Edição Atual

  

Revista Sísifo – Feira de Santana – (2014-)

nº 16, Vol. 1, Janeiro/Junho 2023

Filosofia – Periódicos

ISSN: 2359-3121



Revista Sísifo. Nº 16, Vol. 1, Janeiro-Junho 2023 

Dossiê: A Filosofia em Jogo e o Jogo da Filosofia (Volume 1)


Apresentação

Há uma visão bastante corrente de que a filosofia seria uma disciplina "séria". O trabalho com conceitos, a análise rigorosa de argumentos e a reconstrução sistemática das ideias de grandes filósofos aparecem, frequentemente, como uma tarefa árdua, preocupada com as questões mais sérias e complexas da humanidade e que, por isso, exigiria seriedade, rigor e até mesmo solenidade. 

Nesse contexto, parece natural, então, considerar que o tema do jogo e da brincadeira não seja um tema apropriado à filosofia. Afinal, parece que, nele, lidamos com aquilo que tem as características exatamente opostas àquelas exigidas pela filosofia: a leviandade, a diversão, a troça, o entretenimento, a distração, a brincadeira. Querer considerar o jogo como um tema a ser considerado seriamente pela filosofia parece ser quase um contrassenso, como querer transformar um enterro em um cenário de stand-up comedy. Como considerar seriamente aquilo que, por definição, não é sério? E como o que não é sério poderia contribuir para se refletir seriamente sobre questões igualmente sérias? 

Essa visão corrente, porém, se sustenta apenas a partir de uma compreensão, ela sim, superficial, não apenas do que seja o jogo, mas, também, do que seja o papel da própria filosofia. Afinal, como já lembrava Huizinga em seu clássico Homo Ludens, sob muitos aspectos, não há nada mais sério do que o jogo. Há uma seriedade própria ao ato de se jogar um jogo que, de muitas formas, não é diferente da seriedade que verdadeiramente interessa à filosofia, a seriedade, não da aparência, mas do pensamento. 

Aqui, temos em mente a brilhante distinção que Roberto Gomes faz, não por acaso, em sua Crítica da Razão Tupiniquim, entre ser sério levar a sério. Aquele que é "sério" busca, antes de tudo, transmitir uma aparência de seriedade, ou seja, de lidar com temas que são "sérios", no sentido de serem reconhecidos, terem respaldo institucional, serem considerados relevantes pela perspectiva hegemônica. Ou seja, o ser sério, aqui, consiste, na verdade, antes de mais nada, em aparentar seriedade, transmitindo a imagem de quem lida com temas "de respeito", de modo que se possa conseguir, assim, status e benefícios graças a essa aparência de seriedade. 

Outra coisa muito distinta é o levar a sério, que tem a ver não com buscar transmitir uma aparência de si mesmo como sério, mas sim de pensar até as últimas consequências o seu objeto, comprometer-se com a investigação verdadeiramente rigorosa dele, mesmo quando isso nos obriga a abandonar os pressupostos consolidados a seu respeito. E, nesse sentido, há poucas atividades que nos encorajam a levar a sério aquilo que fazemos tanto quanto o jogo, pois o jogo, em vez de nos inibir, nos encoraja a explorar todas as suas possibilidades, até as últimas consequências, mesmo quando isso significa subverter o jogo, transformá-lo, brincar com a forma do próprio jogo. E é por isso que o jogo não apenas promove o tipo seriedade que realmente interessa à filosofia, como é, ele, mesmo, uma preciosa e importante janela para a compreensão de algumas das atividades mais propriamente humanas, bem como para aquilo que seria constitutivo da liberdade própria a elas. 

Nesse sentido, este primeiro volume do nosso dossiê - ao qual um segundo deve se seguir em breve -, fornecemos também uma pequena janela para as potencialidades que a reflexão sobre o jogo têm, não apenas para pensar temas caros à filosofia, mas para compreender nossas próprias vidas hoje a partir do papel inquestionável que jogos têm nela. 

Nesse contexto, não por acaso, começamos este volume com o artigo de Lourenço Fernandes Neto e Silva, Brincadeira e Jogo, onde o autor explora como os conceitos de jogo e de brincadeira são centrais para a análise de Graeber (autor de particular interesse hoje, em função de sua co-autoria de O Despertar de Tudo) acerca de como surgem as leis, a ordem e a burocracia, e de como a dinâmica do seu surgimento só pode ser compreendida se levarmos até as últimas consequências as implicações dos conceitos do autor de jogo e de brincadeira. De fato, segundo Silva, isso nos levaria a reconhecermos, por fim, que há um deslize conceitual próprio entre essas categorias que é inseparável da própria maneira com que as atividades que eles designam compõem a atividade humana. Mais ainda, tal reconhecimento deve nos permitir ver como, por meio das categorias de jogo e de brincadeira e da transição conceitual entre elas, podemos compreender melhor uma atividade tão fundamentalmente humana quanto a da linguagem. 

Na sequência, Tadeu Rodrigues Iuama, pelo seu artigo, Vilém Flusser, designer de jogos? Um ensaio sobre a ludicidade, no âmbito da Comunicologia, desenvolve uma reflexão acerca do jogo a partir de Flusser conectada ao contexto específico de nossa sociedade digital atual. Se essa sociedade é caracterizada pelo foco na comunicação e no design, e se fazer design é inseparável, em algum sentido, de projetar jogos, então, para entender os modos com que a nossa sociedade opera hoje, e para pensar modos de habitá-la que permitam explorar as potencialidades de liberdade latentes nela, precisamos refletir sobre o que são jogos e sobre como, ao explorar até as últimas consequências suas possibilidades, podemos abrir novos horizontes de vida. 

Seria um contrassenso, porém, pensarmos que levar a sério o tema dos jogos não implicaria em, também, levar a sério as maneiras problemáticas com que eles são usados e incorporados em nossas vidas hoje, a partir de posicionamentos éticos e morais bastante questionáveis que acabam se infiltrando em nossa mentalidade e forma de vida sem nem mesmo nos darmos conta. Nesse sentido, os artigos de Heitor Coelho e Danilo Bantim Frambach, Serious game ético: A “Máquina Moral” do MIT como educadora, e de Camila Braga Soares Pinto e Leandro Pinheiro Chevitarese, Digitalização e Gamificação da vida: uma leitura crítica a partir de Byung-Chul Han, são um componente central deste dossiê. Isso porque, em primeiro lugar, o artigo de Coelho e Frambach mostra como se pode incorporar, no design de um serious game como a "Máquina Moral" do MIT, pressupostos sobre escolhas morais que são reproduzidos de modo irrefletido por aqueles que jogam, e de modo que serve apenas para reforçar seus preconceitos sobre quem merece ou não ser salvo. Em segundo lugar, o artigo de Soares Pinto e Chevitarese mostra como mesmo os jogos são, em nossa sociedade hoje, subvertidos pela lógica de uma "gamificação" de nossa sociedade digital e do desempenho que, em vez de nos encorajar a desfrutar do tempo do ócio, nos estimula a buscarmos sempre o aprimoramento de nosso desempenho, transformando tudo em uma competição pela melhor performance. 

Por outro lado, é importante notar que, sendo o fenômeno do jogo um fenômeno complexo e multifacetado, isso não poderia ser diferente no âmbito dos jogos digitais, de modo que não apenas há jogos digitais que não operam segundo a lógica da competição e da power trip do desempenho de derrotar os adversários, mas que, mais do que isso, subvertem essa mesma lógica a partir de dentro, convidando a uma reflexão crítica sobre a nossa condição enquanto seres humanos em nossa sociedade hoje e sobre a possível emancipação dessa sociedade totalizante e opressora, emancipação que se daria por meio da abertura ao que há de inumano no próprio humano. Nesse sentido, o ensaio de Gabriel Bichir, Trilogia do Inumano, uma coleção de três ensaios publicados anteriormente no site LavraPalavra, é de grande valia para este dossiê, uma vez que se propõe a desenvolver uma crítica imanente sobre três jogos: Inside, Life is Strange e Nier Automata. Nessa crítica, Bichir explora como, nesses jogos, há uma subversão da forma dos jogos pelo conteúdo que busca (mesmo que nem sempre seja bem-sucedida), de diferentes maneiras, levar a forma desses jogos às suas últimas consequências e, assim, subvertê-las. O que, ao mesmo tempo, nos colocaria, em cada um desses jogos, diante de uma reflexão sobre a nossa própria condição enquanto sujeitos submetidos ao mecanismo implacável do capitalismo tardio e sobre as possibilidades de se deslumbrar uma outra vida, uma utopia que se abriria para nós na dimensão do inumano, e que se expressa nesses jogos por meio da subversão da forma desses jogos, do gênero a que cada um deles pertence e das expectativas próprias a ele. Isso porque cada um dos jogos, por meio de seu conteúdo, quebra a ilusão da agência humana, ao menos entendida como a agência de um indivíduo que age de modo que suas escolhas meramente individuais sejam realmente relevantes e transformadoras para sua própria vida, como se fosse um sujeito onipotente, tal como jogos digitais, de fato, muitas vezes podem nos levar a nos sentirmos.

Para concluir, e para mostrar, acreditamos, de forma conclusiva, não apenas como jogos merecem ser tema de reflexão filosófica, mas como é de fato possível desenvolver uma pesquisa sobre eles em filosofia, encerramos o dossiê com a entrevista de Celeste Pedro, que foi pesquisadora no projeto "From Data to Wisdom - Philosophizing Data Visualizations in the Middle Ages and Early Modernity (13th-17th Century)" no Instituto de Filosofia da Universidade do Porto. Celeste estudou um jogo desenvolvido por João de Barros em sua obra “Diálogo de preceitos morais (...) em modo de jogo” a fim de ensinar teoria moral com base na "Ética" de Aristóteles. O trabalho de Celeste é notável de muitas maneiras. De fato, não apenas ele mostra que já há muito tempo há uma ligação íntima entre a reflexão filosófica e a atividade lúdica, em que se pensa que a última pode inconfundivelmente levar a conhecimentos de ordem filosófica, mas também mostra como tomar o jogo como objeto de estudo filosófico pode ser central para preencher lacunas em nossos conhecimentos dos próprios autores que estudamos. Afinal, como afirma Celeste, apesar de João de Barros ser um autor muito estudado, poucos pesquisadores buscaram se debruçar a sério sobre esse livro, levando às últimas consequências suas ideias, ou seja, buscando realmente jogar o jogo ou reproduzir uma versão jogável do mesmo. Em Celeste, vemos convergir perfeitamente o levar a sério a pesquisa e o levar a sério o jogo como objeto de pesquisa.

Como mencionado, este volume é ainda apenas o "primeiro episódio" dessa busca por, contrariando o imperativo de "ser" sério, levar a sério a reflexão filosófica, ao ir aos limites daquilo que foi pensado por ela e, portanto, pensar o próprio jogo até as suas últimas consequências. Esperamos que aproveitem a leitura, e que se mantenham acompanhando a revista, para o "segundo episódio" desta série! 


Lucas Nascimento Machado

Editor da Revista e Organizador do Dossiê


Revista Sísifo. Nº 16, Vol. 1, Janeiro-Junho 2023: Dossiê "A Filosofia em Jogo e o Jogo da Filosofia"


Brincadeira e Jogo

Lourenço Fernandes Neto e Silva

visualizar | PDF 1-15


Vilém Flusser, designer de jogos? Um ensaio sobre a ludicidade, no âmbito da Comunicologia

Tadeu Rodrigues Iuama

visualizar | PDF 16-32


Serious game ético: A “Máquina Moral” do MIT como educadora

Heitor Coelho

Danilo Bantim Frambach

visualizar | PDF 33-52


Digitalização e Gamificação da vida: uma leitura crítica a partir de Byung-Chul Han

Camila Braga Soares Pinto

Leandro Pinheiro Chevitarese

visualizar | PDF 53-72


Ensaios e Entrevistas


Trilogia do Inumano

Gabriel Ferri Bichir

visualizar | PDF 73-94

 


Entrevista: Celeste Pedro

Celeste Pedro

Camila Ezídio

visualizar | PDF 95-99