Uma Filosofia Política Para o Brasil: Roberto Mangabeira Unger e o Pensamento Com Sotaque

 Tiago Medeiros Araujo*

RESUMO: Este texto discute por que a filosofia política de Roberto Mangabeira Unger convém a quem pretende pensar o Brasil. Dividido em quatro partes, o texto aborda a ausência da questão sobre o tipo de sociedade desejável, de acordo com o ponto de vista dos filósofos mais lidos na academia brasileira; esboça dois grandes grupos genéricos de respostas exitosas à questão; apresenta algumas teses gerais de Mangabeira Unger, que servem de marcadores de seu programa filosófico; aponta, por fim, alguns elementos de sua visão sobre o Brasil, sugerindo a relevância de seu pensamento político para a construção de um projeto nacional. 
PALAVRAS-CHAVE: UNGER, BRASIL, FILOSOFIA POLÍTICA


1 - Uma pergunta para filósofos políticos;

            A erudição e a sofisticação com que argumentam alguns dos mais prestigiados filósofos políticos contemporâneos convencem auditórios de todo o mundo, mas exercem especial fascínio nos ambientes acadêmicos. Se fossem puxadores de trio elétrico, filósofos como Rawls, Habermas, Bobbio, Agamben, Derrida, Deleuze, Foucault, Zizek etc., teriam vestido professores e pesquisadores universitários com as fantasias mais comprometedoras e os feito dançar as coreografias mais circenses. É que estes gênios tem qualquer coisa de carisma artístico – para não dizer religioso –, em posse do quê eles renovam a assimilação de suas obras nos terrenos de saber especializado, fazendo com que cada nova publicação – candidata natural a best-seller universitário – chegue às mãos dos destinatários como objetos quase que ungidos.

            A princípio, este não deveria ser um fato que provocasse revolta. Afinal, não são as suas ideias expressões genuínas de um exercício profundo e de aspiração supra-histórica e transnacional a que convém chamar de filosofia? Pensemos: não é definitivamente reveladora a tese de que o poder é uma constante manifesta nas instituições e práticas humanas, sob a presença da qual elas se tornam formas sociais de dominação e exploração, tal como o postularia Foucault? Ou então: não é perfeitamente admissível o pensamento de que a legitimidade do poder reside na deliberação possibilitada por meio de expedientes de comunicação não distorcida entre indivíduos e grupos, tal como o propõe Habermas? Ambas as ideias não são imprescindíveis para quem quer pensar a política hoje, e em qualquer lugar do mundo?

            Não nos percamos entre ironias e deboches ingênuos. Que as teses destes grandes heróis sejam persuasivas e convenientes ninguém há de duvidar. Que elas tenham alguma utilidade em realidades sociais mesmo as alheias ao radar dos filósofos proponentes, também é algo que se pode admitir. Contudo, o que pode estar sujeito a suspicácia, por parte de quem participa de experiência social, cultural, institucional etc. distinta da do pensador lido com destrambelhado entusiasmo, é o horizonte por ele traçado. Ponha-se, então, a questão simples e ignorada: "a que tipo de sociedade o conjunto de ideias deste pensador intenta?" e vejamos qual resposta pode ser entrevista na obra em exame.

            Conquanto soe algo mesquinha e imediatista, esta pergunta não é extemporânea ao universo dos filósofos políticos históricos. Aristóteles não pensou a política senão para solidificar as instituições e práticas – entre as quais o escravismo – da democracia grega existente em sua época. Maquiavel não escreveu O Príncipe (1513), interrompendo os Discursos Sobre a Segunda Década de Tito Lívio (1531), como um manual prático para políticos ambiciosos (embora um falecido governador da Bahia houvesse obtido êxito assim o interpretando), mas como uma compreensão geral dos requisitos necessários para consumar a unificação da Itália, totalmente fragmentada no período. Hobbes, quem melhor pôs a razão a serviço do pânico, pariu o Leviatã (1651) do útero da Guerra Civil Inglesa, então emblema do impacto social da ausência de uma autoridade central e absoluta empoderada pela razão. Hegel assistira à ascensão de Napoleão, a seu ver, a superação do estado autofágico criado pelo jacobinismo e a consumação da história no velho continente: “vi o imperador, essa alma do mundo, sair da cidade, em viagem de inspecção; é, de fato, um sentimento maravilhoso ver semelhante indivíduo que, concentrado aqui em um ponto, sentado em seu cavalo, se estende sobre o mundo e o domina” – escrevera isso justamente no bojo da ocupação francesa na Prússia, quando fora forçado ao exílio, fugindo do próprio Napoleão, levando apenas os manuscritos de sua Fenomenologia do Espírito (1807). 

            Todos estes pensadores tiveram em mente – primeiramente – uma sociedade: a sua. Ocuparam-se de seu tempo e, principalmente, de seu espaço. A tarefa de filosofar sobre a política lhes era a própria missão de organizar, racionalmente, a sociedade, extirpar seus males, sedimentar suas instituições, torná-la menos vulnerável e mais próspera, mais solidária, mais livre. Suas categorias teóricas não são mais do que experiências concretas vestidas em carapuças abstratas, nas quais, porém, menos se ostenta arroubos de vaidade intelectual do que se cultiva sinceras preocupações voltadas ao enfrentamento de desafios reais.

            Aos filósofos contemporâneos – voltamos ao raciocínio – é mais do que oportuno perguntar qual sociedade lhes apetece. Formulemos, então, melhor: qual esquema global de sociedade é expressamente desejável de seu ponto de vista? Esta pergunta tem que ser feita por quem lê o filósofo, por quem trabalha com as suas ideias, por quem, quiçá, deseja ver realizado o seu projeto. No Brasil, a assimilação dos filósofos mencionados no primeiro parágrafo, nas áreas das humanidades, dos estudos jurídicos e das ciências sociais aplicadas, é imensa, como o notará qualquer curioso que passar as vistas nos anais de congressos nacionais de pós-graduações, ou que ler as ementas das disciplinas teóricas, ou ainda que conferir a sua continuidade/adaptação no Ensino Médio. Se essa popularidade não sugere que há consentimentos pontuais, que desligam elementos de um discurso de filosofia política da forma como organizar a sociedade que ele apregoa; ela revela uma cumplicidade pusilânime, com a qual só se pode inferir que as soluções gerais apresentadas por aqueles filósofos correspondem perfeitamente às aspirações e aos reclames gerais da sociedade brasileira. De uma forma ou de outra, parece permanecer robusto o abismo entre a elite pensante e a cultura popular nacional, com seus problemas longe de terem soluções cogitáveis por gente paga para cogitá-las. Incongruências desse tipo nos fazem lembrar uma das deixas do Millôr Fernandes: "Brasil, um filme pornô com trilha de Bossa Nova!" [1].

2 - Duas tendências: migalhas de participação, overdose de suspicácia;

            Perlustremos a gênese da bifurcação a que chegamos. A geração de pensadores do pós-criticismo procurou responder à questão sobre a organização social apontando para formas diferentes de combinar o socialismo (entendido como uma economia política na qual os meios de produção pertencem ao Estado) com a democracia (o governo gerenciado pelo conjunto da sociedade civil diversamente participativa e representada). Contudo, o desfibramento do socialismo real trouxe uma estiagem de ideias e esperanças que repercutiu numa dupla atitude: de um lado, a concórdia com o projeto mais modesto e realista das socialdemocracias, isto é, a democracia política coexistente à economia aberta e desimpedida, mas com a delegação explícita da assistência social ao Estado; e, de outro, a mais absoluta desconfiança e revolta contra as instituições convencionais, e às práticas e hábitos a elas associados, desconfiança essa não suprida por um projeto que possibilitasse uma resposta positiva à questão sobre a organização social. Tentativas de síntese entre esses dois caminhos não prosperaram - como não vingaram mais recentemente diálogos entre burocratas e black-blocs. 

            Habermas e Rawls, tal como os vemos, são os melhores expoentes do primeiro lado, assim como Foucault e Derrida do segundo. Sem ter qualquer veleidade de escrutinar a obra destes grandes mestres, passaremos em revista a fragmentos de suas ideias políticas, as quais chamam a atenção pelo impacto que criaram nas universidades e nos governos de todo o mundo, inclusive no Brasil. A generosa proposta da justiça como equidade social, por Rawls, é uma clara tentativa de atribuir função objetiva e intransferível ao Estado, numa sociedade em que a liberdade competitiva dos mercados é uma premissa amplamente aceita. A sociedade americana abraçou a economia de mercado em sua eficácia para produzir riqueza, muito embora não houvesse deixado de ostentar desavergonhadamente seus bolsões de miséria. A proposta de Rawls é a de que, mantendo o jogo do mercado tal como ele é, podemos e devemos, por meio de um consenso abrangente da sociedade, equipar os jogadores desassistidos para competir em pé de igualdade com os demais, e deixar que, no certame, os de melhor desempenho sejam vitoriosos e laureados. Trata-se de uma filosofia política que prescreve (ou que é prescrita por) uma economia política: a filosofia que tematiza a justiça em termos de equilíbrio de base é perfeitamente compatível com – e talvez seja a melhor forma de realizar – uma economia liberal centrada no princípio da competitividade sistêmica. Injustiça seria impedir que humanos acelerassem o metabolismo do organismo econômico simplesmente por não terem alcançado o grau mínimo de cidadania requerido para tanto. A filosofia política rawlsiana cai como luvas nas mãos de um regime socialdemocrata aplicado em uma sociedade dinâmica e complexa, como a americana, que é desigual, que infla anualmente com a absorção de imigrantes e que tenta regenerá-los de alguma forma.

            A socialdemocracia também é muito bem assessorada, mas de modo levemente distinto, pelo pensamento alemão de Jürgen Habermas. O filósofo é autor de uma complexa e monumental teoria do agir comunicativo, a partir da qual aventa a tese de que a inclinação ao consenso é o pressuposto básico de todas as instituições espontâneas porque de toda experiência de comunicação. Disso, ele infere que as sociedades devem garantir o direito à expressão e participação, nos assuntos públicos, de todos os implicados nos vínculos sociais, atores cujas contribuições assegurariam a criação de instituições e regras mais abrangentes e inclusivas. As formas de distorção da comunicação prejudicam a sociedade como um todo porque impedem o alcance máximo do consenso potencial da comunicabilidade, inibindo e excluindo agentes sociais, indivíduos e grupos. Habermas tem em mente uma sociedade complexa que precisa lidar com as diferenças étnicas, raciais e sociais, sem titubear para a ameaça da irracionalidade nazista. Trata-se de um conjunto de ideias que aponta para uma sociedade concebida nos moldes dos partidos progressistas europeus. Seu desenho mais proveitosamente realizável é o das experiências escandinavas e renanas: as socialdemocracias que priorizam conceder direitos e não energizar os mercados.

            Do surto socialdemocrata, Rawls representa a face assistencialista, Habermas, a ideologia da participação. Elas, juntas, depositam grandes esperanças no direito dos cidadãos e no dever do Estado de assegurá-lo, muito embora não esbocem uma alternativa social que dê substância à inclusão e à sustentabilidade duradoura dos direitos, por não recomendarem uma reorganização do mercado. Assistimos aqui ao drama narrado por Ítalo Calvino, em seu célebre "O Cavaleiro Inexistente"[2], na passagem em que o rei Carlos Magno dialoga com um estranho cavaleiro trajado da mais impecável armadura, um cavaleiro que, entretanto, não existe fora daquela armadura:

            - E por que não levanta a celada e mostra o rosto? [...]
            - Porque não existo, sire. [...]
            - [...] E como é que está servindo, se não existe?
            - Com força de vontade [...] e fé em nossa santa causa!
            - Certo, muito certo, bem explicado, é assim que se cumpre o dever. Bom, para alguém que não existe está em excelente forma!

            Sem uma economia política capaz de reorganizar as instituições econômicas, garantindo a inclusão do cidadão, não como mero portador de direitos abstratos, mas como agente econômico real, autônomo, criador, o discurso socialdemocrata concebe sua missão como um assistencialismo redistributivo, tratando indivíduos como vítimas do mercado a serem amparadas por um Estado que distribui migalhas. Esse discurso é explícita ou disfarçadamente abraçado nas academias brasileiras, sobretudo nos estudos jurídicos e na ciência política, áreas nas quais a ênfase na institucionalidade requer a procura por teorias construcionistas, ainda que minimamente. Entre os políticos brasileiros, ele toma a forma do "discurso do social", cuja contemplação narcísica é ironicamente pintada por Mangabeira Unger:

Cada líder político contempla-se no espelho, cercado por seu claque, e pergunta: 'não sou eu o mais social de todos, o amigo mais sincero do social, eu que sei reconciliar o realismo nas finanças e a eficiência na produção com a insistência em corrigir as injustiças do mercado, eu que não esqueço os excluídos enquanto luto para que o país siga o exemplo triunfal das democracias do Atlântico Norte?' (Unger, 2001, p. 9)

            Mas essa não é toda a história. Além do discurso das migalhas de participação, há um discurso mais engajado e enérgico, porém, avesso a todo e qualquer construtivismo, apontado como ingênuo ou canalha. Trata-se de uma atitude a que se pode chamar de overdose da suspicácia: discursos que tomaram os caminhos abertos principalmente pelo desconstrucionismo derrideano e pelo foucauldianismo. Nas humanidades e nos estudos literários, o desconstrucionismo penetrou com vigor priápico e por ali espalhou sua fertilidade, tornando-se uma inevitável fonte de articulação e referência. O combate a todas as estruturas pela desmontagem epistemológica acumpliciou-se do discurso contra as estruturas de poder, aquele detalhadamente concebido por Michel Foucault. Este último ou o convênio de ambos, então, permanecem sendo as lentes por que enxergam a realidade social uma massa túmida de sociólogos e antropólogos, bem como, e principalmente, as lideranças de movimentos sociais organizados.

            Tais atores e ideólogos oscilam entre um histérico anarquismo e um tonitruante vácuo de ideias, quando indagados sobre qual sociedade esperam extrair de tais filosofias. A dificuldade de enxergar um projeto social exequível é compensada nas produções intelectuais e na militância política pela conduta denuncista que, em muitos momentos, assemelha-se a uma melancólica nostalgia do marxismo. Em exótica simbiose, costumam associar obsessivamente as distintas perversões e crueldades sociais a uma mesma fonte, como se toda a diversidade do mal proviesse de uma mesma cabeça maligna (a do capitalista) - modus operandi semelhante ao do cristão que liga todos os pecados à influência do "adversário" (o capeta). Quiçá, neste ponto, nos forneça uma pista para tamanho imbróglio a etimologia da palavra "cabeça" (caput), que origina tanto "capeta" quanto "capitalismo".

            O que estas duas tendências conservam em comum, por trás de suas escancaradas divergências, é um misto da incapacidade de acreditar numa produção filosófica nacional que ajude a lidar com os entraves que os filósofos estrangeiros lhes parecem contornar eficazmente, com um fascínio fetichista pela áurea de seriedade e pertinência ubíqua do pensamento oriundo de terras clássicas. Essa atitude mentalmente colonizada com que se posta os cultores das academias e os ideólogos políticos brasileiros revela uma estranha tendência que o Brasil parece ter, e a qual nenhum linguista nos poderia ajudar a explicar: a de pensar com sotaque.
             
3 - Roberto Mangabeira Unger: um pensamento sem sotaque

            Não há nenhuma razão para se tomar a obra de Roberto Mangabeira Unger como o santo graal da originalidade, mas é absurdo ignorá-la por completo. E não afirmamos isso com base em seu prestígio internacional, mas no quê seu pensamento tem a dizer concreta e objetivamente sobre o Brasil.

            Chega ao nível do anonimato a crítica que se lhe é feita, na imprensa e na academia brasileiras, que destina-se a desqualificar a mensagem desqualificando o mensageiro. E, para piorar, o investimento difamatório é dirigido a um aspecto vergonhosamente liliputiano do filósofo: o seu "sotaque estrangeirado". Aliado à excentricidade discursiva e à performance facial repleta de esgares, o sotaque conserva-o uma figura folclórica da política nacional. As caricaturas, entretanto – e infelizmente –, não são mais do que álibi para o cultivo de um orgulhoso desconhecimento quanto ao conteúdo de seus mais de doze livros.

            Foi Richard Rorty quem notou o que a sabedoria convencional tupiniquim ainda não conseguiu captar: o professor Roberto, apesar de ter ajudado a reformar as escolas de direito e o pensamento jurídico e social americanos, sempre teve a sua cabeça em outra realidade. Comparando Unger a Walt Whitman, Rorty atribuiu à sua obra a expressão "Romance de um futuro nacional". Nada mais apropriado. A filosofia política de Unger se dirige explicitamente a um mundo por se fazer; e, conquanto o filósofo brasileiro identifique a necessidade da ação reconstrutora nas mais diferentes nações, sua atenção é majoritariamente canalizada para os grandes países em desenvolvimento, especialmente o seu país natal.

            O romance de um futuro nacional ungeriano é uma coordenação de ideias sobre o Brasil, mas ele não se restringe a uma narrativa histórica, nem a uma análise estanque de conjuntura, nem a arroubos românticos de enaltecimento cultural, e nem a profecias de palanque. Em vez disso, é uma ligação íntima, coerente e mobilizadora, do passado, do presente e do futuro nacionais, sobre o lugar e o papel do Brasil na história da humanidade, sobre seus compromissos consigo próprio e sobre sua relação com os demais países no contexto de globalização. Esse romance só poderia ser escrito sob a égide de uma poderosa imaginação posta a serviço de um projeto nacional: teórico e reconstrutivo. Mas como isso se dá em termos conceituais?

            Primeiramente, é importante sublinhar que Unger é, antes de tudo, um filósofo social. A compreensão geral que ele oferece sobre a natureza do vínculo social orienta os demais passos de seu pensamento. Isso se aplica desde a sua antropologia filosófica. É componente decisivo dela, que se articula, por assim dizer, já na base de sua filosofia política, a vitalidade potencial da humanidade, constantemente obnubilada por contextos e estruturas sociais inventados para contê-la, sob o alegado pretexto dos riscos que ela tende a nos sujeitar. Essa vitalidade tem a mesma dupla face do conceito de liberdade de Isaiah Berlim: enquanto capacidade negativa é aquela experiência de nunca estarmos plenamente contidos, de nunca ajustarmo-nos comodamente aos contextos sociais e culturais que habitamos; enquanto agência criadora é aquela experiência de impor ao mundo a nossa vontade formatada pela imaginação. Eis aqui uma maneira com que Unger descreve o que inúmeras tradições filosóficas, tanto seculares, quanto religiosas, intuíram: há muito mais na densidade espiritual humana do que nas estruturas que são por nós criadas, elas são finitas com respeito a nós, nós infinitos com respeito a elas.

            A partir deste enquadramento, Unger chama a atenção para algumas interessantes consequências. É possível, por exemplo, conceber uma releitura da situação humana no mundo e da relação dos homens e das mulheres comuns com as estruturas e instituições sociais que dão conteúdo aos vínculos existentes. A situação da humanidade é a do engrandecimento contido, a experiência de seres infinitos presos em cápsulas finitas. A relação entre as pessoas e seus vínculos é de luta, luta que requer permanente reorganização dos componentes das estruturas e instituições. Mas Unger também reconhece que essa luta não é percebida pelas pessoas no curso ordinário de suas vidas, e isso deve-se a uma impetuosa campanha moldada em discursos e práticas que atribui necessidades falsas à realidade existente. É por isso que um dos grandes desafios empreendidos por esse filósofo está em diagnosticar as raízes fatalistas do pensamento social (ST), que alimentam essa ilusão de necessidade, e confrontar a filosofia política que nelas se assenta, contrapropondo-as a premissas que apostam na contingência das coisas humanas (FN). Estas premissas compõe o escopo da ideia que Unger denomina "sociedade como artefato" (Unger, 1997, p. 3) e que atribui a uma longa tradição de pensadores que se seguiram a Giambattista Vico, segundo quem as estruturas sociais nós as podemos compreender porque as criamos[3].

Com Mangabeira, a ideia de sociedade como artefato ganha uma versão contemporânea radical na tese de que tudo é política (it's all politics): na vida social, das culturas familiares às leis mais abstratas do Estado, tudo é resultado de conflito interrompido, congelado. "Defeated or exhausted, people stop fighting. They accept arrangements and preconceptions that define the terms of their practical and passionate relations to another" (Unger, 1997, p. 72). Tais arranjos são cristalizados como estruturas. Cada estrutura reproduz atividades de dois tipos: as mais abundantes que a confirmam e as raras que a negam. Singularmente distinto de um pensamento marxista, a tese de que tudo é política não compreende que a transformação social só é real quando substitui um conjunto integrado de estruturas por outro, mas quando uma atividade que nega uma estrutura cria instabilidades que perturbam as demais estruturas revelando a contingência dos arranjos existentes e qualidade experimental da sociedade. A reforma revolucionária - forma paradigmática da transformação em Unger - não se alinha a uma visão da história linear e determinista, e aliás, a impossibilita.

            O principal leitmotiv do pensamento ungeriano está justamente na proposição de que, entre todas as atividades humanas, a filosofia e a política são como que irmãs: por seu conteúdo, uma vez que abordam tudo e não abordam nada especificamente, e por sua complementaridade, já que uma é o pensamento visando a ação e a outra a ação abraçando o pensamento. Nestes termos, as categorias teóricas são chanceladas pela sua intervenção no mundo e a ação política requer o respaldo do pensamento sobre as alternativas existentes e as possíveis. Conectando os temas anteriores, podemos aferir que Unger entende o engrandecimento da liberação do infinito aprisionado no finito como a mensagem da democracia. Para ele, a democracia não é um regime de atenuação das injustiças sociais, nem o de participação via direitos (inclusive os de voz e voto) em assuntos coletivos. A democracia é uma forma de viver em grupo na qual o todo cresce e prospera com o engrandecimento das partes.

Visto por um ângulo maior e mais revelador, o projeto democrático foi o esforço de tornar a sociedade um sucesso prático e moral, pela conciliação da busca de dois gêneros de bens: o bem do progresso material, nos libertando da servidão e da incapacidade e dando armas e asas aos nossos desejos, e o bem da independência individual, nos libertando dos esquemas triunfantes de divisão e hierarquia social (Unger, O Direito e o Futuro da Democracia, 2004, p. 16)

Não há conquista destes bens, não há engrandecimento, entretanto, se o indivíduo é mergulhado nas ilusões da cisão público privado que finge realizá-lo negando a sua conexão com os outros e com o mundo. Engrandecimento pressupõe maior grau de envolvimento, de engajamento na realidade, em sua reconstrução, em sua transformação. Democratizar não é perseguir a senda das caricaturas do "empoderamento", é favorecer o potencial criador, inventivo, atuante, que existe em cada homem e em cada mulher, por meio de inovações institucionais conquistadas pelo ímpeto social de autocriação. A mensagem aventada nas socialdemocracias de humanizar as práticas e instituições humanas não seria, portanto, um bom exemplo de mensagem democrática, posto que o ideal de humanizar as práticas sociais seria secundário em relação ao ideal de divinizar a humanidade. Já aqui Unger se diferencia, e em muito, dos que o criticam pelo sotaque, pois que a ideia de democracia que circula nos ambientes universitários e na mídia é precisamente aquela baseada na ideologia da humanização, que ele, ironicamente, denuncia como "discursos do açúcar". Vamos então a algumas considerações sobre o Brasil através de Unger.

4 - O Brasil desacorrentado

            O professor e cientista político Carlos Sávio Gomes Teixeira oferece uma divisão das tendências do pensamento social e político brasileiro em três perspectivas: à primeira ele denomina "liberalismo culturalista", da qual destacam-se os nomes de Ruy Barbosa, Sérgio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro, grupo cuja principal ideia seria a de que o problema maior do Brasil é a tendência à personalização oriunda de nossa herança ibérica; à segunda perspectiva ele denomina "estruturalismo sociológico", e nela destaca os nomes de Caio Prado Jr. e principalmente Florestan Fernandes, tendo este grupo a ideia de que o problema do Brasil sempre foi a maneira como o capitalismo aqui se instalou; a terceira perspectiva, denominada "construtivismo institucional", associa um número amplo de pensadores, mas destaca Guerreiro Ramos, Ignácio Rangel, Darcy Ribeiro e Roberto Mangabeira Unger, grupo que seria fundamentalmente movido pela ideia de que o problema do Brasil é a falta de um projeto de compreensão da realidade nacional e de construção institucional (Teixeira, 2015). Concordamos com as teses de Teixeira e registramos que esse alinhamento com o construtivismo institucional é o principal elemento de divergência entre o projeto de Unger e o dos filósofos políticos que elencamos anteriormente.

            Se muito bem aplicado, o máximo que o projeto habermasiano daria ao Brasil é a feição de uma sociedade bem comportada e justa, tal como as democracias renanas sob governos progressistas, mas o faria sacrificando dados que conferem às nossas contradições, traumas, vícios e virtudes coisas compreensíveis para nós próprios, sob o preço de realizarmos o que as sociedades exitosas do Atlântico Norte conseguiram em termos de igualdade, decência e civilidade. Por outro lado, se o corrosivo pensamento foucauldiano é levado a cabo pela sociedade brasileira, as consequências seriam bastante nebulosas, visto que toda a crítica à institucionalidade concebida pela brilhante cabeça do mestre francês é lançada contra instituições que foram em algum momento histórico abraçadas pela sociedade. É uma crítica à crueldade da exclusão por instituições que nasceram das contradições internas da sociedade em análise.

No Brasil, e aqui está um detalhe que torna o pensamento de Unger especial, a relação do povo com suas instituições nunca foi poiética, sendo, antes, mimética, com respeito ao que os vizinhos do norte criaram. A cópia institucional marca um ponto distintivo que não pode ser desprezado por quem quer conceber uma filosofia política de real impacto - respeitando, assim, a tradição iniciada por Aristóteles. O que ela é, afinal? A experiência de incorporar de outro país o modelo de organização de pedaços da vida social, sem que tenha-se experienciado, na realidade que incorpora, todo o histórico que originou, e que, portanto, confere sentido àquela forma de organizar. 

            A propensão de copiar instituições revela outro dramático item de nossa experiência nacional: o abismo entre as elites dirigentes do país e a massa populacional que permanece em sua retaguarda. A elite, composta de quadros do segmento financeiro, político, intelectual e midiático, toma o Brasil por uma horda de ostrogodos dóceis, que precisa ser treinada nos preceitos da civilização. Sentindo-se iniciada nos protocolos universais do êxito, essa mimada elite - de acordo com as pistas indicadas por Teixeira sob a alcunha de um liberalismo culturalista - atribui o atraso brasileiro à nossa carência cultural e institucional do atlântico-nortismo e milita para impor aqui as práticas que vicejam alhures. Nesse discurso, as elites possuem historicamente, conseguido uma proteção contra a rebeldia. "O que é característico do Brasil é ter elites que, embora estéreis na criação de ideias ou instituições que interessem à humanidade, são fecundas em estratagemas de sobrevivência" (Unger, 2001, p. 21).

            Unger declara guerra a essa tendência. E sua primeira motivação reside na percepção de que este ideário é também falido nos próprios países dos quais é exportado. Richard Rorty captou com singular sagacidade essa característica intelectual de Unger, de crítico da falta de fibra da elite intelectual e cultural americana, e a interpretou como uma atitude esperançosa. Rorty associa tal atitude à origem nacional do filósofo, ao fato de Unger ter vindo de “um país grande e retrógrado, com gigantescas porções de matéria-prima e uma boa quantidade de acumulação de capital – um país que começou a se lançar para frente, ainda que frequentemente tropeçando em seus próprios pés” (Rorty, 1999, p. 240). Um país aberto a novidades em termos de experimento social, não tendo internalizado os desalentos do velho continente europeu e da precocemente envelhecida América do Norte um país que não pode esperar “alcançar o que o Atlântico Norte alcançou, em igualdade e decência, pelos mesmos meios” (Rorty, 1999, p. 240).

 Unger censura, pois, tanto o atlântico norte pela falta de fibra, quanto as elites do Brasil pelo desejo de importar instituições estrangeiras. Denomina sarcasticamente "Suécia tropical" o ideário dominante no Brasil que é movido por questões do tipo "por que o Brasil não é como a Noruega, a Dinamarca, a Finlândia, a França ou os Estados Unidos?", e que, por ser dominante, é o que permanece dando as cartas nos meios políticos e acadêmicos. Esse ideário é o coração de uma atitude que Unger tem classificado como colonialismo mental.

            Para escapar deste colonialismo, Unger propõe que o pensamento político brasileiro costure a interpretação da realidade com propostas de intervenção. Tais propostas são formuladas de modo a poder ganhar carne institucional, converterem-se em arranjos institucionais concretos, aplicáveis em curto prazo. Sem inventar instituições do nada, o filósofo propõe uma recombinação dos elementos existentes nas instituições existentes e com isso abre-as para inovações.

A marcha para tais inovações institucionais pressupõe uma releitura da própria dinâmica social, na qual sobreleve-se as tensões intrínsecas à sociedade brasileira enquanto tal. Um interessante exemplo do pensamento político de Unger, se comparado ao de Habermas, por exemplo, é que a mobilização política pressupõe, no horizonte habermasiano, a organização dos grupos que pleiteiam lugar de fala, e são esses grupos os que deveriam estar à frente de lutas democratizantes e redistribuidoras. Mas, como observa Unger:

"a sociedade civil brasileira não dispunha até recentemente de instrumentos confiáveis de auto-organização. Tinha as organizações ditas corporativistas que lhe foram legadas pelo regime militar de Getúlio Vargas: o sistema de sindicatos de trabalhadores, associações patronais e câmaras de representação e negociação desenhadas sob o Estado Novo. Prestavam-se ora a uma tutela governamental dos grupos de que mais diretamente dependiam as iniciativas do regime, ora a acertos entre estes clientes coletivos e o Estado que os havia organizado e favorecido.” (Unger, 2001, p. 21/22) 

            A ideia de uma democracia deliberativa, orientada pelo consenso e estabelecida a partir da diversidade de interesses sociais, como pensa Habermas, ou a noção de uma democracia radical, na linha traçada pela filósofa belga Chantal Mouffe, são apenas de soslaio bem empregadas na conjuntura brasileira e justamente pelo que indicamos na citação de parágrafo acima. Uma filosofia política contemporânea precisa encarar o problema da organização social considerando os atores sociais em jogo e definindo qual entre eles melhor exerce o papel de vanguarda transformadora ou de catalisador das tendências dispersas de desejo por mudança social; e tal não é o caso de um pensamento político que pressuponha o prescinda de um tino organizador do agente da transformação, simplesmente porque, em determinadas realidades nacionais ou regionais, só se mobilizaram de modo organizado aqueles militantes que, no exercício das rotinas de mobilização, tendem a se isolar de a quem supostamente servem como porta-vozes.

            Logo, o agente transformador no Brasil também carece de critério de escolha não previamente estabelecido em outras filosofias políticas. A questão é a de atribuir relevo ao lugar ocupado pela maioria de trabalhadores desorganizados, muitas vezes deixados na informalidade, e à classe média emergente que inauguram, ambos, uma cultura de autoajuda e iniciativa baseada na independência do Estado. A relação entre o Estado e a sociedade civil independente não pode passar nem por perto do paternalismo, outrossim, não pode ser constituída de um abandono deliberado, sob alegação de incapacidade sistêmica, do primeiro. As filosofias políticas que, desde Hobbes, se ocupam em discutir a necessidade do Estado, a legitimidade do uso da força por ele, a sua relação com o direito e com o mercado, raramente postularam o seu poder como residindo na plasticidade que inibe a oposição à sociedade ou à economia de mercado. Plasticidade institucional é a compreensão da contingência das estruturas sociais somada à imaginação de formas alternativas de operacionalizá-las. É isso o que Unger deseja. Tal plasticidade aponta, em seu caso, para uma maneira de se colocar politicamente no debate nacional, indicando ideias institucionais que tornem realidade um projeto de emancipação social feito em coordenação com o Estado nacional empoderado. O projeto em questão é progressista e deve compor o conteúdo da militância de uma política de esquerda moderna e desonerada da poluição de um marxismo desnorteado, bem como das duas tendências pseudo-emancipadoras de que falamos: a overdose de suspicácia e as migalhas de participação.

Para finalizar, então, as cinco ideias institucionais de Unger para a consecução do projeto são: (1) o estabelecimento de condições práticas que incluem níveis mais altos de poupança doméstica e estreitamento da relação entre poupança e produção; (2) o tratamento da política social enquanto fortalecimento e capacitação que compreende uma educação vitalícia, dirigida ao desenvolvimento de um núcleo de habilidades práticas e conceituais genéricas; (3) a democratização da economia de mercado que se baseia na sua reorganização com o uso do Estado para criar as condições de novos mercados; (4) o enraizamento da solidariedade social não apenas na transferência monetária, mas também na responsabilidade universal pelos outros; (5) a concepção de uma política democrática de alta energia que requer uma elevação sustentada e organizada do nível de engajamento civil. (Unger, 2008, p. 32-37).   


Legenda:
ST: Social Theory, Its Situation and Its Task
FN: False Necessity

AUTOR
* Tiago Medeiros Araujo é doutorando em Filosofia pela Universidade Federal da Bahia, professor de Filosofia do Instituto Federal da Bahia, órgão no qual também exerce a chefia do Departamento de Filosofia. É autor do livro Pragmatismo Romântico e Democracia (EDUFBA, 2016) e de artigos publicados em periódicos acadêmicos. Além disso, é compositor e instrumentista.
           
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARAUJO, T.M. Pragmatismo Romântico e Democracia: Roberto Mangabeira Unger e Richard Rorty. Edufba, Salvador, 2016.
RORTY, R. (1997) Ensaios sobre Heidegger e outros. Tradução Marcos Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.
TEIXEIRA, C.S.G (2009). A Esquerda experimentalista: análise da teoria política de Unger. 2009. Tese (Doutorado em Ciência Política) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8131/tde-07122009-144805/>. Acesso em: 2015-03-22.
_______, (2014) Filosofia Política e Experimentalismo Democrático: Alternativa para Realizar a Justiça. Revista Lua Nova, V. 13, p 204-222, Florianópolis.
_______, (2015) Modos de explicar o Brasil. O estruturalismo Sociológico de Florestan fernandes e o construtivismo Institucional de Mangabeira Unger. Revista Sinais Sociais. V 10, n. 28, p 55-79. Maio-agosto de 2015. Rio de Janeiro
UNGER, Roberto Mangabeira, (1998) Paixão: um ensaio sobre a personalidade. Tradução Renato Shaeffer e Luís Carlos Borges. Boitempo, Rio de Janeiro.
_______, (2001) Segunda via Presente e Futuro do Brasil. Boitempo, Rio de Janeiro.
_______, (2007) The Self Awakened: Pragmatism unbound. Harvard University Press.
_______, (1999) Democracia realizada: a alternativa progressista. Trad. Graieb, Grandchamp e Castanheira. Rio de Janeiro: Ed. Boitempo.
_______, (2004) O Direito e o Futuro da Democracia. Trad. Caio Farah Rodriguez e Marcio Soares Grandchamp. Ed. Boitempo. São Paulo.
_______, (1997) R.M. Politcs, The Central Texts. Harvard University
_______, (2008)  O que a esquerda deve propor. Trad. Antônio Risério. Civilização Brasileira.



[1] Fernandes, Millôr. A Bíblia do Caos, L&PM, Porto Alegre: 2014, p. 56
[2] Calvino, Ítalo. O Cavaleiro Inexistente. Trad. Nilson Moulin. Companhia das Letras, São Paulo: 2005,  p. 9-10.
[3] Unger registra: Much in our modern ideas about society represents the relentless development of the principle contained in Vico's statement that man can understand the social world because he made it. Unger, 1997, p. 30 

FEIRA DE SANTANA-BA | nº 5 | vol. 1 | Ano 2017

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