“Filósofo” - Dumarsais (Tradução)
“Filósofo”
Dumarsais
Paulo Jonas de Lima Piva (Tradutor)
Doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Universidade Federal do ABC (UFABC). E-mail: paulo.piva@ufabc.edu.br
FILÓSOFO, substantivo masculino. Não há nada que custe menos adquirir hoje do que o nome de filósofo; uma vida obscura e retirada, algumas aparências de sabedoria, com um pouco de leitura, satisfazem para atrair esse nome a pessoas que serão honradas por ele sem o merecer.
Outros, para quem a liberdade de pensar tem lugar de raciocínio, consideram-se os únicos verdadeiros filósofos, porque eles ousaram inverter os limites sagrados colocados pela religião e porque eles quebraram os entraves colocados pela fé à sua razão. Altivos por terem se desfeito dos preconceitos da educação, em matéria de religião eles olham os outros com desprezo, como almas fracas, gênios servis, espíritos pusilânimes, que se deixam aterrorizar pelas consequências para as quais a irreligião conduz, e que não ousando sair um instante do círculo das verdades estabelecidas, nem caminhar por novas estradas, adormecem sob o jugo da superstição.
Mas devemos ter uma ideia mais justa do filósofo, e eis o caráter que nós lhe damos.
Os outros homens são determinados a agir sem sentir, nem conhecer, as causas que os fazem mover, sem mesmo sonhar que elas existam. O filósofo, ao contrário, desenreda as causas tanto quanto ele pode, e frequentemente mesmo as previne, e se entrega a elas com conhecimento: é um relógio que se monta, por assim dizer, às vezes, a si mesmo. Assim, ele evita os objetos que possam lhe causar sentimentos que não convêm nem ao bem-estar, nem ao ser razoável, e busca aqueles que podem excitar nele afecções convenientes ao estado no qual ele se encontra. A razão é em relação ao filósofo o que a graça é em relação ao cristão. A graça determina o cristão a agir, a razão determina o filósofo.
Os outros homens são arrebatados por suas paixões, sem que as ações que eles realizam sejam precedidas pela reflexão: esses são homens que caminham nas trevas, enquanto o filósofo, em meio às suas próprias paixões, não age senão após a reflexão; ele caminha na noite, mas é precedido por uma tocha.
O filósofo forma seus princípios com base numa infinidade de observações particulares. O povo adota o princípio sem pensar nas observações que o produziram: este crê que a máxima existe, por assim dizer, por si mesma; já o filósofo se apega à máxima desde a sua fonte; ele examina a sua origem, conhece o exato valor dela, e não faz dela senão o uso que lhe convém.
A verdade não é para o filósofo uma amante que corrompe a sua imaginação e que ele crê encontrar por toda parte; ele se contenta em poder desenredá-la onde ele pode apercebê-la; ele não a confunde com a verossimilhança; ele toma por verdadeiro o que é verdadeiro, por falso o que é falso, por duvidoso o que é duvidoso, e por verossímil o que não é senão verossímil. Ele faz mais, e está aqui uma grande perfeição do filósofo: é que quando ele não tem motivo exato para julgar, ele permanece indeterminado.
O mundo está cheio de pessoas de espírito e de muito espírito, que julgam sempre; e sempre elas adivinham, pois é adivinhar julgar sem sentir que se tem um motivo exato para um julgamento. Elas ignoram o alcance do espírito humano; elas creem que podem conhecer tudo: assim, têm vergonha de não pronunciar julgamento, e imaginam que o espírito consiste em julgar. O filósofo crê que este consiste em julgar bem: ele é mais contente consigo mesmo quando suspende a faculdade de se decidir, do que se ele tivesse se decidido antes de ter sentido um motivo exato para uma decisão. Assim, ele julga e fala menos, mas julga com mais segurança e fala melhor; ele não evita os traços vivos que se apresentam naturalmente ao espírito por meio de uma rápida junção de ideias que nos é, com frequência, surpreendente vê-las unidas. É nesta rápida ligação que consiste o que comumente se chama espírito; mas também é o que ele menos procura; ele prefere a esse brilho o cuidado de bem distinguir suas ideias, de conhecer a justa extensão e a ligação precisa entre elas, e de evitar se enganar levando longe demais alguma relação particular que essas ideias tenham entre elas. É nesse discernimento que consiste o que se chama julgamento e justeza de espírito: a esta justeza se juntam ainda a flexibilidade e a nitidez. O filósofo não será tão vinculado a um sistema a ponto de não sentir toda a força das objeções. A maioria dos homens está tão fortemente entregue às suas opiniões que eles nem sequer se dão ao trabalho de penetrar as opiniões dos outros. O filósofo compreende o sentimento que ele rejeita, com a mesma extensão e a mesma nitidez que ele entende aquele que ele mesmo adota.
O espírito filosófico é portanto um espírito de observação e de justeza, que relaciona tudo com os seus verdadeiros princípios; mas esse não é o único espírito que o filósofo cultiva; ele leva mais longe sua atenção e seus cuidados.
O homem não é um monstro que não deva viver senão nos abismos do mar ou no fundo de uma floresta: as necessidades únicas da vida tornam para ele o comércio com os outros necessário; e em qualquer estado em que ele possa se encontrar, suas necessidades e o seu bem-estar o obrigam a viver em sociedade. Assim, a razão exige dele que ele conheça, que ele estude e trabalhe para adquirir as qualidades sociáveis.
Nosso filósofo não crê estar em exílio neste mundo; ele não crê estar em país inimigo; ele quer gozar como um sábio ecônomo os bens que a natureza lhe oferece; ele quer encontrar prazer no convívio com os outros: e, para encontrá-lo, é preciso também proporcionar prazer a esses outros. Assim, ele procura ser conveniente com aqueles com quem o acaso ou a sua escolha o fazem viver; e ele encontra nisso, ao mesmo tempo, o que lhe convém: é um homem honesto que quer agradar e se fazer útil.
A maioria dos grandes, a quem as dissipações não deixam bastante tempo para meditar, é feroz para com aqueles que eles não acreditam ser seus iguais. Os filósofos ordinários que meditam demais, ou melhor, que meditam mal, também são assim para com todo mundo; eles fogem dos homens, e os homens os evitam. Mas nosso filósofo, que sabe se dividir entre o retiro e o comércio com os homens, é pleno de humanidade. É o Cremes de Terêncio, que sente que é homem, e cuja humanidade interessa pela má ou pela boa fortuna do seu vizinho. Homo sum, humani a me nihil alienum puto.
Seria inútil observar aqui o quanto o filósofo é cioso com tudo o que se chama honra e probidade. A sociedade civil é, por assim dizer, uma divindade para ele sobre a terra; ele a incensa, ele a honra pela probidade, por uma atenção exata aos seus deveres, e por um desejo sincero de não ser para ela um membro inútil ou embaraçoso. Os sentimentos de probidade entram tanto na constituição mecânica do filósofo quanto nas luzes do espírito. Quanto mais razão vós encontrais num homem, mais vós encontrareis nele probidade. Ao contrário, onde reinam o fanatismo e a superstição, reinam as paixões e o arrebatamento. O temperamento do filósofo é agir por espírito de ordem ou por razão; como ele ama extremamente a sociedade, importa-lhe bem mais do que ao resto dos homens dispor de todos os seus esforços para não produzir senão efeitos conformes à ideia de homem honesto. Não temais que, por ninguém ter os olhos sobre ele, ele se abandonará a uma ação contrária à probidade. Não. Esta ação não é conforme à disposição mecânica do sábio; ele é alimentado, por assim dizer, com a levedura da ordem e da regra; ele é cheio de ideias acerca do bem para a sociedade civil; ele conhece os seus princípios bem melhor do que os outros homens. O crime encontraria nele demasiada oposição; ele teria demasiadas ideias naturais e demasiadas ideias adquiridas para destruir. Sua faculdade de agir é, por assim dizer, como uma corda de um instrumento de música afinado num certo tom; ele não saberia produzir um tom contrário. Ele teme destoar, desafinar consigo mesmo; e isso me faz recordar o que Veleio disse de Catão de Útica: “Ele jamais fez boas ações, diz ele, para parecer tê-las feito, mas porque ele não as faria de outro modo”.
Além disso, em todas as suas ações, os homens não buscam senão sua própria satisfação momentânea: é o bem, ou melhor, o atrativo presente, seguindo a disposição mecânica em que eles se encontram, que os faz agir. Ora, o filósofo está disposto mais do que quem quer que seja, pelas suas reflexões, a encontrar mais atrativo e prazer em viver convosco, a atrair vossa confiança e vossa estima, a honrar os deveres da amizade e do reconhecimento. Esses sentimentos são ainda alimentados no fundo do seu coração pela religião, para onde se dirigem as luzes naturais da sua razão. Uma vez mais, a ideia de homem desonesto é tão oposta à ideia de filósofo quanto a ideia de homem estúpido; e a experiência mostra todos os dias que quanto mais se tem razão e luz, mais estaremos seguros e aptos para o comércio da vida. Um tolo, diz La Rochefoucauld, não tem muito estofo para ser bom: nós só pecamos porque as luzes são menos fortes do que as paixões; e é uma máxima de teologia verdadeira em um certo sentido, que todo pecador é ignorante.
Esse amor pela sociedade, tão essencial ao filósofo, faz ver quanto é verdadeira a observação do imperador Antonino: “Que os povos serão felizes quando os reis forem filósofos, ou quando os filósofos forem reis”!
O filósofo é portanto um homem honesto que age em tudo por meio da razão e que une a um espírito de reflexão e de justeza os costumes e as qualidades sociáveis. Inseri um soberano dentro de um filósofo de uma tal têmpera e vós tereis um soberano perfeito.
Desta ideia é fácil concluir quanto o sábio insensível dos estoicos está afastado da perfeição do nosso filósofo: tal filósofo é homem, e o sábio dos estoicos não era senão um fantasma; eles se ruborizam com a humanidade, enquanto que o filósofo a glorifica; eles gostariam loucamente de aniquilar as paixões e nos elevar para além da nossa natureza, para uma insensibilidade quimérica; já o filósofo, ele não pretende a honra quimérica de destruir as paixões, pois isso é impossível; mas ele empenha-se para não ser tiranizado por elas, para colocá-las ao seu proveito, e para delas fazer um uso razoável, pois isso é possível, e é o que a razão lhe ordena.
Vemos ainda, com base em tudo o que dissemos, o quanto se afastam da justa ideia de filósofo esses indolentes, os quais, entregues a uma meditação preguiçosa, negligenciam o cuidado com os seus afazeres temporais, e com tudo o que se chama fortuna. O verdadeiro filósofo não é um atormentado pela ambição, mas ele quer ter as comodidades da vida; ele precisa, além do necessário básico, de um supérfluo honesto necessário a um homem honesto, com o qual ele possa ser feliz: trata-se do fundamento das decências e dos consentimentos. Foram os falsos filósofos que fizeram nascer esse preconceito, o de que o mais estritamente necessário é o suficiente, por meio de sua indolência e de suas máximas deslumbrantes.
Referências
BALADI, Mauro; SCHOPKE, Regina. “Os subterrâneos da filosofia”. In: Filosofia clandestina: cinco tratados franceses do século XVIII. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
BRIASSON, David; LE BRETON, Durand. “Honnête”. In: D’ALEMBERT, Jean le Rond; DIDEROT, Denis. Encyclopédie, ou Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers. Paris, Tome 8, 1766, Wikisource. Disponível em: https://fr.wikisource.org/wiki/L%E2%80%99Encyclop%C3%A9die/1re_%C3%A9dition/HONN%C3%8ATE . Acesso em 24 de fevereiro de 2024.
DIDEROT, Denis. “Filósofo”. In: Obras VI: o enciclopedista - história da filosofia. São Paulo: Perspectiva, 2007
DIDEROT, Denis. “Filósofo”. In: Enciclopédia, ou Dicionário razoado das ciências, das artes e dos ofícios. Volume 2: O sistema dos conhecimentos. São Paulo: Editora Unesp, 2015.
DUMARSAIS, César Chesneau. “Philosophe”. In: D’ALEMBERT, Jean le Rond; DIDEROT, Denis. Encyclopédie, ou Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers. Paris, Tome 12, 1765, Wikisource. Disponível em: https://fr.wikisource.org/wiki/L%E2%80%99Encyclop%C3%A9die/1re_%C3%A9dition/PHILOSOPHE . Acesso em 23 de dezembro de 2023.
DU MARSAIS, César Chesneau. “O verdadeiro filósofo”. In: Filosofia clandestina: cinco tratados franceses do século XVIII. São Paulo: Martins Fontes, 2008
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