Rocha Navegável: o choque encantado dos sentidos

 

Revista Sísifo. N°15, Vol. Único 2022. ISSN 2359-3121. www.revistasisifo.com

 

 

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Rocha Navegável: o choque encantado dos sentidos

Rocha Navegável: The echanted chock of the senses


Resenha de: COSTA, Fábio & SOUZA, Igor. Rocha navegável. Salvador: RV Cultura e Arte, 2020, 160p.



Laurenio Leite Sombra.

Professor Titular de Filosofia da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) e membro do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da UEFS. Doutor em Filosofia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: lausombra@hotmail.com. ORCID: 0000-0002-2998-6059.





Em suas Investigações Filosóficas, o filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein (2005, p. 29) compara a linguagem com uma cidade onde se entrelaçam distintos “jogos de linguagem”:

uma velha cidade, uma rede de ruelas e praças; casas velhas e novas, e casas com remendos de épocas diferentes; e isto tudo circundado por uma grande quantidade de novos bairros, com ruas retas regulares e com casas uniformes”.



Naturalmente, o propósito de Wittgenstein, aqui, é pensar a linguagem; para tanto, ele se vale de uma imagem da cidade como sabemos que é: um atravessamento de temporalidades variadas, formas heterogêneas que se cruzam. E, poderíamos acrescentar, que eventualmente se antagonizam ou, ao menos, se estranham. Mas podemos inverter o propósito: tornar a cidade protagonista da observação, desnaturalizando-a, tentando pensar o que significam tantos atravessamentos. E, neste caso, constatar que essas temporalidades são constituídas de várias tensões, antagonismos que podem propiciar disputas, opressões, negociações e naturalmente diálogos.1

Pensar a cidade como protagonista pode ser uma abordagem possível na compreensão da HQ Rocha Navegável, obra concebida a partir do roteiro de Fábio Costa e da arte de Igor Souza. A cidade de Salvador, especialmente alguns de seus cenários (Cemitério dos Ingleses, Praça Castro Alves, Av. Contorno, Campo Grande, Praça da Piedade, Campo da Pólvora, estações de metrô, Ladeira da Barra, entre outros), é fundamental para que a história e os seus atravessamentos aconteçam. Assim, as temporalidades que se encontram só se manifestam na medida em que há uma espacialidade complexa e contraditória que se articula a ela. Para usar uma terminologia de Milton Santos (1999, p. 50), os fluxos só são possíveis porque há fixos que “permitem ações que modificam o próprio lugar, fluxos novos ou renovados que recriam as condições ambientais e as condições sociais, e redefinem cada lugar”.

Como em toda história, nessa temporalidade-espacialidade, inscrevem-se as personagens. Aqui, contudo, a maioria delas não é exatamente humana, ou pelo menos não humana de “carne e osso”, digamos. As primeiras que se manifestam são as estátuas de praças de Salvador. Estas se veem animadas em espíritos que se sabem estátuas, mas que ao mesmo tempo são mais que isso: conversam entre si, observam a cidade, os humanos que passam por ela, assim como também os pombos que sobrevoam perigosamente acima delas e lançam seus indesejáveis dejetos. Bastariam as estátuas para já termos diversas temporalidades-espacialidades lançadas na cidade: estátuas gregas, romanas, de colonizadores, indígenas e negros (em menor quantidade e, geralmente, embranquecidos). As estátuas não se movem, elas não são suficientes para os “fluxos”. No entanto, conseguem se comunicar, inclusive com estátuas de outras praças, graças à mediação da personagem principal: um samurai japonês do século XIX, ou melhor, seu espírito flutuando por Salvador, em pleno século XXI, em busca do corpo perdido.

O samurai em questão foi baseado numa personagem real, um tenente da marinha japonesa, Maeda Jurozaemon, que, ao que tudo indica, teve uma história trágica: tendo sido enviado para aprendizado no mundo ocidental, no retorno ao Japão, passando pela Bahia, cometeu o harakiri (ou seppuku), provavelmente envergonhado por não ter aprendido o suficiente conforme exigira seu país (GLEDHILL, 2007). Como essa modalidade de suicídio era considerada honrosa, seu corpo foi enterrado no cemitério britânico de Salvador, na Ladeira da Barra. Alguns anos depois, uma fragata japonesa aportou em terras soteropolitanas e buscou o corpo para prestar-lhe homenagem, mas a própria lápide havia sumido, suscitando mistério suficiente para a história em questão.

Aqui, encontra-se esse espírito um tanto desnorteado, em busca da materialidade que lhe possibilitaria voltar à terra. Mas ele não é o único. Há em Salvador tragédias suficientes para superar o destino do pobre tenente. Entre elas, revoltosos escravizados (como os malês) que, vencidos, foram enterrados em valas comuns, sem nenhuma homenagem, em lugares como o Campo da Pólvora (que tradicionalmente já enterrava indigentes e revoltosos), ameaçados pelo esquecimento eterno. Seus espíritos clamam por sentido e rememoração, e são evocados por entidades importantes como Ogum, Nanã e Exu, que debatem entre si e com o samurai em busca de soluções para a revolta justa dos que não acham repouso nem mesmo na morte, numa condição que parece literalmente se consolidar com as obras do metrô sobre o local onde seus corpos estão enterrados.

Uma história como essa pode ser lida e contada a partir de várias camadas. Em uma delas, pelas redes de sentidos e temporalidades que a atravessam. Só a história do tenente Maeda já significaria vários cruzamentos – o Japão do século XIX, sendo assolado pelo mundo ocidental e capitalista, e o desaparecimento das formas tradicionais dos samurais e dos códigos de honra (como o próprio seppuku), que começam a parecer bárbaros. A história dos povos escravizados na Bahia já se cruza com outras tantas fronteiras. Os malês, muçulmanos alfabetizados que se veem em terras estranhas, mercantilizados; os diversos povos de África que são uniformizados, aqui, em uma “raça” e a partir de um estigma, mas que se reinventam em religiosidades, linguagens e formas estéticas em tudo potentes e originais, apesar do massacre cotidiano a que são submetidos. Para além de tudo isso, Rocha Navegável cruza perspectivas e entrelaça o conflito do samurai desorientado e das entidades africanas, encontrando diferenças e relações, diálogos e aprendizados. Aprendizado, aliás, é um ponto fundamental nesse processo de “formação” do espírito de Maeda, que se exprime em sua escrita poética, mas que acima de tudo aprende com os espíritos afro-brasileiros outros deslocamentos e outro jogo de corpo, novas escritas que serão fundamentais para o seu trajeto, para lidar com o seu desespero e, talvez, para descobrir que nem sempre fazia as perguntas certas.

Isso remete à segunda camada da leitura. O drama do samurai e dos malês suscita problemas filosóficos que atingem a sua própria existência – mas também a nossa. A busca pelo corpo, o desejo de retorno à terra natal, a questão da memória, o medo de ser esquecido, a necessidade de que se cumpram certas obrigações (certos “deveres” e imperativos éticos) para que a vida possa seguir... a lida com esses problemas parece exigir uma espécie de filosofia afrodiaspórica que se insinua na narrativa e dialoga com as dúvidas de Maeda e a revolta dos espíritos dos malês. Como lidar com a memória? O que cabe lembrar e o que cabe esquecer nessa disputa pelo passado? O que significa exatamente “voltar para o seu lugar”? Esse lugar ainda existe ou ele é o próprio passado? Como pensar vida e morte? O que é obrigação e o que é flexibilidade, diante da vida que se transforma?

Não caberia aqui refletir demoradamente sobre cada uma dessas questões. Mas talvez valha a pena ressaltar o quanto aprenderam (ou tiveram de aprender) os negros brasileiros com a brutal experiência diaspórica. Muniz Sodré (2017), por exemplo, mostra como um campo privilegiado dessa experiência (a dos indivíduos nagôs ou iorubás, trazidos forçadamente para o Brasil, especialmente para a Bahia) forma uma espécie de filosofia sofisticada, permeada pela experiência prática da diáspora em confronto com suas origens. Vários dos aspectos que daí emergem parecem servir de solução para os problemas existenciais de seus descendentes, mas também parecem atuar como todo pensamento filosófico: ele sempre busca algum tipo de “universalidade”. Mas ela se dá apenas nos termos defendidos por Julio Cabrera (2015), que recusa a dominação política das pretensas universalidades que “parecem não ter origem” e, assim, exercem com mais eficácia sua condição de verdade incontestável, como muitas vezes fez a filosofia ocidental. Ao rejeitar essa universalidade abstrata, resta o fato de que pensamentos forjados por determinados povos podem ser relidos por outros, podem ser discutidos e transformados, podem, portanto, ser revividos. A questão é que “a universalidade dos pensamentos não os dispensa de ter uma origem, não meramente externa, mas vinculada a seus conteúdos” (CABRERA, 2015, p. 7). E é nesse sentido que nós (e os japoneses) podemos aprender com o pensamento nagô. Esse trânsito cabe ainda mais no caso brasileiro porque, como afirma Sodré (2017, p. 24), “sugerimos a possibilidade de um novo jogo de linguagem: uma filosofia ‘de negociação’ (os nagôs, como os antigos helenos, sempre foram grandes negociantes)”.

Como isso se materializa? Sodré (2017, p. 171), por exemplo, evoca um curioso provérbio nagô: “Exu matou um pássaro ontem com a pedra que atirou hoje”.

Esse provérbio age justamente sobre alguns dos elementos que afetaram a história em questão. Como lidar com uma temporalidade que não se encerra num passado longínquo ou em um futuro abstrato? Sodré (2017, p. 83) aborda o modo como esse pensamento lida com a origem: esta é pensada como “a atualidade manifestada como expansão e continuidade de um princípio que chamamos de Arkhé. Esta é sentida como irradiação de uma corporeidade ativa, da qual provém a potência (axé) com seus modos de comunhão e diferenciação”. Aqui, assim como no provérbio mencionado pelo filósofo baiano, várias dicotomias se rompem: a origem se manifesta como atualidade (e os ritos são fundamentais para essa atualização), a espiritualidade se dá como corporeidade.

Em Rocha Navegável, esses paradoxos são trazidos com filosofemas proverbiais que surgem exatamente em momentos fundamentais da narrativa2: “A terra é a sepultura de tudo o que vive, mas é também o útero de tudo que morre”. Ou: “A terra para onde você quer voltar já não existe (...) e a floração que você aguarda talvez nunca aconteça”. E, finalmente: “Para voltar para casa é fundamental o esquecimento (...). Mas às vezes, para que os mortos esqueçam, é preciso que os vivos lembrem”. Em várias dessas manifestações, é como se séculos de experiência vivida e reconstruída pelos povos afro-diaspóricos se concentrassem em resposta ao drama do tenente Maeda, mas ao mesmo tempo margeando a (nova) revolta dos malês em Salvador. Quem mais poderia responder tão na carne a esses dilemas quanto aqueles que há muito sabem que a África que se construiu aqui já é necessariamente outra África?

No entanto, Rocha navegável, não se pode esquecer, não é uma obra acadêmica ou um trabalho de cunho filosófico, mas artístico-literário. E, como tal, tudo o que propõe se dá a partir de formas estéticas desafiantes. O que nos remete a outra camada. A arte de Igor Souza se transforma a cada momento junto com a história, transita tanto quanto se transita pela cidade. Nunca de maneira aleatória, mas dialogando com o que há de segredo e pungência numa história como essa. De repente, somos impactados com a imagem impressionante de Nanã sobrevoando o metrô soteropolitano; em vários momentos, há a imagem de deslocamentos (sobretudo do samurai) em vários locais da cidade; em outros, o Orun (a habitação dos espíritos) parece se materializar em cores vibrantes dentro das estações de metrô. Em muitos casos, a imagem parece se dissolver sem linhas delineadas, evocando o que também não se define na história.

As imagens de Igor Souza dialogam com trechos que são verdadeiros versos na pena de Fábio Costa. “Lâminas de luz retalham a carne dura do impossível”; “um gole de luz a mais – o vegetal delira”; “a flecha sonha ser o dedo que tange a lira”; “as bordas não contêm o que parece estar contido”; e outros tantos. As imagens propriamente ditas da HQ e as imagens evocadas pelo texto poético nos remetem a outro espaço de percepção. Como diz o poeta Octavio Paz (1976, p. 46-47), a imagem

recria, revive nossa experiência do real. [...] Essas ressurreições não são somente as de nossa experiência cotidiana, mas as de nossa vida mais obscura e remota. O poema nos faz recordar o que esquecemos: o que somos realmente”.

Nesse sentido, as descrições filosóficas anteriores parecem esmaecer perante algo que não somos capazes de entender completamente, mas que (com a devida atenção e reverência) pode nos atravessar.

Como acessar a Rocha Navegável, por onde partir, dentre essas camadas? Responder a tais perguntas seria tão ocioso quanto responder por onde começar a conhecer uma cidade. A resposta, se há alguma, só pode ser negativa. Certamente não será pelas ruas regulares e casas uniformes.

Referências Bibliográficas

CABRERA, Julio. Europeu não significa universal, brasileiro não significa nacional (acerca da expressão ‘pensar desde’). Nabuco – Revista Brasileira de Humanidades. No 2, 2015, p. 1-46.

GLEDHILL, Sabrina. Seppuku na cidade do Salvador: como um tenente da Marinha Japonesa acabou enterrado no Cemitério dos Ingleses na Bahia no Século XIX. Disponível em https://pt.scribd.com/document/2649740/Seppuku-na-Cidade-do-Salvador, acessado em 05 de dezembro de 2021.

PAZ, Octavio. Signos em rotação. 2ª ed. Tradução: Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: Perspectiva, 1976.

SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. 3ª ed. São Paulo: Hucitec, 1999.

SODRÉ, Muniz. Pensar nagô. Petrópolis: Editora Vozes, 2017.

SOMBRA, Laurenio Leite. Rede de sentidos e antagonismo: reconstruindo os fios. Revista Ideação – Dossiê NEF, 2020, p. 130-147.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. 4ª ed. Tradução: Marcos Montagnoli. Petrópolis: Vozes, 2005.











































1 Uma forma conceitual possível de abordar esse fenômeno seria entendê-lo a partir do encontro de redes de sentidos e antagonismos. Como discutido em outra oportunidade (SOMBRA, 2020), isso propicia diversas “trocas de sentidos” e transformações, sempre pautadas por relações assimétricas de poder.

2 As páginas não são numeradas na HQ.

 

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