projeto que delineamos e otimizamos” (HAN, 2018b, p. 57). Tal análise encontra-se em sintonia com Deleuze (2000), que já havia indicado a crise das instituições, a partir de uma nova lógica de gestão do dinheiro, dos produtos e dos homens, destacando a empresa tomando o lugar das fábricas e a atividade de marketing figurando como instrumento de controle social.

Discussões sobre tais modificações de uma sociedade para outra se mostraram relevantes, principalmente sobre as repercussões da dinâmica do capitalismo de consumo e relações de um lado de dominação, e de outro, escolha e liberdade. Em outras palavras, tais formulações produzem a sensação de indivíduos livres e ativos e, de forma mais invisível, alimentam e fortalecem os mecanismos de sujeição, modulando “subjetividades controladas” (CHEVITARESE e PEDRO, 2005).

É a partir destas reflexões de cenários e deslocamentos, das Sociedades Disciplinares para as de Controle, que Han (2018a) identifica a transição para uma nova sociedade que se constitui em sintonia com o regime neoliberal deixando de se apoiar na “biopolítica que se organiza como corpo para dar lugar a ‘psicopolítica’ que se comporta como alma” (HAN, 2018a, p.30).

A psicopolítica como técnica de dominação abandona a ideia de determinação de deveres e condução coercitiva do outro, através das disciplinas rígidas e micropenalidades sobre o corpo. Como previsto por Deleuze, “muitos jovens pedem estranhamente para serem motivados, solicitando por novos estágios e formação permanente” (DELEUZE, 2000, p. 226). Sucede-se, portanto, uma nova tecnologia de poder e de dominação do indivíduo, sujeitos à “liberdade” de suas próprias “iniciativas pessoais: em que cada um se comprometa a tornar-se ele mesmo” (HAN, 2015, p.26), configurando uma nova perspectiva de “economia do si-mesmo”.

 

A Sociedade do Desempenho e do Cansaço: o excesso de positividade e a ausência de negatividade

Han (2015) recupera as discussões de disciplina e controle, apresentando um novo locus de análise, antes centrado nas instituições tradicionais e, agora, ofertado em uma miríade de espaços como academias, shoppings, bancos, aeroportos que constituem o cenário da Sociedade do Desempenho como denominou e, por efeitos correlatos, uma Sociedade do Cansaço.

O paradigma que se instaura, agora, vislumbra não somente uma mera geração de produção, mas sim sua maximização de circulação de bens e, sobretudo, de produção imaterial com a ampliação do mundo digital, e o crescimento de lucros. Substitui-se a disciplina pelo desempenho ou “pelo esquema positivo do poder. A positividade do poder é bem mais eficiente que a negatividade do dever” até porque “o poder, porém, não cancela o dever” (HAN, 2015, p.25). A positividade é descrita pelo autor como um estímulo à hiperatividade que facilita a maximização da produção. Tal lógica edifica uma nova tipologia de sujeito, que ainda que seja disciplinado, não o é produzido por outro e, sim, por si mesmo, se mostrando um empreendedor de si mesmo. Neste sentido, almeja acumular projetos diversos, guiado pela própria motivação, se mostrando mais ágil e ávido por resultados, comparativamente àquele da obediência.

Na Sociedade do Desempenho, Han observa o estabelecimento de um panóptico digital de “permeabilidade transparente aperspectivística[5]” (HAN, 2017b, p.57). Diferentemente do panóptico de Bentham, fenômeno da Sociedade Disciplinar, a vigilância, agora, opera através de redes sociais e bancos de dados, os Big Data. Pode-se assemelhar a configuração do panóptico digital presente na atual Sociedade do Desempenho e da Transparência àquela da Sociedade de Controle descrita, um tanto profeticamente, por Deleuze.

          Quando o sujeito compartilha (aparentemente) livre e digitalmente todos os âmbitos da vida em rede, perde sem perceber a privacidade de suas informações pessoais, na medida em que se permite, de forma atuante e voluntária, um nível de exposição que reduz sua existência humana a um mero potencial de relações comerciais no tempo. Ele se torna um número, ou um conjunto de informações de seus padrões de consumo mapeados e avaliados por algoritmos, tratados em grandes coletivos de dados. Han (2021c) destaca os riscos éticos do Big Data e da psicopolítica digital sobre a existência humana:

O Big Data torna possível prognósticos do comportamento humano. O futuro será, desse modo, previsível e manipulável. (...) O Big Data produz um saber de dominação. Isso torna possível intervir na psique humana e influenciá-la, sem que a pessoa a quem isso foi feito perceba. A psicopolítica digital degrada a pessoa humana em um objeto quantificado e manipulável. (...) Com isso, o Big Data anuncia e é indício do fim da vontade livre (HAN, 2021c, p. 44).

 

O filósofo ressalta a intervenção imperceptível sobre as nossas deliberações e vontades, destacando a “indistinguibilidade das relações de liberdade e controle” (HAN, 2021c, p. 54) prevista por Deleuze (2000), visto que as ações do sujeito empresário de si mesmo lhe são concebidas como próprias e voluntárias. A gestão de Big Data por grandes corporações acaba por gerar uma “valoração de tempo de vida como cliente” que consome, navega, deseja, toma decisões e comunica suas ações em rede, para “transformar a pessoa humana inteira, toda sua vida, em um valor puramente comercial” (HAN, 2021c, p.41).  Tais organizações, recursivamente, estimulam a “desproteção digital”, a hiperatividade e a hipercomunicação. Garante-se assim a conectividade entre os indivíduos, sem qualquer capacidade crítica por parte do sujeito, seja em relação ao contexto coletivo ou à sua conduta individual, em defesa da eficiência do sistema capitalista neoliberal.

Os estímulos no panóptico digital são bem-sucedidos porque ocorrem por um tipo de poder inteligente que alisa, encanta, seduz e analgesia as pessoas (HAN, 2021a) que se “submetem à relação de dominação ao consumirem e comunicarem, ou seja, ao apertarem o botão para dar likes” (HAN, 2021c, p.57). Tal tipo de poder não se materializa por força, disciplina, proibição e obediência, mas, sim, por cadência de partilhas, curtidas e pelo prazer instantâneo que afaga a psique humana.

É interessante considerar que ainda que Deleuze tenha previsto as relações de controle e liberdade se fundindo na Sociedade de Controle, é possível perceber em sua análise mecanismos de coação externos articulados ao controle dos indivíduos:

(...) Com uma estrada que não se enclausuram pessoas, mas ao fazer estradas, multiplicam-se os meios de controle (...) e que elas podem trafegar até o infinito e ‘livremente’, sem a mínima clausura, e serem perfeitamente controladas. Esse é o nosso futuro (DELEUZE, 2012, p.12).  

 

Na continuidade da Sociedade de Controle para a Sociedade do Desempenho, amplia-se a ideia de que as bases do controle não são mais localizadas e, sim, pulverizadas e despolarizadas. Desse modo, se tornam transparentes para dar vazão ao capital, com suas mercadorias consumíveis, circuláveis, sem distância e sem resistência, alicerçando, assim, a lógica do inferno do igual (HAN, 2017c). O sujeito e demais frequentadores do panóptico aperspectivístico passam a edificar e manter tal dispositivo, inclusive, como produtores dos meios de controle e vigilância. E isto se manifesta por “vontade própria” e, não mais por coação externa, agindo, portanto, de forma ativa e voluntária (HAN, 2017c; 2021c).

É nesta toada que Han (2015) concebe, contra intuitivamente, em sua teoria, a ideia da variação entre as noções de positivo e negativo para explicar os mecanismos de produção de subjetividade na Sociedade do Desempenho. Desse modo, nos adverte que a violência neuronal não provém da negatividade, mas, sobretudo, do exagero de positividade (HAN, 2015), da incapacidade de processamento do indivíduo em um mundo de hiperprodutividade em franca aceleração. A positividade é percebida pelo excesso de estímulos, informações, circulação de bens materiais e imateriais (como, por exemplo, a aparência) e impulsos (HAN, 2015). Isto se caracteriza, na visão do autor, como uma violência invisível que acomete o sujeito (HAN, 2017a) e ocorre quando o empreendedor de si mesmo rejeita a negatividade do outro, sendo esta considerada uma violência brutal (HAN, 2017a).

De um lado, a negatividade se caracteriza, no instante inicial, como algo que provoca limite, tensão, dor, conflito. De outro, atos que envolvem um chamamento ao pensar, de ruminar sobre algo, se demorar sobre o outro e os significantes, refletir, contemplar e poetizar a vida. O autor explica que tais sentimentos e atitudes são práticas negativas que provocam tensionamentos, mas que nos “imunizam” com o tempo, nos “protegendo de uma violência maior”. Em contraposição, na dinâmica da positividade, o sujeito se autoexplora em meio a uma abundância de estímulos, informações e impulsos oriundos da superprodução, do super desempenho ou da super comunicação para responder ao imperativo do desempenho, do poder ilimitado e da cultura de significados (HAN, 2020a). “Se o verbo da Sociedade Disciplinar era dever, o da Sociedade do Desempenho é poder” (HAN, 2017a).

Consequentemente, há uma falta de defesa imunológica[6] face à violência da positividade imanente ao sistema. A dialética da negatividade (HAN, 2015) permite a infiltração e o contraste do outro, que inicia um processo de defesa, imunizando o sujeito do outro e, também dele mesmo, de seu si narcísico. Ao negar-se ou descapsular-se de seus processos ensimesmados permite-se algum nível de violência da negatividade do outro no si, que culmina, ao fim e ao termo, por lhe fruir e infundir vida (HAN, 2018a).  

Assim, a dialética da negatividade (HAN, 2015) ao tempo que cria tensão, no desfecho, também oferece “cura”. A questão que Han suscita é que vivemos um inferno do igual em que se explora a violência da positividade pelo excesso do igual ou pela proliferação de idênticos (HAN, 2018a) e ficamos expostos a um alter que, sem se valer de sua diferença, não estimula a atividade de nosso sistema de defesa e nem nos impele a fazer escolhas. Cabe, portanto, investigar melhor o problema da alteridade no âmbito da Sociedade do Desempenho em que vivemos.

Em tempos de abundância de coisas, do consumo desenfreado, de informação, de comunicação, e de maximização da produtividade, a Sociedade do Igual não parece se dispor a mediações, nem estabelecer diálogos com abertura para alteridade e a diferença, tampouco se lançar para a atividade crítica e construtiva da experiência do pensamento. Na concepção de Han, tais atitudes ameaçam à capacidade humana de desenvolver defesa imunológica, de evitar estados patológicos como os da depressão e do burnout e, sobretudo, limitam as possibilidades do refazimento do si mesmo.

 

 

 

Alteridade atópica e o papel do Eros

No cenário contemporâneo, um dos elementos que cabe destaque é a ressignificação na noção de “confiança”. Se antes confiar dependia da articulação de relações humanas e laços sociais, hoje tal atitude encontra-se submetida à dinâmica tecnológica do monitoramento contínuo. O sujeito troca a prática da confiança em um outro com o qual relaciona-se, pelo controle através do registro absoluto das experiências vividas, seja por meio de câmeras, por emprego de GPS ou outros mecanismos de rastreamento, por sua própria autoexposição nas redes sociais ou pela coleta de dados sobre suas atividades de navegação – fatores estimulados atualmente pela internet das coisas e pela inteligência artificial. Assim, Han nos relata que

confiar torna possível as relações com as outras pessoas, mesmo sem conhecê-las bem. A conexão digital torna mais fácil obter informações, na medida em que a confiança como prática social é cada vez mais insignificante. Ela dá lugar ao controle. A sociedade então, tem uma estrutura similar à sociedade do controle. Onde informações são obtidas de modo muito fácil, o sistema social da confiança passa a ser de controle e transparência (HAN, 2021c, p.53).

 

Embriagamo-nos pela proximidade que a conexão digital viabiliza, perdendo a capacidade de um “olhar distanciado, um pathos da distância” (HAN, 2018b, p.11), um respeito que requer uma atenção ao nosso observar e conviver ligados à “nominalidade” (HAN, 2018b. p. 14). Trocamos o respeito de modo nominal em prol de uma comunicação mais anônima, ágil, e abundante de dados, desconstruindo ideias de respeito e confiança como laços sociais apoiados na “crença nos nomes” (HAN, 2018b. p. 14). Com isto, permite-se a aparência e a exposição desmedida em favor de “controle e transparência”.

Em função da não participação do alter nominal em diálogo com o sujeito do desempenho, “a rede transforma-se numa caixa de ressonância especial, numa câmara de eco da qual foi eliminada toda a alteridade, toda a estranheza” (HAN, 2018c, p. 14) – fenômeno que tem ocorrido de maneira imperceptível na atualidade.  Ao tempo em que as relações de indivíduos são cada vez mais “anônimas”, sem respeito e confiança apoiada em laços sociais, há também uma perda de mediação, de importância e de interação com a negatividade da alteridade. Tal fenômeno se configura mais evidente, principalmente, com a eliminação da alteridade atópica (HAN, 2017a). Desarticula-se a possibilidade de uma experiência com o outro concebido enquanto instância não determinada e previsível, ou seja, elimina-se a percepção daquele outro que apresenta características que não podem ser mapeadas, cartografizadas, visto que se desenvolvem por relações de diferença. A alteridade atópica tem forma assimétrica e disruptiva, é “sem-lugar” em função da potência de sua singularidade. Isto se deve ao fato de que “a cultura atual da comparação constante não admite a negatividade do atopos” (HAN, 2017a, p.9).

A falta de uma experiência do tempo que permite o acolhimento do outro (HAN, 2021b) recai num tempo do ego, centrado no esfriamento e indiferença à alteridade. Tal comportamento esgarça a possibilidade da vivência de experiências de velamento e sedução e, consequentemente, compromete-se o vínculo emocional. O que se quer na Sociedade do Desempenho é o outro igual, para que se borrem os limites entre o sujeito e o outro, de modo que sejam amorfos, não havendo distanciamento, nem negatividade, nem dor, nem diferença, falta ou ausência. “Sem distância, a mística e a sedução não são possíveis” (HAN, 2021c, p. 140).

Recuperar o eros, é na visão de Han, ter capacidade de sair da auto-centralidade e abrir-se verdadeiramente para a alteridade, suas diferenças e formas distintas. É poder olhar o outro nos olhos, ouvi-lo e reconhecer sua alteridade e idiossincrasias. Han (2018c) em diálogo com Heiddeger[7], discute a aspiração do outro, ligando eros, sua diferença e a atividade de pensar, sobretudo para o alcance de um processo de cognição que o sujeito ainda não foi capaz de acessar. Assim, “eros conduz e seduz o pensamento pelo intransitado, pelo outro atópico” (HAN, 2017a, p. 91), sendo, portanto, responsável por vitalizar e transformar o pensamento.

Sem eros, o sujeito se extravia, e só vê significado onde reconhece a si mesmo. É só quando se dá conta de não-poder-poder que surge o outro.

Não por acaso, Sócrates enquanto amante, chama-a de atopos. O outro que eu desejo (begehre)[8] e me fascina é sem-lugar (...). Não é apenas a oferta de outros outros que contribui para a crise do amor, mas a erosão do Outro, que por ora ocorre em todos os âmbitos da vida e caminha cada vez mais de mãos dadas com a narcisificação do si-mesmo. (...) O eros é precisamente uma relação com o outro, que se radica para além do desempenho e do poder. Seu verbo modal negativo é não-poder-poder (HAN, 2017a p. 6-13).

 

          O que Han procura explicar é que há um processo de oferta não apenas de “outros outros” que coloca em risco a recuperação do eros, mas sobretudo por uma erosão paulatina do Outro. Ao se relacionar com o outro igual em relações de desempenho, perde-se de vista quem ele é, o que o constitui como significante, o que pode oferecer de diferente e singular. Em tempos da narcisificação do si mesmo, que se distingue da ideia de desenvolver-se o amor-próprio, e ao se dar conta do não mais poder, o sujeito percebe que “é a alteridade que sustenta o outro como determinação essencial” (HAN, 2017a, p.25). A negatividade da alteridade e a atopia do outro se subtraem de toda e qualquer normatização, sendo base constitutiva para a experiência erótica (HAN, 2019). Desta forma, eros não se submete ao poder hegemônico e, por consequência, é atopos. Recuperar o eros é na visão de Han, algo constitutivo das relações do amor em sua forma mais peculiar e originária, sem meramente possuir, reconhecer e apreender o outro, que são formas de poder e dominação.

Engdahl (2020) acompanha o raciocínio de Han (2017a) e discute o desaparecimento do outro, em vivências de distorção e abordagem quantitativa da conjugalidade. Para a autora, em tal processo, o amor é visto como um negócio: com o “tu podes” destacado por Han (2017a), a alteridade é retirada de cena tornando-se impossível ter atenção ao outro como desejo absoluto, o que pressupõe uma “perda da temporalidade do amor” (HAN, 2021c). A autora retrata que em tais experiências, em que o outro vai sendo erodido e desprezado, o eros vai sendo descaracterizado, se tornando uma fórmula de prazer e consumo entendida como performance e não como experiência erótica. Han (2021c, p.154) tematiza também tal abordagem quando cita que “não há mais amor, pois nos supomos livres, pois escolhemos entre demasiadas opções”. Engdahl procura explicar que, numa cultura de ênfase em liberdade e independência individual, o outro é negligenciado para manter intacta a própria identidade pessoal ou para evitar-se a perda de autoestima. No entanto, a autora elucida que “tanto identidade pessoal e autoestima dependem dos aspectos do amor de liberalidade e entrega” de forma generosa (Engdahl, 2020, p. 26), porque depende-se da diferença radical do outro para o desenvolvimento de uma unidade. Similarmente, Han (2017a) noz diz que

um sujeito do amor é tomado por um tornar-se-fraco todo próprio, que vem acompanhado por um sentimento de fortaleza ao mesmo tempo. Mas esse sentimento não é desempenho próprio de si mesmo, mas o dom do outro (HAN, 2017a, p.11).

 

Como nas passagens de Engdahl (2020) e Han (2017a) acima descritas, às ideias de estima e unidade soma-se também a de estabilidade relatada por Han (2018c, p.31) pela qual “um eu estável (...) surge somente em presença do outro ou que o resgata de seu inferno narcisista”. Ainda que eros represente um papel dual porque o outro ao tempo que é o amado é também o inimigo (HAN, 2021c), e que não posso assimilar completamente, é só através dele que se é “capaz de vencer a depressão” (HAN, 2017a, p.11). Estar deprimido é se ver “incapaz de amar”, é estar em “insolvência psíquica”.

Na análise de Han sobre a constituição da alteridade, evidencia-se que este outro pode ser reconhecido como uma força, uma potência atópica que tensiona o que está presente, articulando mecanismos de dualidade, porque limita, questiona, mas também acolhe quando nos retira da interioridade narcísica. Quando nos encapsulamos, perdemos a possibilidade de vê-lo em sua alteridade dado que nos inundamos por nosso próprio mundo, nossa própria imagem, permanecendo no próprio alcance do si mesmo (HAN, 2021c). Han (2018c) destaca um aspecto enigmático do outro nas relações de amor e cita Nietzsche[9] para trazer um outro exemplo do papel dual da alteridade do outro em enlace ao si mesmo. O enigma do amor para Han, nesta leitura de Nietzsche, está em aprender a decifrar a alteridade do outro e a de si mesmo. “Negar” o outro significa lidar com suas características singulares, suas diferenças mesmo que sejam contrárias, sem eliminá-lo. Quando a dualidade falta, o sujeito “funde-se consigo mesmo” fadigado num tempo do si mesmo (HAN, 2018c).

Han (2021b, p. 37) destaca que uma recuperação erótica das relações de alteridade atópica demanda que “o retorno para si” não deva ser interpretado como uma apropriação violenta do outro, mas, sim, como uma experiência que acolhe a dádiva do outro, que traz consigo uma fraqueza do si em “poder não poder”, uma renúncia, um abandono e entrega do si para se abrir ao outro. Trata-se de reconhecer o outro como “dádiva” e conceder a ele nova experiência de temporalidade, distinta da aceleração que é própria a vida contemporânea. Tal perspectiva em nada relaciona-se com aquela interpretação que diria que “meramente me aproprio de uma parte do outro, de modo que eu permaneço inalterado em mim mesmo” (HAN, 2021b, p. 38). O amor como entrega mútua é uma dinâmica conativa de sobrevivência que permite a pergunta sobre o “bem-viver” (HAN, 2020b), experiência capaz de “vulneração e paixão”, de produzir uma duração, “uma clareira no tempo”, e de envolver-se em uma “metamorfose” (HAN, 2017a; 2021).  

Caberia refletir, como síntese, de que se está diante de um outro atópico difícil de ser cartografizado, por ser singular, incomparável e, por vezes, indisponível. De um eros assimétrico que desequilibra o sujeito através de seu papel dual para depois balanceá-lo e, que, ao tempo que tensiona, se ausenta e o enfraquece, mas também acolhe, fortifica e estabiliza. E fundamentalmente, por via de seus significantes, sua diferença, e sua dádiva, este outro sendo quem é, nega, descapsula e transforma o sujeito em algo que, sozinho, seria improvável de edificar. Ele nutre a cupidez “pelo que ainda não há”, pelo porvir (HAN, 2017a). Deve-se assim, enquanto horizonte ético de reflexões filosóficas, aprofundar a investigação acerca da problemática do lugar do outro, das relações de troca e da recuperação da alteridade atópica no cenário da Sociedade do Desempenho e da Transparência.

 

Considerações Finais

 

O problema da alteridade configura-se na Sociedade do Desempenho diante da compreensão de que reconhecer o alter passa a ser um mecanismo de lida com a negatividade, com o tempo e a mediação. Tais elementos fogem aos padrões exigidos pelo capitalismo contemporâneo e pelo mundo digital no qual estamos inseridos. Fomenta-se a positividade, a formação de idênticos amorfos sob os efeitos narcísicos, em face da lógica da sociedade do igual que precisa equalizar tudo ao seu redor para enfatizar o trabalho, acelerar a comunicação e informação, circular a produção material e imaterial, tudo submetido à máxima visibilidade (HAN, 2017a; 2017b; 2018c; 2021a; 2021c).

Reconhecer a importância da experiência de uma alteridade atópica é um caminho que leva a produção em sentido amplo de diferença, pois exige o diálogo, o reconhecimento da negatividade do outro, que demanda lidar com seu tempo, sua atopia, seu corpo, seu pensamento e seu letramento. Isto representa muito mais que ser um sujeito compassivo. Trata-se de renovar o olhar sobre seu papel, bem como seus imbricamentos no refazimento do si e estar aberto a experiência de sentir, e de pensar sobre o bem-viver, não estando submisso a uma mera economia do sobreviver e expressar afetos narcísicos (HAN, 2017a; 2021c).

Este artigo explorou como Han (2015) desenvolve sua investigação a partir dos deslocamentos da Sociedade Disciplinar para Sociedade de Controle e os efeitos desta análise com o surgimento da Sociedade do Desempenho e do Cansaço.  Versou ainda sobre a variação entre os conceitos de positividade e negatividade, proposta por Han (2015), para fundamentar os mecanismos de produção de subjetividade na Sociedade do Desempenho.

Dispersa e regida pelo sistema do igual (HAN, 2017b) por influência do sistema capitalista neoliberal, pela hiper valorização de ações individuais e por uma padronização do pensamento, tal forma de sociedade compreende alguns fenômenos observáveis, a saber: a transformação de objetos, pessoas e sentimentos em consumíveis, o achatamento das diferenças e singularidades, o desaparecimento da alteridade, da dádiva do outro e a violência neuronal resultante do excesso de positividade (HAN, 2015; 2017a).

Como vimos nos cenários de deslocamento das sociedades, percebemos distinções e modificações nas relações de poder e o papel da alteridade figurando em cada uma delas. Ao recapitular-se tais caracterizações societárias, pode-se defrontar nas disciplinares, tipicamente uma sociedade da negatividade, com um outro opressor distribuído em várias figuras de forma anônima, em uma configuração de vigilância e punição desejante por governar o indivíduo e fabricar seu potencial de produção.

Na Sociedade de Controle, este papel de uma alteridade “opressora” vai se dissolvendo para que na Sociedade do Desempenho, pulverize e desapareça significativamente. O sujeito do desempenho é envolto numa sociedade da positividade e do imperativo econômico, cujos mecanismos de poder são deslocalizados e sedutores, não permitindo espaço para mediação com o outro. Em outras palavras, o sujeito percebe-se como um projeto livre e em modulação contínua por si mesmo. Fecha-se e só se relaciona consigo, não percebendo os mecanismos de autoexploração e autocoerção aos quais incorre, ao perder de vista a negatividade do outro. O sistema é eficiente porque não forma um “nós” para impor resistências. É um sistema de indivíduos isolados (HAN, 2018b, 2021c).

Segundo Han (2015), não há como reagir de forma imunológica e firme, ou seja, o sujeito ser capaz de afirmar-se diante do outro, “negando a negatividade dele” (HAN, 2017c), se há ausência de estranheza e falta de vínculo à negatividade. Adicionalmente, Han (2017c, p. 153) diz que “toda e qualquer forma de reação imunológica é uma reação diante da alteridade”. No entanto, parece ser mais factível para o sujeito que empreende a si mesmo, submisso a si mesmo, avançar pelo seguinte percurso: se afastar do lugar do estranhamento, ceder ao apelo ao poder e à vigilância na microesfera do panóptico digital. E, por fim, tornar aquilo que era estranho em algo familiar, como confiar em relações construídas pela conectividade no lugar dos laços sociais contidos na presencialidade e na alteridade do outro. Pela falsa sensação de proximidade do outro com o domínio da psicopolítica digital, diagnostica-se a erosão do outro e o processo de falência do pensamento. Compromete-se, assim, o acesso à possibilidade de experiência do pensamento.

Ao explorar a alteridade atópica e o significado do eros (HAN, 2017a), com seu papel dual no equilíbrio do si, percebe-se uma rejeição do sujeito diante deste alter enigmático e assimétrico. Se o outro é mantido afastado, esta dualidade se esvazia e cultivamos a vida de forma cinzenta, a partir de nós mesmos: sem mediação, sem prioridade ética, sem linguagem de responsabilidade (HAN, 2018c). Culmina-se, portanto, no ápice do fortalecimento do processo de narcisificação e encapsulamento do si mesmo, o que em sequência, o leva às doenças neuronais a partir do “não-mais-poder-poder” (HAN, 2015).

Pode-se extrair da visada filosófica de Han que necessitamos de depreender-nos, sem apressamento sobre as relações entre amor, conhecimento e transformação, em um exercício de saber filosófico, social e cultural. A máxima de produtividade, para multiplicar bens e informações sem opacidade ou velamento, fenômeno típico da Sociedade da Transparência na era digital, parece não dar espaço para um “morrer-se no outro” convertendo morte em vida, ao se deixar tocar por uma alteridade atópica, um eros assimétrico, em prol de um retorno conciliador para o si (HAN, 2017a; 2020b). Repensar com sensibilidade o lugar do outro nas condições de ser e viver do sujeito na contemporaneidade, pode ser um caminho para manter ativa a vivacidade da vida e a busca pelo bem-viver.

 

 

 

 

Referências Bibliográficas:

 

CHEVITARESE, L. P.; PEDRO, R. M. L. R.  Da sociedade disciplinar à sociedade de controle: a questão da liberdade por uma alegoria de Franz Kafka, em O Processo, e de Phillip Dick, em Minority Report. Estudos de Sociologia (São Paulo), Recife, UFPE, v. 8, n.1, 2, p. 129-162, 2005.

 

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DELEUZE, G. “Controle e Devir” In: DELEUZE, G.: Conversações. RJ: Ed. 34, 1992.

 

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Engdahl, E. The Disappearance of the Other: A Note on the Distortion of Love. Qualitative Sociology Review. Volume XVI Issue 1, 2020.

 

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FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. 37ª edição. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.

 

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HAN, Byung-Chul. Sociedade Paliativa: A dor hoje. Petrópolis, RJ: Vozes, 2021a.

 

HAN, Byung-Chul. Favor fechar os olhos: Em busca de um outro tempo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2021b.

 

HAN, Byung-Chul. Capitalismo e impulso de morte: ensaios e entrevistas. Petrópolis, RJ: Vozes, 2021c.

 



[1] Han (2021c, p.54) descreve a ideia do panóptico de Jeremy Bentham que “concebeu no século XVIII uma prisão que torna possível uma vigilância completa dos prisioneiros. As celas são postas em torno de uma torre de observação que dá ao Big Brother uma perspectiva total. Os prisioneiros são isolados uns dos outros por motivos disciplinares e não devem falar uns com os outros”. Foucault (2010, p. 227) cita que “o panóptico é um local privilegiado para tornar possível a experiência com homens, e para analisar com toda certeza as transformações que se pode obter neles. (...) O Panóptico funciona como uma espécie de laboratório de poder. Graças a seus mecanismos de observação, ganha em eficácia e em capacidade de penetração no comportamento dos homens, um aumento de saber vem se implantar em todas as frentes do poder, descobrindo objetos que devem ser conhecidos em todas as superfícies onde este se exerça”.

[2] As doenças neuronais citadas são a depressão, o transtorno de déficit de atenção com síndrome de hiperatividade (Tdah), transtorno de personalidade limítrofe (TPL) ou a Síndrome de Burnout (SB) (HAN, 2015, p.7).

[3] Foucault (2010, p. 135) explica que as disciplinas são “métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade”.

 

[4] A ideia de Foucault (2000) sobre a concepção de massa é de criar nas raízes da “mecânica do poder” uma “anatomia política”, de atrelar às instituições de confinamento uma organização espacial de corpos “dóceis, úteis e inteligíveis” que se fabricam de forma individuante para formar uma única massa, como se representassem um só corpo. Desta forma, faz-se a máquina de que se precisa, de forma analisável e manipulável.  

[5] “O panóptico digital do século XXI é aperspectivístico na medida em que não é mais vigiado por um centro, não é mais supervisionado pela onipotência do olhar despótico. A distinção entre centro e periferia, essencial para o panóptico de Bentham, desapareceu totalmente” (HAN, 2017, p. 57). Na verdade, a vigilância e o controle ocorrem de todos os lados, por todos, o tempo todo.

 

[6] Han (2021c.p. 150) explica a ideia de “defesa imunológica” da negatividade em entrevista a Ronald Düker e Wolfram Eilenberger: “A negatividade é algo que provoca uma reação de defesa imunológica. O outro é o negativo, então, que se infiltra no próprio, procurando negá-lo e destruí-lo. Eu afirmei que vivemos hoje uma era pós-imunológica. As doenças psíquicas de hoje como a depressão, a TDAH ou o burnout não são infecções causadas por uma negatividade viral ou bacteriana, mas infartos pelos quais é o excesso de positividade que é o responsável. A violência não parte apenas da negatividade, mas também da positividade, não apenas do outro, mas também do igual. A violência da positividade ou do igual é uma violência pós-imunológica. É a obesidade do sistema que adoece. Como se sabe, não há reação imunológica à obesidade”.

[7]É difícil exprimir o outro que, juntamente com o amor por ti, é inseparável do meu pensamento, ainda que seja de modo diferente. Chamo-lhe Eros, o mais antigo dos deuses, segundo Parménides. O golpe de asa desse Deus toca-me sempre que dou um passo essencial no meu pensamento e me atrevo a entrar no não transitado.” (HEIDDEGER, 2005 apud HAN, 2018c p. 70-71)

 

[8] Begehren é um conceito central no livro Agonia do Eros. O tradutor criou notas explicativas para apresentar a tradução desta palavra do alemão para o português. Na versão em português, begehren é traduzido como “cupidez”; quando o verbo é conjugado, optou-se por “desejar” (HAN, 2017a p. 11).

[9]Em que consiste o amor senão em entendermos, alegrando-nos com isso, que há outro que vive, age e sente de maneira diferente da e até mesmo oposta à nossa? Para que o amor ultrapasse as oposições valendo-se da alegria, é necessário que não as elimine, que as negue. O próprio amor a si mesmo implica como condição prévia a dualidade (ou a pluralidade) não miscível numa mesma pessoa” (NIETZSCHE, 1967 apud HAN, 2018c, p. 84).

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