Diálogo intercultural e cidadania – para lá do reconhecimento

 

Revista Sísifo. N°15, Vol. Único 2022. ISSN 2359-3121. www.revistasisifo.com

 

 

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Maria Rosa Afonso.

Maria Rosa Afonso, professora aposentada do sistema de ensino português. Licenciada em Filosofia, Pós-graduação e Mestrado em Ciências da Educação, em Faculdades da Universidade de Lisboa. Desenvolve investigação nas áreas da ética, direitos humanos, cidadania e interculturalidade. rosa_afonso_42@hotmail.com



Resumo: O presente artigo tem como principal objetivo, na consideração do reconhecimento cultural, compreender como a perspectiva teórica do diálogo intercultural fundamenta uma noção de dignidade, onde convergem igualdade e diversidade, tornando possível uma cidadania de propostas e soluções participadas, em sociedades plurais. Analisa: a importância das culturas; o reconhecimento recíproco, assinalando vantagens e limitações, nomeadamente, a impossibilidade de terminar com os fechamentos culturais; o diálogo intercultural, assinalando a dimensão reflexiva e crítica que conduz à noção de igual dignidade e à possibilidade de convergências entre valores universais e particulares; e o modo como o diálogo intercultural se inscreve nas perspectivas tradicionais da ética, salientando-se a razão discursiva face ao etnocentrismo dos contextos. Nas considerações finais, salientamos a importância da argumentação racional, sem a qual o diálogo entre as diferentes culturas não teria chegado a essa noção de dignidade que é, ao mesmo tempo, uma ética e uma cidadania, tornando possível um viver social e cívico de culturas entrelaçadas, participantes na construção de um destino comum.

Palavras-chave: cultura; reconhecimento cultural, diálogo intercultural; cidadania.


Abstract: The main objective of this article, considering the importance of cultural recognition, is to understand how the theoretical perspective of intercultural dialogue justifies a notion of dignity, where equality and diversity converge, making possible a citizenship of participated proposals and solutions in plural societies. It analyses: the importance of cultures; reciprocal recognition, highlighting advantages and limitations, namely, the impossibility of ending cultural closures; intercultural dialogue, highlighting the reflective and critical dimension that leads to the notion of equal dignity and the possibility of convergence between universal and particular values; and the way in which intercultural dialogue is inscribed in traditional perspectives of ethics, emphasizing discursive reason in the face of the ethnocentrism of contexts. In the final considerations, we emphasize the importance of rational argumentation, without which the dialogue between different cultures would not have arrived at this notion of dignity that is, at the same time, an ethics and a citizenship, making possible a social and civic life of intertwined cultures, participants in the construction of a common destiny.

Keywords: culture; cultural recognition, intercultural dialogue; citizenship.





Introdução


Assistimos diariamente a dificuldades e problemas na integração de grupos culturais minoritários, um pouco por todo o lado. Com maior impacto, certamente, nos países onde as questões da multiculturalidade, por razões históricas (minorias étnicas, passados coloniais…) ou continuados e expressivos movimentos migratórios (Europa, Estados Unidos…), mostram à evidência que as respostas estão longe de ser satisfatórias.

O resultado, nalguns casos, é a continuação da radicalização de determinados grupos, sobretudo os de cariz religioso, por tenderem a ignorar ou a subestimar os direitos humanos, a democracia, a laicidade do Estado… Pilares imprescindíveis para as leis e as instituições, sejam nacionais ou supranacionais. Grupos que, mesmo depois de tantos séculos de conhecimento, ciência e pensamento crítico, continuam num extremismo impossível, que sequer pode ser pensado por não termos categorias – como é o caso atual dos talibãs no Afeganistão.

Contudo, importa referir que não estamos nem no início de uma discussão, nem no início da aplicação de medidas, por parte de governos, no que se refere ao tema da integração de grupos minoritários nas respetivas sociedades. Na verdade, desde os anos 70 do século XX, que se desenvolveram políticas multiculturais, com base nas aportações teóricas trazidas pelo reconhecimento cultural: a valorização da diversidade, a visibilidade dos grupos e a concessão de direitos específicos, em determinados casos, inscritos nas leis dos respetivos países. Ainda assim, apesar dos ganhos, não se resolveram as questões de fundo, nomeadamente, as relacionadas com o diálogo e a interação entre as diferentes culturas; não se resolveram as questões da participação conjunta de todos os grupos na vida social e cívica.

A partir dos anos 90 do século XX, as discussões sobre a persistência destes problemas, nas sociedades de grande diversidade cultural, levaram a que se considerasse não ser suficiente o reconhecimento e a estima recíproca, assentes na valorização do que é imutável e permanente em cada cultura, nomeadamente, a noção de bem a que fazem coincidir a noção de dignidade.

Percebeu-se, então, que era necessário ‘operacionalizar’ de outra forma o conceito de cultura, valorizando o que nelas é diferente e colocando-o ao serviço do bem comum. Uma tal mudança implicava que as diferentes culturas se tornassem capazes de refletir criticamente sobre si próprias e sobre as outras, de modo a tomarem consciência da sua incompletude e aceitarem transformações recíprocas.

Desenvolve-se uma nova perspectiva teórica – o diálogo intercultural – que origina, em consequência, um novo enfoque político e social, com tradução em documentos internacionais, por exemplo, a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, onde se expressa que as: «Políticas que favoreçam a integração e a participação de todos os cidadãos garantem a coesão social, a vitalidade da sociedade civil e a paz» (Unesco, art.º 2º, 2002).

É neste enquadramento que situamos os objetivos desde artigo, procurando compreender a importância da cultura, a limitação do reconhecimento e a fundamentação da noção de igual dignidade, onde convergem os valores universais da humanidade (igualdade) e os valores particulares da cultura a que pertencemos (diferença) – noção, a partir da qual, todas as questões do viver social podem ser pensadas e discutidas, com fundamento e exigência éticas.

A metodologia é a do estudo bibliográfico, numa abordagem reflexiva, de análise e crítica, fundamentada em conceitos e perspectivas teóricas, sobretudo, do campo da filosofia prática, mas também em outras áreas do conhecimento (sociologia, direito…), com recurso a obras e artigos de autores significativos, conforme o referido ao longo do texto e referenciado na bibliografia.

O artigo desenvolve-se em cinco secções: na primeira (1), analisamos a importância das culturas para cada indivíduo e sua comunidade, onde residem aspectos decisivos da nossa identidade, do que somos e sentimos ser; na segunda (2), compreendemos o valor do reconhecimento cultural recíproco, por dar um sentido de vida boa, mas que, ainda assim, é incapaz de diálogo e interação entre as diferentes culturas; na terceira (3), analisamos como o diálogo intercultural permite chegar a uma noção de igual dignidade, capaz de propostas e soluções convergentes para problemas comuns; na quarta (4), procuramos compreender como os fundamentos do diálogo intercultural se inscrevem nas perspectivas éticas tradicionais, seguindo, nomeadamente, o debate entre Habermas e Rorty, entre razão e contexto; e na quinta (5) fazemos considerações finais, salientando a importância do diálogo racional na construção de sociedades interculturais, entrelaçadas entre si e capazes de uma cidadania participada.


1. A importância das culturas

Em autores, como Kymlicka (1995), Taylor (1998), Benhabib (2002) e MacIntyre (2008), Walzer (1998), vemos referida, com particular relevância, a importância dos valores culturais na vida dos indivíduos e suas comunidades. Ou seja, o entendimento de que importa considerar, para lá das características racionais comuns a todos os seres humanos – inteligência, capacidade de comunicar, criar linguagem, imaginar, inventar, resolver problemas, ter iniciativas… – os valores dos contextos, diferentes de cultura para cultura.

A cultura é um quadro de referências estabilizado que dá, a quem o partilha, um idêntico sentido sobre aspetos fundamentais do viver – relações pessoais, familiares, sociais, económicas, religiosas, recreativas… – transmitidas de geração em geração e refletidas no modo como pensam, amam, educam os filhos, tratam os mais velhos….   

Assim, podemos dizer que todos temos uma identidade cultural que vem de longe, de um lugar onde habita a nossa infância e juventude, para alguns, já distante, mas ainda assim, nunca perdida e onde se «regressa» sempre. O lugar onde nascemos, crescemos e aprendemos a fazer escolhas – a distinguir o bem do mal, o amor do ódio, o essencial do acessório, a solidariedade do egoísmo… – aspectos determinantes no modo como vemos e valorizamos o que nos rodeia, mesmo que possamos, ao longo da vida, adquirir outras referências que, eventualmente, se possam vir a estabilizar em nós.

Por isso, não é possível dizer a alguém que acaba de chegar, por exemplo, a Portugal, vindo de um qualquer lugar do interior africano, sul-americano, asiático…: «Agora, tem de sentir e viver como nós, gostar do que nós gostamos, dar valor e considerar importante o que nós consideramos». Seria uma exigência pouco séria, até, pela dificuldade em poder ser cumprida. O modo de ser, o modo como se está, não se impõe de fora, nem se adquire de imediato, por força de uma lei ou um ato simples da vontade. É, sobretudo, um processo individual, interior, lento e difícil, onde surgem inevitavelmente sentimentos de estranheza, não pertença, rejeição, discriminação…; e por isso são necessárias atitudes persistentes de abertura, diálogo e interação, entre todas as pessoas, seja qual for o seu grupo cultural.

Compreendemos, então, que nem a radicalização nem o fechamento cultural resolvem qualquer problema na relação entre as culturas. Antes, acentuam as margens, agravando situações que podem levar à quase incomunicação e a comportamentos de intolerância e violência dos grupos minoritários em relação à sociedade e desta em relação a eles – os diferentes grupos precisam conhecer-se e serem capazes de estima mútua.


2. Cultura e reconhecimento recíproco

A abertura cultural aparece, nas sociedades multiculturais, como uma necessidade. No sentido de Taylor (1998) e Honneth (2011), podemos dizer que os diferentes grupos têm de dar-se a conhecer, em espaço público, na sociedade onde vivem, mostrando quais os valores que os orientam e por que agem desta ou daquela maneira – mesmo que existam vozes contra, vindas de vários lados (pessoas, grupos, organizações…), por temerem o desmoronamento dos valores tradicionais (família, religião, nação…) há muito estabelecidos.

Porventura, essa abertura será mais fácil nas culturas que incorporam, na sua raiz identitária, os valores universais da pessoa humana – liberdade, igualdade…; e mais difícil, certamente, nas culturas que vivem fechadas sobre si, onde o indivíduo se dilui no grupo, esperando-se, apenas, que cumpra de forma acrítica o que lhe é determinado.

Quando esse conhecimento recíproco acontece, entre as culturas coexistentes em determinada sociedade, vê-se que em todas há valores estimáveis; mais, vê-se que em todas há um sentido de bem, de plenitude e dignidade que os seus membros não encontram noutro lugar. Portanto, torna-se obrigação das sociedades, com as suas leis e instituições, criar as condições necessárias para que cada grupo cultural possa realizar o que entende por uma vida digna, distinto de cultura para cultura.

Contudo, no reconhecimento cultural, estamos muito longe da possibilidade de uma interação entre culturas e, em consequência, muito longe de uma satisfatória participação e coesão sociais – por exemplo, na sociedade portuguesa, permanecem minorias culturais em guetos, bairros degradados, com dificuldades de emprego, preconceitos, atitudes racistas…, muito distantes da desejada integração.


3. Cultura, diálogo e cidadania

Para a coesão social e a participação cívica poderem acontecer, segundo autores como Cortina (1986; 2005; 2007), Santos (2004), Lucas (2005, 2008), André (2009) e Baratto (2009), não basta a valorização e o reconhecimento recíprocos; é necessário que as diferentes culturas se disponham a refletir de modo crítico, em relação a elas mesmas e também em relação a todas as outras presentes naquela sociedade.

Nesses processos de autoanálise e análise recíproca, dão-se conta de que em todas há aspectos bons e menos bons; em todas há limitações, dificuldades, insuficiências e, até talvez, pontos criticáveis e por isso não faz qualquer sentido, atitudes de isolamento, superioridade, hegemonia, sobranceria, autossuficiência…, achando que podem sobreviver sozinhas.

Na verdade, as culturas precisam umas das outras, para subsistirem e se desenvolverem; e a humanidade precisa de todas, no entendimento de que a diversidade é sempre uma mais valia. Assim, pessoas, instituições, organizações… públicas e da sociedade civil, em diálogo argumentativo e consequente, na consideração de todas as perspectivas, pontos de vista, conhecimentos, saberes, crenças, sentimentos…, devem colocar a sua diferença, a serviço dos interesses comuns, na discussão e resolução dos problemas da sociedade onde vivem. Isto, implica estarem dispostas a aprender mutuamente, a fazer cedências, a aceitar transformações, a rever prioridades, de forma a poderem chegar a soluções convergentes.

Para o diálogo intercultural, a primeira convergência é sobre a questão fundamental, não resolvida pelo reconhecimento multicultural: podem as diferentes culturas construir (e partilhar) uma noção de dignidade que ultrapasse as dificuldades de uma dignidade centrada na ideia de bem, diferente de cultura para cultura? O que seria intocável nessa noção?

Sendo o ponto de partida, a apresentação de argumentos e contra-argumentos, as diferentes culturas vão ser capazes de, racionalmente, perceber que são valores decisivos, tanto os da sua pertença à humanidade (igualdade), como os da sua pertença a uma cultura (diferença). Ou seja, digno do viver humano, e por isso intocável, é a convergência da igualdade, porque todos somos seres humanos, com a diferença, porque todos temos uma cultura própria. Esta noção partilhada de igual dignidade, a que todos os grupos acedem, funda um princípio comum e baliza o que pode ou não ser aceite, seja qual for o tema ou o problema em discussão.

Deste modo, compreendemos que o diálogo intercultural não é uma mera metodologia de debate público ou uma mera forma de convivência social, constitui-se numa perspectiva ética, para o viver cívico e social entre culturas, capaz de chegar a soluções participadas e de fazê-lo no respeito pela igualdade de todos os seres humanos e pela diversidade cultural existente, sem atropelos, radicalismos ou «relativismos morais» – que de resto não podem existir, porque a moral é universal.

Daí que, o diálogo intercultural assuma, na atualidade, nacional e internacional, uma dimensão política e social inquestionável, com tradução em documentos vários. Por exemplo, um importante documento do Conselho da Europa (2009), coloca aos Estados-membros a obrigação de levar muito a sério a definição de políticas interculturais – com normas e procedimentos instituídos, para que a pertença a uma cultura não se sobreponha nem conflitue com a pertença aos valores universais da humanidade (direitos humanos, democracia, estado de direito…).


4. Diálogo intercultural, razão e contexto

As convergências entre valores universais e particulares colocam o diálogo intercultural, tal como acabamos de o fundamentar, face a ambas as tradições da filosofia prática – a deontológica e a teleológica – com ganhos, certamente, mas também com inevitáveis dificuldades práticas, como mostra o debate que aqui convocamos, entre Habermas e Rorty (Souza, 2005; Ferraz, 2014; Marques, 2016).

Para Habermas (1986; 1989; 2004), na perspectiva universalista, a razão humana é discursiva, capaz de proposições universais e objetivas. Por isso, todos os indivíduos que o desejem, cumprindo regras – por de lado os interesses pessoais; não utilizar quaisquer meios violentos, incluindo os psicológicos e institucionais; convencer, apenas, por argumentos racionais; e aceitar que todas as normas possam ser problematizadas – podem chegar a asserções com valor ético, independentes dos contextos e capazes de generalização.

Para Rorty (1982; 1988, 2005), na perspectiva contextualista, a razão humana não procura verdades objetivas, transcendentes ou incondicionais; considera-as, mesmo, desnecessárias e inúteis, uma vez que, no viver quotidiano dos indivíduos e dos grupos, o mais importante é encontrar a melhor resposta para aquele problema, naquele local e naquele tempo – trata-se de colocar pressupostos etnocêntricos, na base de todo o pensamento, ação e discurso. Ou seja, são os indivíduos, a partir das suas circunstâncias – história, cultura, crenças, costumes e modos de vida, que podem encontrar a melhor justificação para os problemas com que se defrontam.

Pergunta-se, então, como é possível, em Rorty, o progresso ético e democrático, quando as justificações são tão provisórias, localizadas e relativas aos contextos? Como se fundamentam critérios de justiça, para a definição de leis e a criação de instituições que regulem e sustentem o viver social e cívico?   

Para Habermas, sem uma ética discursiva, de princípios objetivos, não podem existir leis justas, nem democracias liberais; seria dar espaço ao relativismo dos contextos e à subjetividade dos indivíduos, um pouco à imagem do homem medida de todas as coisas de que falava Protágoras.

Contudo, Rorty entende que não há relativismo, porque a resposta não é em relação a nenhuma verdade imutável, seja de natureza racional (deontologia), cultural (reconhecimento) ou transcendente (religião). Assim, embora provisória, permite o progresso moral dos indivíduos e o avanço democrático das sociedades, desde logo, porque sempre haverá novos problemas, que levarão a novas respostas que incorporarão novos conhecimentos, saberes, imaginação….

Estamos de acordo com Habermas, na crítica que faz ao relativismo rortyano; mas, compreendemos a importância da argumentação etnocêntrica de Rorty, sobretudo, de que não há racionalidade, sem a consideração da situação de cada contexto, na sua dinâmica e atualidade, portanto, longe do imobilismo cultural presente, por exemplo, no reconhecimento.

De algum modo, a perspectiva teórica do diálogo intercultural, fundado na igual dignidade, se aproxima da noção de cultura rortyana, mas não da sua argumentação etnocêntrica, por esta impedir a objetividade de que só a razão discursiva, metódica e consistente é capaz. Não é o retorno a Habermas, para coincidir com ele, uma vez que, este, não considera as especificidades dos contextos, mas é o retorno a um plano de racionalidade necessário à ética, à democracia e à cidadania.


Considerações finais

A primeira coisa que se pode concluir, é sobre a importância da identidade cultural na vida de qualquer indivíduo ou sociedade e a quase inevitabilidade de diferentes abordagens. Em nosso entender, o diálogo intercultural não anula o reconhecimento; ultrapassa-o, evitando os radicalismos e acantonamentos culturais que limitavam a capacidade de interação e diálogo entre as culturas.

Também, salientar o fato do diálogo intercultural, ao permitir conciliar igualdade e diferença, fundamentar uma ética e também uma cidadania participada, justa, solidária, dando aos diferentes grupos voz e capacidade de ação, na discussão de problemas que são de todos e, por todos, devem ser pensados e resolvidos.

Assim, em vez de uma sociedade multicultural – de culturas justapostas, sem se olharem umas às outras, ou de culturas expostas, eu diria, numa pintura em mosaico, cada uma ocupando um espaço valorizado, mas estanque, sem capacidade de interação, como no reconhecimento – temos, uma sociedade intercultural, num quadro, eu diria, em tecelagem, onde as diferentes culturas se encontram, escutam, dialogam e admitem aprender umas com as outras, na proposta e defesa de interesses comuns.

Neste tecido social de culturas entrelaçadas, se um fio romper, afetará o todo, e esse todo pode ir do lugar mais próximo, que cada grupo cultural ocupa, ao lugar mais longínquo da terra (é a globalização e o que ela implica, a fazer caminho); também, se um fio sobressair, seja porque razão for (ditaduras, hegemonias, egoísmos, desigualdades, discriminações, injustiças…), perde-se o equilíbrio e a harmonia e as ruturas sociais, com gravidade, podem estar a uma curta distância – é por isso que a interdependência, a cooperação, a solidariedade e a coesão sociais passam a ser supostos decisivos para que o diálogo intercultural seja possível e decisivamente comprometido com a igual dignidade de todos os seres humanos, numa dimensão universal.

Nesta sociedade, em que tudo depende de todos, cada cultura é consciente do seu valor e importância, mas em vez de se centrar em si, põe a sua diferença ao serviço do bem comum – agora, são as questões da pandemia Covid-19 que colocaram à ciência e aos governos desafios inimagináveis, também as migrações, as alterações climáticas, o subdesenvolvimento, a guerra, o terrorismo, a regulação do espaço digital, a segurança; e no futuro, serão muitas destas e outras, que ainda nem sequer imaginamos, mas que existirão certamente.

Contudo, dada a abrangência do conceito – diálogo intercultural – que tem vindo a ser trabalhado por diferentes áreas – filosofia, sociologia, direito, psicologia social, antropologia, estudos sociais, educação – pode pensar-se que o mesmo não esteja, ainda, devidamente formalizado, ao ponto de fundamentar práticas cívicas que têm a obrigação de ser consequentes e justas para a definição de políticas públicas gerais – aspeto que, a meu ver, não reduz, em nada, a sua importância, ao contrário, alarga o horizonte de análise e reflexão, e isso é sempre benéfico, como mostrou o debate entre Habermas e Rorty.

Por fim, reiterar que, embora o diálogo intercultural permita a participação e a interação entre as culturas e, desse modo, melhorar a integração das minorias, convém ter em conta dois aspetos decisivos já referidos: a capacidade de análise e crítica dos diferentes grupos e a motivação e sensibilidade para a aquisição e o desenvolvimento de competências interculturais dos indivíduos, grupos e sociedade em geral – percebemos, assim, a importância de uma educação intercultural, tanto formal como informal, quando abordamos este tema.


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