“Liberdade ou morte!” A obra Hegel e o Haiti como resgate da história universal da liberdade


como citar: OLIVEIRA, Carla. Liberdade ou morte! A obra Hegel e o Haiti como resgate da história universal da liberdade. Revista Sísifo. Nº10, v. 1, julho/dezembro2019
Carla Oliveira
Resenha de Hegel e o Haiti, de Susan Buck Morss (São Paulo: n-1edições, 2017)



O estudo Hegel e o Haiti da filósofa estadunidense Susan Buck-Morss, originalmente publicado como livro em 2009 sob o título Hegel, Haiti, and Universal History,1 recebe em 2017, pela n-1 edições, sua primeira edição brasileira em formato de livro, contando com a tradução já conhecida de Sebastião Nascimento e acréscimo de prefácio do professor Vladimir Safatle.2 Essa edição em especial, aqui objeto da nossa resenha, conta com um belíssimo trabalho de diagramação e traz a série de imagens que compõem o estudo da temática, desde obras de arte, a exemplo de pinturas, bem como gravuras, capas e frontispício de jornais.
Susan Buck-Morss é uma filósofa política notoriamente reconhecida por seu trabalho interdisciplinar. Destacada pesquisadora da Filosofia Crítica Alemã e da Escola de Frankfurt, dedica-se também à História da Arte, Arquitetura, Literatura Comparada, Estudos Culturais, História e Cultura Visual. É, portanto, no interior de um espírito interdisciplinar, que a relação entre Hegel e o Haiti é posta por Buck-Morss. O objetivo é elucidar o sentido emancipatório da trama conceitual hegeliana relacionando-a ao contexto histórico da época em que foi pensada. Mais precisamente, trata-se de recuperar, no nosso presente histórico, a relação entre a dialética do senhor e escravo da Fenomenologia do Espírito (1807) e a revolução haitiana de 1804,3 revolução responsável pela independência do Haiti e pela abolição da escravidão no país. Nesse sentido, em uma entrevista à época de sua pesquisa sobre Hegel e Haiti, a autora afirma: “É pouco provável que ele [Hegel], ao conceber a dialética senhor-escravo, não tivesse em mente a existência de escravos reais em países reais (como, por exemplo, nas colônias caribenhas) ou que esses escravos, como o seu escravo filosófico, não fossem capazes de se rebelar” (Bolle et al, 1997, p. 62). E acrescenta: “Ao percebermos que Hegel está descrevendo condições históricas reais […], sua filosofia torna-se legível como um comentário da época” (Bolle et al, 1997, p. 62).
Como destaca Safatle, a leitura proposta por Buck-Morss é original por “elevar um dos momentos fundamentais da transformação da filosofia da consciência em teoria do reconhecimento à condição de porta de entrada para o problema da escravidão na cena filosófica” (Safatle, 2017, p. 10). Hegel elabora um modelo conceitual de reconhecimento que articula a constituição do sujeito para fora da lógica da autoidentidade abstrata, se valendo de um contexto de interação intersubjetiva e social marcada sobretudo pelo conflito. Assim, a dialética do senhor e escravo descreve a lógica do reconhecimento sob o ponto de vista do conflito: o reconhecimento, posto originariamente em uma relação entre o Eu e o Outro, não está dado de antemão, mas deve ser mediado por uma luta de vida ou morte entre os sujeitos desejantes de seu reconhecimento como sujeitos livres, afinal, “o indivíduo que não arriscou a vida pode bem ser reconhecido como pessoa; mas não alcançou a verdade desse reconhecimento como uma consciência-de-si independente” (Hegel, 2011 [1807], p. 146, §187).
Assim, para Buck-Morrs, o conflito que está na base da conquista da liberdade na dialética hegeliana do reconhecimento é inspirado na Revolução pela Independência do Haiti, revolução que levou à abolição da escravidão moderna naquele território. Ao propor que o termo “escravo” da dialética hegeliana refere-se à escravidão no Haiti, a autora põe a escravidão moderna na interior do debate filosófico moderno, denunciando o silêncio da filosofia política da época que, notoriamente e contraditoriamente, era de inspiração iluminista.4
Desse modo, a narrativa do livro pode ser apreendida por meio de dois momentos relacionados entre si: um primeiro, que põe em evidência a discrepância entre as teorias da liberdade do século XVIII e as práticas colonialistas das nações europeias; e, um segundo momento, que trata da correlação entre a passagem da “dominação e escravidão” na dialética do senhor e do escravo, com a escravidão como instituição moderna.
A discrepância entre as teorias da liberdade e as práticas colonialistas é evidenciada ao verificar que, muito embora o conceito de liberdade aparecesse como “valor político supremo universal” e, a escravidão funcionasse como metáfora para conotar “tudo de mau nas relações de poder”, os pensadores iluministas europeus permaneciam em silêncio diante do crescente mercado capitalista escravista que expandia-se para fora da Europa (Cf. Buck-Morrs, 2017, p. 33-34). Portanto, a concepção de escravidão como mero conceito antitético coexistia com a invisibilidade histórica da escravidão como instituição, como prática colonialista. 

Apesar de a abolição da escravatura ser a única consequência logicamente possível da ideia de liberdade universal, ela não se realizou por meio das ideias, nem mesmo pelas ações revolucionárias dos franceses, mas sim graças às ações dos próprios escravos. O epicentro dessa luta foi a colônia de Saint-Domingue (Buck-Morrs, 2017, p. 57).

A escravidão, portanto, não se resume, historicamente, a um conceito oposto ao conceito de liberdade. No período moderno foi, sobretudo, uma instituição consolidada na expansão colonialista do capitalismo. Desse modo, a Revolução Haitiana (1791-1804), “era a prova de fogo para os ideais do iluminismo francês” (Buck-Morrs, 2017, p. 67).5
É através dos ventos que noticiam a Revolução Haitiana que Hegel tem contato com os acontecimentos em São Domingos. Susan Buck-Morss revela-nos que o filósofo era um assíduo leitor do periódico político Minerva, periódico de grande circulação na virada do século XVIII para o XIX, na Europa. O Minerva destacava-se por cobrir a Revolução do Haiti e, inclusive, reunir documentos e traduções sobre o evento, além de relatos testemunhais. Para a autora, a resposta à pergunta “de onde Hegel tirou a ideia da relação entre senhor e escravo?” estaria precisamente no seu hábito de leitura do Minerva. Por sua vez, a ausência de registro na literatura de comentadores e biógrafos de Hegel da influência da Revolução do Haiti nos escritos do filósofo, deve-se, segundo Buck-Morss, à apropriação marxista “de uma interpretação social da dialética hegeliana”. Para a autora, “Desde a década de 1840, com os escritos de juventude de Karl Marx, a luta entre o senhor e o escravo vem sendo abstraída da referência literal e lida novamente como uma metáfora – dessa vez para luta de classe” (Buck-Morrs, 2017, p. 91). A leitura de Kojéve, de acordo com Buck-Morss, seria a única leitura clássica de viés marxista a não seguir exatamente o mesmo tipo de apropriação. No entanto, é a inflexão racial marxista de C. R. L. James em Os jacobinos negros que, efetivamente, merece destaque.
Pelo estudo de Buck-Morss, pode-se afirmar que a chave interpretativa capaz de identificar a presença da Revolução Haitiana na trama conceitual da dialética do reconhecimento de Hegel, trata-se da consideração da relação entre propriedade (de terra, de meios de produção, de mão de obra) e instituição escravista no interior do ideal de luta por liberdade.6 Afinal, é por meio do conflito, mais enfaticamente um conflito que pressupõe um combate entre vida ou morte, tal qual tematizado por Hegel, que se dá o enfrentamento revolucionário contra a instituição escravista.
Assim, é preciso, antes de tudo, reconhecer a escravidão como instituição moderna da economia capitalista. Como ressalta a autora, no século XVIII:


O entendimento clássico da economia – e, portanto, da propriedade escravista – como uma questão privada e doméstica foi frontalmente desmentido pelas novas circunstâncias globais. O açúcar transformou as plantações coloniais das Índias Ocidentais. Intensivas simultaneamente em capital e trabalho, a produção de açúcar era proto-industrial, gerando um aumento acentuado na importação de escravos africanos e uma intensificação brutal da exploração de sua mão para fazer frente a uma nova aparentemente insaciável demanda europeia pela doçura viciante do açúcar (Buck-Morss, 2017, p. 49).

Era precisamente a colônia francesa de São Domingos que destacava-se na produção de açúcar, cuja demanda por escravos crescia infinitamente. De acordo com Buck-Morss, a burguesia francesa dependia em mais de 20% da exploração da mão de obra escrava de origem africana (Cf. Buck-Morrs, 2017, p. 49). Para Hegel, na dialética do senhor e escravo, a relação de dominação e escravidão sustenta-se precisamente pelo trabalho de um para consumo de outrem, no caso, pelo trabalho do escravo que vê-se obrigado a produzir para o consumo do senhor. O escravo, carente de reconhecimento, “trabalha a coisa independente”, a natureza, para o consumo imediato do senhor que pode, efetivamente, consumir, aniquilar a coisa, “aquietar-se no gozo” (Hegel, 2011 [1807], p. 148, §190). Significa que o escravo funciona como corpo trabalhador, que trabalha a natureza para que o senhor, este reconhecido como independente, visto que desapegado da natureza, possa efetivamente consumi-la.
Assim, para que os europeus pudessem gozar a doçura do açúcar e acumular riquezas foi necessário a apropriação da natureza por meio do trabalho escravo. Na medida em que Hegel tematiza a dialética do senhor e do escravo e revela como o consumo do senhor é dependente do trabalho real da natureza, não é mais possível pensar em um sujeito abstrato que goza de um mundo inteiramente à sua disposição independentemente do trabalho - neste caso, do trabalho escravo. Se as teorias iluministas não reconhecem a instituição escravista, é precisamente por compartilharem uma “visão senhorial [colonial] do mundo”, na medida em que associam o progresso da razão com a dominação abstrata da natureza.7
Do ponto de vista da economia capitalista escravista, a relação de dominação estabelece o reconhecimento do senhor como sujeito livre na medida em que ele é proprietário da força de trabalho do escravo. Fora da esfera do consumo, o escravo está presso ao nível da natureza, à manutenção da sobrevivência do seu corpo trabalhador que é propriedade de outrem. O escravo torna-se livre quando toma para si a sua força de trabalho.
Na dialética senhor e escravo, o escravo reconhece a sua independência precisamente quando se reconhece na coisa trabalhada. Diferentemente do senhor que aniquila a coisa e goza de uma satisfação evanescente, visto que subtrai o lado objetivo da coisa, o trabalho do escravo forma. Por ser desejo refreado, o trabalho não aniquila a coisa, mas a forma, a trabalha efetivamente. É a compreensão do seu agir formativo, que transforma a natureza, que faz com o que o escravo intua a si mesmo como consciência livre. A Revolução em São Domingos teve como resultado a efetivação dessa liberdade. Em consequência, a autolibertação dos negros no Haiti forçou o reconhecimento por parte dos brancos europeus e americanos.


A revolução real e vitoriosa dos escravos caribenhos contra seus senhores é o momento em que a lógica dialética do reconhecimento se torna visível como a temática da história mundial, a história da realização universal da liberdade. Se o editor de Minerva, Archenholz, relatando a história à medida que acontecia, não chegou a sugerir isso ele mesmo nas páginas de seu periódico, Hegel, leitor deles de longa data, foi capaz de ter essa visão. A teoria e a realidade convergiram nesse momento histórico. Ou, para colocar em termos hegelianos, o racional – liberdade – se tornou real. Esse é o ponto crucial para a compreensão da originalidade da argumentação de Hegel, por meio da qual a filosofia explodiu os confinamentos da teoria acadêmica e se tornou comentário sobre a história do mundo (Buck-Morrs, 2017, p. 95).

Susan Buck-Morss sustenta que a interdisciplinaridade é fundamental ao pensamento filosófico visto que ela possibilita retirar a filosofia de uma falsa universalidade - daí a importância do seu trabalho que, a partir do estudo histórico, potencializa o resgaste “da história universal humana dos usos aos quais a dominação branca a condenou” (Buck-Morrs, 2017, p. 117). Para a autora, o projeto humano da liberdade universal não deve, portanto, ser descartado, “mas resgatado e reconstituído sob novas bases” (Buck-Morrs, 2017, p. 117). Assim, Buck-Morss defende que o próprio pensamento de Hegel deve ser justaposto ao pensamento dos revolucionários haitianos, tais como o próprio Toussaint-Louverture, líder da revolução haitiana. Diante do acontecimento histórico que fora a Revolução Haitiana, é, de fato, imprescindível para o trabalho filosófico humanamente engajado o resgaste da história universal da liberdade de uma narrativa unívoca e autocentrada na particularidade branca e europeia.


Referências bibliográficas

Bolle, W., Bonassa, E., & Pitta, F. (1997). Utopia e engajamento (Entrevista com Susan Buck-Morss). Cadernos De Filosofia Alemã: Crítica E Modernidade, (3), 61-68. https://doi.org/10.11606/issn.2318-9800.v0i3p61-68
BUCK-MORSS, S. (2009). Hegel, Haiti and Universal History. Pittsburg: University of Pittsburgh Press.
_______. (2011). Hegel e Haiti. Novos estudos CEBRAP, (90), 131-171. https://dx.doi.org/10.1590/S0101-33002011000200010
_______. (2017 [2000]). Hegel e o Haiti. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo, SP: n-1 edições.
HEGEL, G. W. F. (2011 [1807]). Fenomenologia do Espírito. Tradução de Paulo Meneses. 7ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes.
SAFATLE, V. (2017). Prefácio. In.: BUCK-MORSS. Hegel e o Haiti. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo, SP: n-1 edições.
SANTOS, J. H. (1993). Trabalho e riqueza na Fenomenologia do Espírito de Hegel. São Paulo, SP: Loyola.



AUTORA
Carla Oliveira é Professora de Filosofia do Instituto Federal da Bahia (IFBA). Doutoranda em Filosofia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).



1 Antes de ser lançado originalmente como livro, o estudo foi primeiramente publicado na revista Critical Inquiry, vol. 26, nº 4, 2000, pp. 821-65.

2 A primeira tradução brasileira fora publicada em 2011 na Revista Novos Estudos CEBRAP.

3 Em 1804 a independência do Haiti, sob a liderança de Jean Jacques Dessalines é, enfim, declarada. A revolta teve início em 1791 e foi comandada pelo líder militar Toussaint Louverture. “Quando Napoleão enviou tropas francesas sob o comando de Leclerc para subjugar a colônia, desencadeando uma luta brutal contra a população negra ‘que chegou ao ponto de uma guerra genocida’, os cidadãos negros de Saint-Domingue mais uma vez pegaram em armas, demonstrando como, nas palavras do próprio Leclerc: ‘Não é o bastante afastar Toussaint. Há cerca de dois mil líderes para serem afastados’. Em primeiro de janeiro de 1804, o novo líder militar Jean-Jacques Dessalines, nascido escravo, deu o passo final ao declarar independência da França, combinando assim o fim da escravidão com o fim da condição colonial. Sob a bandeira Liberdade ou Morte (tais palavras foram inscritas na bandeira vermelha e azul, da qual a faixa branca da tricolor francesa havia sido removida), derrotou as tropas francesas, eliminou a população branca e estabeleceu em 1805 uma nação independente e constitucional de cidadãos ‘negros’, um ‘império’ à imagem daquele do próprio Napoleão, ao qual deram o antigo nome aruaque da ilha, Haiti. Esses acontecimentos, culminando na plena liberdade dos escravos e da colônia, não tinham precedente” (Buck-Morrs, 2017, p. 61).

4 De acordo com Buck-Morss, o filósofo político Sala-Molins ao analisar a produção intelectual francesa da época, assustou-se com o silêncio do filósofo Rousseau sobre a escravidão negra. Rousseau sabia, por exemplo, da existência do Code Noir (1685), que definia as condições da escravidão de negros nas colônias francesas.

5 A França tanto foi o país berço dos ideais iluministas como também o país que colonizou o Haiti.

6 É necessário pontuar que a autora privilegia uma leitura emancipatória da dialética do senhor e do escravo.
[7] Vide a historiografia da Holanda: o tratamento do apogeu econômico holandês omite completamente a participação do país na escravidão. (Cf. Buck-Morrs, 2017, p. 40).Cf. também Santos (1993), pela sua crítica à “visão senhorial do mundo”.

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