Comentário às 'Cartas entre um admirador de Pascal e um leitor da Monadologia' e ao conto 'O nascimento', acrescido de notas sobre a melancolia de Pascal


Bruna Torlay

O clássico dito de Montaigne – “a palavra é metade de quem fala, metade de quem ouve” – é por excelência aplicável à filosofia. Não penso aqui do ponto de vista histórico. Falo, antes, da perspectiva de alguém que a cultiva cotidianamente e faz da escuta o adubo diário de suas reflexões dispersas. Claro que a história do pensamento exprime a máxima com nitidez. Mas, talvez, porque seja um registro parcial desse modo de sentir, pelo qual tantos temos sido afetados desde sempre – e do qual excedemos em testemunhos desde a invenção dos registros duráveis.
A forma dialógica, que Platão associa à prática mesma da filosofia, foi longamente cultivada por escritores zelosos em registrar seus pensamentos em algum momento da vida. No período que a historiografia ora nomeia “moderno”, ela se fez retomar profusamente, muitas vezes disfarçada no cerne de outro gênero, como se o animasse do interior.
Serão os Ensaios o registro das digressões solitárias de um aristocrata em seu retiro, ou a prova viva do diálogo permanente que entretemos com nossos pares, isto é, pessoas que no passado ou no presente (que tempo é o do pensar?), não calaram sua curiosidade pelas coisas, nem sua surpresa constante diante do mundo?
Uma forma da prosa que escancara o espírito platônico de fazer falar a filosofia é o gênero epistolar, praticado muito seriamente, por exemplo, nos séculos XVII e XVIII. Todos conhecem o papel de Marin Mersenne no debate intelectual que gesta a ciência nos moldes em que a herdamos, a aperfeiçoamos, a problematizamos e a atualizamos.
Que edição séria das obras de Descartes, Spinoza, Hobbes, Leibniz e outros excluiria sua correspondência? O mesmo se aplica aos seus herdeiros diretos. A título de curiosidade, vale reparar que o tomo V, Correspondance, das Oeuvres de Diderot publicadas pela editora Robert Laffont é proporcional, em extensão e interesse, ao tomo I da coleção, intitulado Philosophie. Bem, vale admitir também que falamos de um inveterado admirador do pensador e estilista ateniense…
A carta é o rastro de um diálogo aberto. Não tem fim ou princípio e se lê melhor em relação à voz alternada do correspondente. Longe de fincar diante dos pósteros um apanhado definido de ideias verdadeiras, o gênero problematiza a univocidade, no que diz respeito ao destino do pensamento.
Será que a intensidade com que os pensadores modernos trocam cartas diz algo sobre sua desconfiança comum da univocidade? Será possível tocar a superfície daquela miríade de pensamentos sem a sensibilidade peculiar que inspira o signo da diferença?
Um modo de descobri-lo é percorrer os pares antitéticos exibidos nas galerias barrocas do XVII, nas quais o contraste acentuado entre sombra e luz nos conduz, ao final do passeio, a descobrir sua profunda interdependência, a equivalência entre suas proporções.
Às vezes me pergunto se o espírito cético e satírico que marca a inteligência de tantas mentes do XVIII não seria uma resposta à lucidez duplicada e clara-escura do barroco, que muitas vezes nos paralisa, diante da obrigação árdua e sumária de tomar um partido às expensas de outro.

II

Há quem reserve ao romantismo dos oitocentos a guarda das sombras; tendo legado aos séculos anteriores (que tempo é o do pensar?) o apreço otimista pela luz. Pascal surge para espalhar o mal-estar sobre esquemas confortáveis e simplistas. Pascal, cuja brilhante contribuição à ciência não se ousaria desprezar; cuja razão aguda desde cedo fez-se clara – e cuja melancolia acerba não escaparia ao diagnóstico tardio de Philippe Pinel, ilustrando a terceira de suas observações de melancolia:
Blaise Pascal nasceu em 1623, de uma família que possuía em Auvergne posições distintas, as quais honrava com suas virtudes. Praticamente desde o berço, deu indício da celebridade precoce que justificou, em seguida, uma vastidão de escritos que ainda testemunham a superioridade de seu gênio. Uma educação acurada e estudos prematuros desenvolveram nele o gosto exclusivo pelas ciência mais abstratas, e um trabalho persistente cedo alterou sua constituição física, que já era frágil e vacilante. Desde então, a saúde de Pascal foi se deteriorando continuamente, e nada podia desacelerar seu ardor pelo estudo. Após uma longa ausência, de volta ao seio familiar, ele dividiu seu tempo entre a sociedade e as meditações. Mas logo, isolamento penível que o fez sacrificar tudo em prol dos trabalhos intelectuais, e por consequência, perecimento sensível. Para frear o avanço de seu estado, seu médico o aconselhou a praticar a caminhada e a evitar toda contenção de espírito.
Pascal reaparece no mundo. Contribui com grandes talentos, grandes virtudes e uma celebridade bem adquirida. Mas, ao mesmo tempo, um temperamento melancólico, uma vaidade natural e o desejo pronunciado pela indulgência que ele concedia aos outros. Ele já preferia a sociedade que formara para si à solidão, e cogitava até mesmo a ela ligar-se pelo laço conjugal; mas um acontecimento memorável na história de sua vida daria a suas ideias um contorno inteiramente diverso.
Todos os dias, Pascal passeava nos arredores de Neully. Uma tarde, os dois cavalos da linha de frente de seu fiacre escapam ao controle e se projetam da ponte de Neully sobre o Sena. O abalo foi, por sorte, violento, rompeu os cabos que uniam a primeira trela à fila de trás, e o fiacre estancou na beira do precipício. Pascal saiu completamente ileso, mas vivamente assustado, e o primeiro resultado desse susto foi uma síncope que durou por muito tempo. Pode-se imaginar facilmente a comoção física e moral que deve ter afetado um homem frágil e lânguido.
Por volta da mesma época, sucedeu-lhe na sombra da noite uma espécie de visão ou de êxtase, de que ele conservou a memória num papel que carregava sempre consigo, e que uns viram como um amuleto; outros, como um modelo de virtudes cristãs. A sensação desse infeliz acontecimento, refigurado sem cessar em sua imaginação, conturbava-o o tempo todo, sobretudo à noite, no meio de suas insônias e de seu esgotamento. Ele acreditava que havia um abismo de seu lado esquerdo, e fazia com que se pusesse ali um assento para se garantir.
Eu não insistirei sobre os traços acessórios da melancolia, sobre seus temores, sua desconfiança, seus escrúpulos, sua paixão dominante ou sua devoção minuciosa.
Os propósitos reconfortantes da amizade acalmavam seus alarmes por pouco tempo. Mas, um instante depois, Pascal revia o precipício, sempre assustado pelo mesmo fantasma, ou este desvio de sua imaginação; e oito anos após o aflitivo acidente, Pascal morreu aos trinta e nove anos de idade.[1]

O fundador da psiquiatria foi também grande leitor de escritos antigos, e reúne medicina e filosofia em suas considerações sobre o estado melancólico, suas espécies e seus tratamentos. Dos acessos de distorção relativamente à sua constituição, ao tédio particular ou epidêmico, Pinel classifica este estado psíquico em oito categorias, após tê-lo remetido ao “gênero LXVIe da nosologia de Cullen”, definida como “loucura particular que não se acompanha de dispepsia”.[2]
O elemento central dessa doença da alma, a qual exige, portanto, um tratamento moral, seria o “delírio exclusivo sobre um objeto único”,[3] ou o auto-enclausuramento no interior de uma ideia fixa. Trata-se da perda de domínio sobre a imaginação, que faz o sujeito sucumbir ao seu arbítrio. Os parágrafos sobre seu tratamento ecoam de modo assombroso as observações de Montaigne ao discorrer sobre a força da imaginação[4], conquanto delas se destaque pelo zelo asséptico:
Costuma-se apresentar duas indicações principais no tratamento da melancolia: em uma, propõe-se destruir a ideia dominante dos melancólicos, combater seu delírio exclusivo. A outra consiste em operar a cura radical da doença.
(…)
Às vezes é da maior urgência destruir certas ideias quiméricas que dominam os melancólicos a ponto de impedi-los, em alguns casos, de satisfazer às necessidades mais urgentes. Pois já se viu melancólicos morrerem por sua obstinação invencível em recusar toda espécie de nutrição. Algumas vezes, foi preciso expedientes dos mais felizes, estratégias das mais singulares para conseguir impedir os efeitos funestos das excentricidades de sua imaginação.
Um melancólico pensava que estava morto, e por isso não queria comer. Todos os meios de que se dispôs para fazê-lo comer alguma coisa haviam fracassado. Ele corria risco de morrer de fome, quando um de seus amigos teve a ideia de fingir-se de morto. Ele foi posto num caixão na frente do melancólico, e alguns momentos depois, trouxeram-lhe o jantar. O melancólico, vendo o falso morto comer, pensou que ele também seria capaz de fazê-lo e pôs-se a imitá-lo.
(…)
Cumpre o mais das vezes entrar em suas visões, parecer persuadido da existência de seus males imaginários, enfim, desarrazoar com eles para os reconduzir à razão.[5]
Montaigne contentava-se em reconhecer nele próprio esse pendor ao delírio que, em alguns, de nota se torna um ritmo do qual é possível desviar. Para Pinel, médico em busca de restabelecer a normalidade, trata-se, ademais, de “subjugar a paixão”. O melancólico precisa ser salvo em definitivo, sob o risco de perecer como pereceu Pascal, cujas habilidades matemáticas de nada serviram no controle dos afetos. O papel do médico seria exercer este controle no lugar do paciente inepto, a fim de erradicar a causa da doença:
É impossível curar radicalmente a melancolia, se não destruirmos as causas que a produzem.  Logo, deter o conhecimento prévio dessas causas é de primeira necessidade. Lembrando-se daquelas que são mais frequentes, percebe-se que é apenas produzindo nos melancólicos impressões enérgicas e longamente continuadas sobre todos os seus sentidos externos; é apenas combinando habilmente todos os meios do recurso da higiene, que se pode produzir uma mudança durável, e fazer um desvio feliz das ideias tristes dos melancólicos, e até mesmo alterar o seu encadeamento vicioso, e [delimitar] o pequeno número de casos em que os medicamentos são necessários.
É nos recursos de um bom regime físico e moral que devemos, principalmente, fazer consistir o tratamento da melancolia. Cabe ao médico hábil encontrar os meios, determinar a escolha e a ordem dos mesmos, segundo os conhecimentos da constituição particular do doente, de sua idade, de seu sexo, de suas ocupações habituais, da região onde mora, e sobretudo das causas ocasionais da doença e dos períodos que ela suscedeu.
É oportuno dizer que o parágrafo imediatamente posterior a este alude a um ensaio de Bacon. Se Pinel é tributário de Locke e Condillac,[6] não o seria antes da técnica de investigação experimental,  caracterizada pela exigência de captura da natureza via experimento? Bacon faz do episódio sobre Menelau e Proteu a imagem mais certeira a exprimir o embate entre o cientista experimental e a natureza: Proteu, o deus capaz de mudar de forma constantemente, foi amarrado por Menelau enquanto dormia. E com tamanho engenho que, desperto, não escapa aos nós por nenhuma de suas transformações, as quais se sucedem diante do herói engenhoso, que por fim o faz falar[7].
A natureza não se revela espontaneamente. Ao contrário, manifesta-se sob aspectos múltiplos cujo cerne é de difícil captura. Daí a necessidade de se imaginar uma armadilha que a obrigue à estabilidade provisória, momento em que capturamos seus segredos. O nexo entre tradição médica e filosofia experimental se deixa ver de modo mais sereno que Proteu por Menelau.[8] Não é à toa que as ciências da vida parecem ter nas direções para o crescimento do saber delineadas Bacon no início do XVII o rosto moderno de sua matriz comum. Não é de se estranhar que os hospitais psiquiátricos em que trabalhou Pinel fossem, a um só tempo, laboratórios de contenção e interpretação da natureza. Vale recordar ainda, entre os adeptos da ciência experimental, o valor da natureza manifesta sob aspectos extraordinários ou sob as amarras da técnica, para a investigação de suas formas.[9]
Caso a caso, as instâncias de desvio imaginativo são coletadas em suas particularidades pelo médico, de modo a fundamentar e ampliar as classificações possíveis de um aspecto da natureza (aqui, o estado melancólico, tal como à época se o entendia):
A melancolia permanece com frequência estacionária durante muitos anos, sem que o delírio exclusivo que tem por objeto mude de característica, sem nenhuma alteração nos aspectos moral [psíquico] ou físico. Observa-se alienados desta espécie no hospício de Bicêtre, há doze, quinze, vinte ou até mesmo trinta anos, sempre presos às ideias primitivas que indicaram seu desvio, sempre arrastados pelo movimento lento de uma vida monótona que consiste em comer, dormir, isolar-se do mundo inteiro, e coabitar apenas com seus fantasmas e suas quimeras. Alguns, dotados de um caráter mais maleável, passam a um estado declarado de mania tão só pelo hábito de ver ou ouvir alienados furiosos ou extravagantes; outros experimentam, após muitos anos, uma espécie de revolução interior por causas desconhecidas, e seu delírio muda de objeto, ou assume uma forma nova. Um alienado desta espécie, confiado aos meus cuidados há doze anos e de idade já avançada, durante os oito primeiros anos delirou exclusivamente quanto à ideia quimérica de um pretenso envenenamento, sob cuja ameaça acreditava estar. Neste intervalo de tempo, variação nenhuma em sua conduta, nenhuma outra marca de alienação. Ele era mesmo extremamente reservado em seus propósitos, estando persuadido de que seus parentes buscavam interditá-lo e apossar-se de seus bens. A ideia de um pretenso veneno o tornava apenas muito desconfiado, e ele só ousava comer os alimentos subtraídos furtivamente na cozinha de seu internato. Por volta do oitavo ano de reclusão, seu delírio primitivo mudou de aspecto: ele acreditou, primeiro, ser o maior dos potentados, depois, um igual ao Criador e o soberano do mundo. Esta ideia ainda faz sua felicidade suprema.[10]  

Com este olhar analítico, capturou os tormentos de Pascal, cuja angústia se torna, então, um estudo de caso, do tipo que ilustra a possibilidade de associar debilidade física, medo intenso e propensão a fantasias obstinadas.

III

Sem sair do quadrado espaço-temporal que abrangeu Pinel, mas passando, numa inversão de perspectiva, do registro observação clínica ao registro diário íntimo, reencontramos a melancolia de Pascal ponderada por um melancólico confesso:
Meu estado habitual é um sentimento penível quanto à existência. Tudo me parece difícil e apenas com lentidão e desconfiança de mim mesmo, eu me determino a fazer o que quer que seja. Quase sempre uma simples carta me inspira dificuldade e faço dela um grande caso. No gabinete ou afora, sou perpassado por este sentimento mesclado de desgosto, de impaciência, que dá às minhas ideias, como aos meus movimentos, uma precipitação sobre a qual não tenho controle e impede que essas ideias, esses movimentos se completem ou se executem em ordem, com a medida conveniente; tenho consciência desta precipitação involuntária, desta incompletude que não consigo preencher, desta desordem que não posso remediar, e isso me atormenta.[11]
Assim inicia Maine de Biran a meditar sobre o ponto de apoio, de início ausente, sem o qual a sua vida não faz o menor sentido. O aspecto de auto-confissão do diário não destoa das meditações metafísicas de Descartes, Spinoza ou Malebranche. Vejamos onde a clara descrição de angústia o leva, afinal. Ele prossegue:
Eu sinto a cada dia que todo ponto de apoio exterior me escapa. Eu não consigo encontrá-lo em nenhum objeto exterior a mim; eu já não tenho como outrora este grande desejo de agradar, de ser amado, porque sou avisado, por comparações contínuas, como também por meu senso íntimo, que perdi tudo o que atraía para mim, tudo o que me trazia vantagens no mundo. Eu não sei se encontrarei ainda este ponto de apoio em mim mesmo, onde eu me comprazia outrora em adentrar. Eu não sei se a gente está mais disposto a se buscar e a se encontrar com prazer na idade da força e da plenitude da vida; afecções doces, um sentimento feliz quanto à existência nos atraem para dentro de nós-mesmos e fazem com que sintamos menos necessidade de sair dali; afecções tristes, um sentimento penível quanto à existência, nos afastam de nós e nos fazem sentir a necessidade das distrações ou diversões exteriores; mas o mal que nos atormenta é acrescido por essas distrações mesmas, e se sofre duplamente, pelo desgosto quanto às coisas de fora, ou um mundo que nos repugna, e pelo descontentamento, ou o vazio que se acha em si, quando se é forçado de voltar para lá.
Eis os fatos de experiência interior, que eu constato a cada dia e dos quais me faço um relato refletido para me incitar a buscar no fundo de meu ser e na ideia de Deus que ali se acha, este ponto de apoio que é impossível encontrar além, a fim de dar ao meu resto de existência o propósito que lhe falta completamente.[12]

A dubiedade entre o anseio íntimo de serenidade, oferecido por um ainda incógnito ponto de apoio, e a sensação de precipitação descontrolada, dá o tom à experiência ética:
Eu busco o tempo inteiro esconder dos outros o que sou e dar-me a aparência exterior de uma ciência, de uma virtude que eu não tenho, ou de qualidades intelectuais, morais ou mesmo físicas, das quais eu sei bem para comigo ser desprovido. Está aí uma ocupação miserável de minha vida, enquanto que, por outro lado, quando estou sozinho e reflito, tenho sede de verdade e a busco profundamente em mim mesmo.[13]

Serão o apuro da consciência e o cuidado de si, como legaram os antigos, o caminho conducente à serenidade? Será a faculdade racional capaz de nos extrair do inexplicável abismo de desgosto para dentro do qual nos sentimos aspirados? Considerando a complexidade fisiológica um fator preponderante para explicar a oscilação afetiva, Maine de Biran registra em seu diário a inviabilidade de algumas respostas filosóficas à melancolia. Para além de toda metafísica erigida em nome daquele ponto de apoio, sem o qual viver e pensar se torna impossível, o corpo, a sensibilidade, determina a tinta afetiva que nos percorre inexoravelmente[14].
O paradoxo entre perceber-se infinito quando a boa disposição nos permite exercitar a faculdade racional, e experimentar a prostração e a impotência, ao despertar completamente sem forças no outro dia não é algo passível de ser superado, resolvido, alterado. A doença surge para intensificar essa experiência ao máximo: Não se pode saber de antemão a que grau de nulidade moral e de desgosto por si-mesmo a doença é capaz de nos reduzir. Eu sou, disso, a prova viva.[15]
É impossível percorrer suas meditações sem pensar em Pascal. Tampouco o fez o autor. Ao longo de algumas, insurge-se contra os juízos de seu irmão seiscentista de temperamento com relação à causa da miséria humana:
Pascal está seguramente enganado em tudo o que diz sobre a causa da miséria dos homens e da agitação perpétua em que passam toda a sua vida. Preocupado unicamente com seu objeto, que é o de mostrar que homem foi deposto e fora criado para um estado melhor, ele o trata como um sujeito simples e abstrai completamente a influência de seus estados orgânicos e sensitivos sobre o sentimento imediato que ele tem de sua existência, sentimento feliz ou infeliz, triste ou agradável que ele experimenta apesar de todas as distrações, e tanto quando ele não quer pensar em si, quanto no momento em que é reduzido a fazê-lo. Sobre esse ponto, é notável que todos os metafísicos puros, Descartes inclusive, tenham atribuído à alma e a um sentimento intelectual que ela tem de sua perfeição ou de sua imperfeição, tais estados de prazer e de sofrimento nos quais o pensamento não entra à toa, e que são puras afecções da sensibilidade, que não estão sob o poder da alma mais que a vida orgânica, das quais essas afecções são os modos. Ao passo que, do outro lado, os fisiologistas confundiram os sentimentos intelectuais ou morais com as afecções puras da sensibilidade sem pesar os atos da alma ou as operações da vontade que têm relação com esses sentimentos. Há um trabalho inédito a fazer, que consistiria em dispor nitidamente a parte da alma e aquela da organização em cada estado, paixão ou modificação total da vida humana; ali se poderia ver quais são os modos que o homem padece, quer ele o queira e pense nisso, quer ele não o queira ou sequer se aperceba disso; e deduziríamos da teoria fundada sobre uma experiência completamente interior as aplicações mais úteis à moral prática, à ciência da felicidade e da virtude.
Isso valeria mais que todas as declamações de Pascal sobre a miséria e as vãs agitações do homem.[16]  
Para Maine de Biran, meditar sobre a alegria infinita propiciada pelo amor ao conhecimento não é condição necessária e suficiente para acendê-la dentro de nós; assim como interpretar a sensível miséria humana por meio de um esquema teológico não produz a libertação efetiva de um arraigado sentimento de penúria com relação à existência. Não é algo que tenha afirmado como analista catedrático, mas como indivíduo a debater-se com respostas possíveis ao longo de solilóquios que, para nós, tornam-se pretextos para novos diálogos.
Foram muitos os modos de pensar a melancolia, o tédio, a angústia e os meios para extrair-se desses estados de espírito, entre os pensadores modernos. Para alguns, como Leibniz e Spinoza, a felicidade coincidia com a própria compreensão de um todo do qual somos manifestação. Para outros, como Bacon e Descartes, feliz seria a humanidade em seu império sobre a natureza, que cumpria analisar ou interpretar de modo a sujeitá-la à grandiosa e digna vontade humana. Para Pascal, ponto fora da curva, se quisermos associar a modernidade a um louvar persistente da razão, restava a nós uma aposta incerta, da qual um partido levaria necessariamente ao abismo, enquanto o outro, com azar, nos não subtrairia nada; mas, com sorte, nos daria tudo.
Os trabalhos de matiz literário de Isabela Mendes e Revson Costa, longe de obstruir ainda mais a nossa vista constantemente deturpada por esquemas classificatórios incertos, procuram dar vida àqueles pensamentos. Escapando às formas banais encorajadas na rotina universitária, são uma valiosa leitura na medida em que, em vez de enclausurar a filosofia na camisa de força da análise, buscam apenas reviver no espírito horizontes possíveis. Uma agradável celebração do diálogo, da escuta, da sensibilidade e da filosofia – conforme desde o início nos ensinava Platão. 



[1]     As observações integram o verbete Mélancolie (médecine clinique) que escreve Pinel para a Encyclopédie Méthodique (1782-1832) dirigida por Panckoucke, uma versão ampliada e muito modificada da Encyclopédie de Diderot e D’alembert, que teve por intuito substituí-la. O contraste maior entre as obras é a dissociação entre ciências e Filosofia, uma vez que, no alvorecer do século XIX, as primeiras não mais têm a segunda por horizonte comum e esboçam, de modo específico e separado, discursos epistemológicos e metodológicos autônomos. Ver a esse respeito: GROULT, M. Savoir et Matières. Pensée scientifique et théorie de la connaissance de l’Encyclopédie à l’Encyclopédie méthodique. Paris, CNRS Editions, 2011, Partie III, p. 231-350. O excerto do verbete que menciono, em tradução minha, foi extraído de HERSANT, Y. (org.). Melancolies: de l’Antiquité au XXe siècle. Paris: Robert Laffont, 2005, p. 710-711.
[2]     PINEL, P. Mélancolie. In: HERSANT, Y. (org.). Melancolies: de l’Antiquité au XXe siècle. Paris: Robert Laffont, 2005, p. 693.
[3]     PINEL, P. Mélancolie. In: HERSANT, Y. (org.). Melancolies: de l’Antiquité au XXe siècle. Paris: Robert Laffont, 2005, p. 700.
[4]     Ao longo do ensaio XXI do primeiro livro, o qual principia indicando o quão sugestionável é ele próprio, Montaigne evoca inúmeros exemplos, extraídos de escritos da antiguidade, do quanto a mente produz estados físicos dos quais só nos recuperamos mediante estratégias que a desenganem. Vale a pena ler este ensaio graciosamente delirante sobre o poder do delírio em nosso corpo antes de consultar a seção “tratamentos” do arrazoado verbete de Pinel. Cf. MONTAIGNE, M. Os Ensaios – Livro I. Tradução Rosemary Costhek Abílio. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 143-160.  
[5]     PINEL, P. Mélancolie. In: HERSANT, Y. (org.). Melancolies: de l’Antiquité au XXe siècle. Paris: Robert Laffont, 2005, p. 701.
[6]     O juízo é de Yves Hersant e ocorre na apresentação sumária do texto de Pinel em análise. cf. HERSANT, Y. (org.). Melancolies: de l’Antiquité au XXe siècle. Paris: Robert Laffont, 2005, p. 692
[7]     “(…) os tormentos da arte são decerto como as amarras e algemas de Proteu, que revelam os últimos esforços e debates da matéria. Pois os corpos não serão destruídos ou aniquilados. Ao invés disso, eles se converterão em formas várias”. Esta passagem está na obra De augmentis, aqui traduzida a partir da edição vitoriana. Cf. BACON, F. The Works os Francis Bacon. Coll and ed. by James Speeding, R. L. Ellis & D. eath. Fromann – Holzboog, Stuttgart, 1962, (volume IV, p. 257).
[8]     É preciso investigar (ou avaliar investigações já realizadas quanto a) em que medida Francis Bacon teve acesso aos escritos médicos da antiguidade, uma vez que a noção de kairós é permanente nas entrelinhas do método experimental delineado no Novum Organum. Na conclusão da obra Doença do corpo, doença da alma, o autor assim sintetiza o nex entre kairós e prática médica: “O médico deve ser capaz de perceber a ocasião de intervir. Mas é tarefa difícil surpreender o momento em que a natureza se mostra, pois para isso é necessário conhecer o movimento do microcosmo humano, o movimento da vida. O kairós, expressão infinitesimal da eternidade, é este momento passageiro em que a regularidade da phýsis pode ser captada pela inteligência com auxílio dos sentidos. Mas é uma ocasião fugaz, logo secundada pelo fluxo do devir, repleto de sinais contraditórios que confundem a percepção e dificultam o julgamento”. Cf. FRIAS, I. Doença do corpo, doeça da alma: Medicina e Filosofia na Grécia clássica. Rio de Janeiro: PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2004, p. 154. Sobre a arte da medicina ser, ao projeto de Bacon, uma fonte de inspiração, lemos no ensaio Of Innovations: “Surely every medecine is an innovation; and he that will not apply new remedies must expect new evils; for time is the great innovator; and if time of course alter things to the worse, and wisdom and counsel shall not alter them to the better, what shall be the end?” 
[9]     Na obra Parasceve (espécie de prolegômenos a uma História natural), Bacon define os fatos da natureza em três desdobramentos, a saber a natureza em seu curso habitual, a natureza desviada das leis da matéria e a natureza modificada pela mão humana. A história da natureza, portanto, encerra três tipos de seres, os regulares, os monstros e prodígios e as coisas artificiais. Cf. BACON, F. The Works of Francis Bacon. Coll and ed. by James Speeding, R. L. Ellis & D. eath. Fromann – Holzboog, Stuttgart, 1962, (volume IV, p. 254-6).
[10]   PINEL, P. Mélancolie. In: HERSANT, Y. (org.). Melancolies: de l’Antiquité au XXe siècle. Paris: Robert Laffont, 2005, p. 699.
[11]   MAINE DE BIRAN. Un sentiment pénible de l’existence. In: HERSANT, Y. (org.). Melancolies: de l’Antiquité au XXe siècle. Paris: Robert Laffont, 2005, p. 341-2
[12]   MAINE DE BIRAN. Un sentiment pénible de l’existence. In: HERSANT, Y. (org.). Melancolies: de l’Antiquité au XXe siècle. Paris: Robert Laffont, 2005, p. 342
[13]   MAINE DE BIRAN. Un sentiment pénible de l’existence. In: HERSANT, Y. (org.). Melancolies: de l’Antiquité au XXe siècle. Paris: Robert Laffont, 2005, p. 342
[14]   Os comentários de H. Bergson permanecem de grande interesse como introdução à sofisticada metafísica de Maine de Biran. Uma tradução de seu panorama da Filosofia francesa, na qual Maine de Biran tem lugar, foi publicada na Revista Transformação. Ver BERGSON, H. A Filosofia francesa. Tradução Silene Torres Marques. In: Revista Trans/Form/Ação, São Paulo, 29(2): 257-271, 2006
[15]   MAINE DE BIRAN. Un sentiment pénible de l’existence. In: HERSANT, Y. (org.). Melancolies: de l’Antiquité au XXe siècle. Paris: Robert Laffont, 2005, p. 341
[16]   MAINE DE BIRAN. Un sentiment pénible de l’existence. In: HERSANT, Y. (org.). Melancolies: de l’Antiquité au XXe siècle. Paris: Robert Laffont, 2005, p. 344-45.

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