Uma releitura da filosofia de Laurenio Sombra: o conceito de Rede de Sentidos


Marcelo Vinicius Miranda Barros
Graduado em Psicologia pela UEFS e mestrando em Filosofia pela UFBA

RESUMO
Sem a intenção de esgotamento do tema, aqui propomos uma releitura a respeito da filosofia de Laurenio Sombra, especificamente sobre o seu conceito de Rede de Sentidos, que entendemos abranger tanto os aspectos antológicos quanto sociais para compreender o modo de o sujeito agir e significar o mundo.

PALAVRAS-CHAVE: Rede de sentidos, Signos, Linguagem, Ser social, Ontologia.

1.0 INTRODUÇÃO
Laurenio Leite Sombra é um filósofo brasileiro, doutor em Filosofia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), que vem desenvolvendo o conceito “Rede de Sentidos”, no qual busca analisar o sujeito no seu aspecto hermenêutico e político, contudo, para nós, há também na sua filosofia uma ontologia e que serve de base ao social, para compreender o modo de o sujeito agir e significar o mundo, o que amplia a complexidade e a riqueza de seu pensamento.

A partir desse conceito, Laurenio Sombra discute a questão de identidade dos sujeitos, tema este que vem ganhando cada vez mais importância nas últimas décadas, e, assim, colocando Sombra cada vez mais no rol de filósofos atuais como John Holloway, Judith Butler, dentre outros. Afirmamos isso não como comparação entre esses filósofos, já que, para nós, isso não tem sentido nesta atividade, mas para destacar a importância da originalidade do pensamento de Sombra no que diz respeito à identidade do sujeito que, por sua vez, se desdobra na relação sujeito-mundo e suas implicações sociais e políticas.

A filosofia de Laurenio Sombra abarca também questões bem específicas, como a identidade dos sujeitos, discutida no seu trabalho “Identidade dos sujeitos: linguagem, constituição de sentido e valor” (2015); a Política, vide sua análise “Escândalo da Política Brasileira: o Sentido da Desigualdade” (2015); o Direito, que é bem apresentada no seu capítulo “Direito, interpretação e antagonismo: a disputa do sentido” (2018) presente na obra coletânea “O Direito e a Educação do Campo: experiências, aprendizagens, reflexões”, publicada pela Editora UEFS; e a própria Filosofia, em especial a filosofia na América Latina, com seu trabalho “O Ocidente como Problema Filosófico” (2017). Além disso, a sua filosofia vem igualmente confirmando sua importância no âmbito da Educação, como pode ser vista em “Descolonizar a educação: pensando a reprodução e a contrarreprodução”, de Samuel Sepulveda Teixeira Leite; e o próprio texto do filósofo intitulado “Sujeitos que objetivam, objetos que assujeitam: insurgência e formação política”, que será publicado em um livro pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Há outros trabalhos diretamente e indiretamente ligados à filosofia de Sombra, mas resolvemos tecer somente um resumo a respeito deles. No mais, quase todas essas atividades estão disponíveis na internet.

Nesse apanhado geral, apontamos para a diversidade de leituras possível de ser realizada a partir do conceito de Rede de Sentidos desenvolvido por Sombra. Contudo, o nosso objetivo aqui é uma leitura ontológica do conceito em questão.

2.0 REDE DE SENTIDOS
            O filósofo Laurênio Sombra vem desenvolvendo um método de investigação. Ele tem formulado uma teoria com uma perspectiva que considera simultaneamente a hermenêutica e a política, na qual o “nosso modo de agir e significar o mundo é sempre antecedido por uma configuração profunda, não totalmente consciente e explicitável, a que chamei de rede de sentidos” (SOMBRA, 2017, p. 198). De antemão, percebemos a possibilidade de uma leitura ontológica do conceito de Rede de Sentidos, que caracteriza uma espécie de “configuração profunda” do ser humano em estar ligado ao fato histórico e dele fazer parte. Assim, reintroduz-se, a seu modo, a dinâmica no ser humano que não se resume aos aspectos dos fenômenos psíquicos ou meramente psicológicos, e, ao mesmo tempo, situa o sujeito também como ser social e histórico – ou seja: situa-o no mundo ou o coloca em um contexto ou condição –, já que “a rede de sentidos se dá no contexto de uma temporalidade” (SOMBRA, 2015a, p. 101).

Entendemos a existência humana de forma sócio-histórica, porque, ainda, o filósofo afirma que “a rede de sentidos apresenta uma temporalidade, o que pressupõe certa correlação com processos históricos e com expectativas futuras” (SOMBRA, 2015b, p. 64). Grosso modo, a Rede de Sentidos se constitui de maneira intersubjetiva e possui uma natureza social (SOMBRA, 2015b). Veremos mais sobre isso.

            Antes de adentrarmos realmente ao conceito de Rede de Sentidos, precisamos compreender como Sombra concebe a linguagem, já que esta será importante também para fundamentar tal conceito. Assim, ele nos diz que, aqui, a linguagem é “como um sistema articulado de signos capazes de perpetuar no tempo e multiplicar quase indefinidamente as nossas possibilidades de experiência em novos habitat que são construídos e forjados a partir dela” (SOMBRA, 2015a, p. 98). Isto é, certas articulações de signos são continuadas – ou não –, permitindo o sujeito transformar o mundo e ser transformado a cada experiência que vivencia pela / na linguagem.

            Laurenio Leite Sombra (2015a) vai nos dizer ainda como é necessário pensar os signos na articulação da linguagem, considerando a perspectiva de sua filosofia. Para o filósofo, os signos devem estar associados a significantes, “instrumentos”, que a percepção é capaz de apreender, ponderando a sua singularidade em um determinado tempo e associados a outros significados que nos parece durar no tempo, mas que também é passível de ser transformado historicamente. Aqui se percebe o aspecto convencionado socialmente do significado destes signos.

            Entendemos que há uma relação de significante com o significado, e toda essa relação configura o signo. O significado é extremamente volátil, porque ele é uma espécie de “ferramenta” com a qual o sujeito opera os significantes na prática, articulando os signos que se transformam num dado contexto ou em momento histórico. Nessa acepção, a noção de signo deveria ser relativizada, já que uma relação mais ou menos fixa entre significante e significado estaria restrita a um dado contexto, situação ou, para sermos mais direto, a uma determinada Rede de Sentidos.

            Apesar dos significados serem transformados historicamente, não fazemos da história um “espírito que paira no mundo”, uma espécie de “teoria do reflexo”, no qual os significados só são um reflexo da história, ou que a história seria algo metafísico no seu sentido clássico e que, assim, estamos simplesmente assujeitados a ela. Não é isso, porque, como explica Laurenio Sombra, “os signos são elaborados tendo em vista o compartilhamento entre indivíduos, eles são de natureza eminentemente social” (SOMBRA, 2015a, p. 98). Somos nós mesmos, como sujeitos, que organizamos signos, lhe atribuindo valores, isto é, tais signos são organizados em uma hierarquia, onde valorizamos mais uns em relação aos outros, ou criamos uma relação de dependência entre eles etc., de acordo com o contexto em que estamos inseridos, só que esse contexto ainda é modificado na medida em que os signos também os são (SOMBRA, 2015a). Numa palavra, “são os sujeitos que agem e produzem significação a partir de uma rede de sentidos. São eles que as ‘incorporam’ no seu cotidiano, e vivem a partir delas” (SOMBRA, 2015b, p. 65). Há, portanto, uma espécie de dialética.

Essa dialética pode ser entendida como Rede de Sentidos. Isso porque, os signos não são desenvolvidos isoladamente, ao contrário, eles são criados, desenvolvidos, aplicados em uma rede de valorização que lhes são relacionados. Essa rede é o que Laurenio Sombra intitula de rede de sentidos (SOMBRA, 2015a).

Também consideramos a existência de uma dialética na filosofia de Sombra porque
há uma relação de mútua pertinência: de um lado, a rede de sentidos precisa dos signos para se potencializar. É só em função dos signos que ela pode ter seu grau de amplitude, sua temporalidade amplificada. De outro, o próprio significado de cada um dos signos só pode ser compreendido no contexto dessa rede (SOMBRA, 2015a, p. 101).

Se caso fôssemos questionados a respeito de que essa relação de mútua pertinência, apontada pelo filósofo, não se caracteriza uma dialética aqui, é preciso lembrar que na história da filosofia o termo “dialética” possui vários sentidos. Vide a diferença entre a dialética socrática e a dialética hegeliana, por exemplo. No mais, de certa forma, compactuamos a respeito disso com Deleuze e Guattari ao afirmarem que também “a filosofia é a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 10), e com o filósofo Cossutta ao sustentar que “as descrições, definições, exemplos, conceitualizações contribuem para a elaboração global do texto filosófico” (COSSUTTA, 1994, p. 99). Assim, conceituar uma dialética no pensamento de Sombra não é só possível, como nos permite facilitar o entendimento a respeito da dita relação de mútua pertinência entre signos e significados que chega até o sujeito histórico e vice-versa. Com outras palavras, a relação de mútua pertinência somente “produz” sujeito na medida em que foi produzida por ele, pois se é compreendido aqui que o humano está na linguagem, também é compreendido que é ele que faz a linguagem.

O conceito Rede de Sentidos é “dividido” em dois termos: rede e sentidos. No caso,
usamos o termo sentido, aqui, para abordar certa compreensão abrangente, não totalmente explicitável e com algum grau de coerência, basilar para uma série de operações parciais, como a ação dos sujeitos, mas também a significação de uma palavra ou de um enunciado (SOMBRA, 2015a, p. 99).

            Entendemos também que quando dizemos que a rede de sentidos é ontológica, estamos a dizer, para sermos mais específicos, que é o termo “sentido” que é ontológico. É o “sentido” da “Rede de sentidos” que é condição para o agir humano ou que permite um grau de coerência não totalmente explicitável para a ação e a significação por parte dos sujeitos. A respeito do termo “rede”, este expressa toda essa complexidade ontológica.

           Portanto, a rede de sentidos, como condição ontológica para o sujeito no mundo, possui coerência pela própria estrutura valorativa ou sentidos. São tais valores, ou sentidos, que permitem uma coesão à rede de sentidos que, por sua vez, esta é o contexto ou a condição para uma transformação ou extinção de um dado signo, permitindo os acontecimentos históricos, por isso considerarmos aqui uma espécie de dialética, aliás, é esse próprio contexto como condição de transformação de signos em si e vice-versa que é a história.

            Já o termo “rede é utilizado para denotar a complexidade da produção de sentido: ela é articulada a partir de diversos elementos conjugados e encarnados na relação complexa do animal linguístico com os signos” (SOMBRA, 2015a, p. 100). O animal linguístico é o ser que é voltado para linguagem, que adere a uma linguagem. O ser humano nasce no mundo e vai adquirindo seu repertório linguístico no decorrer de sua existência.

Dissemos que a linguagem é um sistema articulado de signos, mas a rede é de tal complexidade que não pode ser considerada totalmente coerente, pelo menos não é para a lógica racional humana ou dita “pura” razão, até porque se a linguagem é constituída socialmente, ela até tenta dar conta do universal, mas lhe escapa o singular de uma pessoa, “podendo caber nela diversas relações equívocas sob o ponto de vista da linguagem” (SOMBRA, 2015a, p. 100). Contudo, algo de coerente precisa estar presente na rede de sentidos, daí considerarmos o universal e o singular, ou o objetivo e o subjetivo, do sujeito numa dialética.

O universal é que lhe dá uma coerência ou uma norma, e o singular é que foge da norma geral e que permite novos signos, ou seja, que permite a historia acontecer, mas não se trata de um acontecimento como algo meramente mecânico. Não se trata aqui de um determinismo, todavia de uma condição. Por isso, Sombra afirmará que “uma rede de sentidos, para ser constituída como tal, deve ter natureza intersubjetiva e social, mas deve, necessariamente, ser absorvida subjetivamente por cada indivíduo” (SOMBRA, 2015a, p. 100).

3.0 A REDE DE SENTIDOS E OS SIGNOS
            Não há rede de sentidos sem linguagem, como não há linguagem sem rede de sentidos, pois, como visto, especificamente, há uma relação de mútua pertinência entre a rede de sentidos e os signos em um determinado ambiente. Assim, “é só em função da ambiência de uma rede de sentidos que o signo pode ser completamente valorado e, em última instância, ganhar significação prática” (SOMBRA, 2015a, p. 101). A ambiência é de extrema importância, já que a rede de sentidos se dá no contexto de uma temporalidade. É nessa temporalidade que o signo terá uma função prática e, ao mesmo tempo, é essa prática valorada que transformará a tal temporalidade. Isto é, não podemos pensar o sujeito encarnado (de carne e osso)[1] e concreto fora da relação com os signos e estes, mesmo que existam antes daquele – como “certa ambiência prévia” –, não têm prática fora dessa relação, portanto, nessa relação “os signos também podem ser transformados e ganham novos significados, podendo mesmo perder totalmente sua função em determinado contexto histórico” (SOMBRA, 2015a, p. 101). Isso, grosso modo, é uma das perspectivas que entendemos como é a rede de sentidos, além de caracterizá-la como uma dialética.

4.0 REDE DE SENTIDOS COMO ONTOLOGIA E CONCRETUDE
Por ser ainda ontológica, a rede de sentidos não se resume aos aspectos psicológicos humanos ou meramente cognitivos, ou seja, os sujeitos “vivem a rede de sentidos, não necessariamente de modo cognitivo” (SOMBRA, 2015b, p. 65), pois a rede é algo como pano de fundo da existência humana ou configuração profunda, é o que permite o sujeito ser um humano diante de sua linguagem peculiar. Mas a linguagem que possui certo caráter universal, que está no campo do social, não abarca a singularidade do sujeito por completo, ou seja, os discursos não dão conta de um sujeito ontológico entendido aqui como redes de sentidos. O sujeito, na verdade, é a própria rede de sentidos, porque não podemos pensar um sujeito, como ser humano, fora dessa rede, na qual está em jogo toda a complexidade de sentidos, signos, significados, linguagem, prática, cultura, história... Não há como pensar o humano fora dessa complexidade, porque ele é a própria complexidade como rede de sentidos, ou melhor, “todo sujeito se materializa como um signo” (SOMBRA, 2015a, p. 102), toda rede de sentidos se compreende como rede que produz sentidos em uma articulação de signos (SOMBRA, 2015a). Logo, só podemos dizer sobre o sujeito como rede de sentidos.

Contudo, isso não significa que tratamos de um sujeito puramente abstrato, por ele se materializar como signo, pelo contrário, se a rede de sentidos é uma ontologia, então, o sujeito está-no-mundo no seu mais absoluto. Ele é concreto. Se os signos são de natureza eminentemente social, eles também são objetivos, causam efeitos reais no mundo. Há uma objetividade social e o sujeito se comporta de acordo com esta.

Se a rede de sentidos, com seus signos todos, existe na prática, estamos, então, discorrendo sobre um sujeito da ação e não somente da percepção, tecemos sobre o sujeito da prática e não somente da consciência[2]. Laurênio Sombra vai afirmar que
se os sujeitos são signo, de algum modo, não se pode esquecer que representam, a princípio, sujeitos reais, seres humanos “de carne e osso”, sujeitos encarnados: são dotados de uma corporeidade, afetados física e biologicamente em sua relação com o mundo, sentem dor e prazer, sentem emoções primárias, lidam com um ambiente etc. (SOMBRA, 2015a, p. 103).

Isto é, são das relações que o sujeito estabelece com o ambiente e com os objetos do entorno que se constrói a “realidade objetiva”. Essa realidade não pode ser ignorada já que afeta o outro e o mundo de forma concreta. “Se os sujeitos são nomeados e qualificados como signo, o nome próprio de um sujeito representa, justamente, o significante por excelência que permite que ele seja identificado como tal” (SOMBRA, 2015a, p. 103), ou seja, como um exemplo, o tal nome próprio é que dá existência social ao sujeito na acepção de que seu nome lhe permite receber herança, obter um emprego, ter direitos civis, além daquilo que representa o sujeito para ele mesmo, diz algo sobre sua filiação e sua história. Nisso está implícito a rede de sentidos, já que o sujeito obtém sua “identidade” “a partir, a princípio, da compreensão de sua significação no contexto da rede de sentido ao qual ele pertence” (SOMBRA, 2015a, pp. 103-104).

Por isso, entendemos que a rede de sentidos é uma base existencial que permite uma série de operações por parte do sujeito, “como a ação cotidiana, a atribuição de significado de uma palavra ou de um enunciado, a compreensão de práticas sociais em geral” (SOMBRA, 2015b, p. 64).

Daí também que o sujeito é essa complexidade ontológica e social que jamais é totalizada ou compreendida por completo, com outras palavras,
da compreensão da rede de sentidos decorre uma consequência importante: se ela tem natureza essencialmente prática, isso nos leva a concluir que o campo de enunciados discursivos que podemos construir nunca é capaz de abarcá-la, em sua totalidade. Há sempre uma “diferença ontológica” essencial que impossibilita essa pretensão de totalidade (SOMBRA, 2015a, p. 101).
           
     Se considerarmos a história como historicidade, ou seja, como história aberta, então, os enunciados não poderão dar conta por completo da rede de sentidos, não há como apreender uma essência na sua totalidade, entendendo que os signos estão em transformação ou em extinção, entendendo que há a prática numa temporalidade. Se há novos mundos de possibilidades se abrindo, possibilidades de experiência, uma riqueza de sentidos sendo construída, portanto,
os enunciados, e o campo discursivo em geral (inclusive, a produção imagética e sonora, por exemplo) têm uma condição sempre limitada, eles não têm capacidade de abarcar completamente a riqueza dos sentidos, muito embora é fundamental para a constituição da linguagem humana que sempre exerçamos este diálogo (SOMBRA, 2015a, p. 102).

Essa incapacidade de abarcar por completo a riqueza dos sentidos não se prende somente a ideia de que a rede de sentidos permite compreender uma historização, como também o sujeito não pode ser abarcado por ser a própria rede de sentidos, não permitindo enunciados adequados a respeito do próprio sujeito, do outro e do mundo. Com outras palavras, apesar de estarmos inseridos na rede de sentidos, sendo possível, de certa forma, nos situarmos de modo interdependente, “não permite que definamos quem somos, mas permite que saibamos, em alguma medida, que há ‘alguém’ que não se dá como mera constituição nominal de sujeitos” (SOMBRA, 2015a, p. 104). Devido a isso também, dentre outras análises ditas aqui, que consideramos a rede de sentidos como ontológica e concreta, já que a prática ocorre em determinado contexto tendo ainda “alguém” que não se dá como mera constituição nominal de sujeitos. Podemos ainda dizer que a rede de sentidos é uma ontologia materialista na acepção de que não é pura abstração, no sentido de que se baseia na ação, na experiência, fora do idealismo de significados existentes antes da prática do sujeito.

Entendemos que a rede de sentidos é uma ontologia, porque ela é condição ou possibilidade de direção das ações do sujeito, o que permite ainda uma coerência existencial de tal sujeito, mas, de fato, “não é uma coerência de natureza lógica” (SOMBRA, 2015b, p. 64). Não estamos no âmbito do puro psicologismo, pois os sujeitos “vivem a rede de sentidos, não necessariamente de modo cognitivo” (SOMBRA, 2015b, p. 65). Mas isso só não nos basta, portanto, compreendemos a rede de sentidos como ontológica porque “podemos compreender uma rede de sentidos como certa constituição abrangente do sujeito” (SOMBRA, 2015b, pp. 63-64).

5.0 A REDE DE SENTIDOS, O CORPO HUMANO E AS SUAS IMPLICAÇÕES
O próprio filósofo Laurênio Sombra afirma que “os sujeitos são ‘sujeitos encarnados’ [...] têm uma corporeidade” (SOMBRA, 2015b, p. 65). Esse mesmo filósofo nos assegura também que “temos, por fim, um corpo, e nos movemos a partir dele. Em hipótese alguma é trivial a importância da nossa condição” (SOMBRA, 2015a, p. 97).

Nesse aspecto, há um corpo que nos coloca em condição de animal e há um corpo que é essencial para se discorrer a respeito da rede de sentidos.

Como condição animal, a rede de sentidos está implicada com as emoções mais primárias do sujeito, com aquilo que ainda não foi nomeado por ele. Isso nos levará ao entendimento de uma ontologia da experiência humana baseada na significação de seu mundo por meio de uma rede de sentidos. O filósofo já nos disse que somos animais linguísticos, ou melhor, primata linguístico. Contudo, sabemos que Sombra não nos coloca em pensamento naturalista. Não estamos sendo resumidos a uma espécie de pura biologia e/ou zoologia. Até porque, como entendido, os signos são essenciais para se discorrer a respeito da rede de sentidos, ou seja, indo além dos instintos.

Já o corpo como condição para rede de sentidos nos aponta para aquilo que ainda não está nomeado, “um conjunto de emoções primárias” e considerando ainda que “nos estabelecemos em um habitat, sentimos dor e prazer, formamos grupos, estabelecemos relações de parceria, dominação e submissão com outros animais da nossa espécie e de fora dela etc.” (SOMBRA, 2015a, p. 97).

Entendemos que o filósofo afirma ainda que nós sentimentos dor e prazer, por exemplo. Esses sentimentos são também uma condição para a rede de sentidos, já que esta é uma ontologia. Logo, ontologicamente, sofrer e ser são para o sujeito a mesma coisa, seu sofrimento é puro teor afetivo na / pela rede de sentidos. Ele sofre, porque estruturalmente ou existencialmente a dor é entendida ou valorada em sua rede como sofrimento. Não que o sujeito não sinta dor, mas dor e ser-no-mundo são a mesma coisa. O sujeito poderá lhe conferir valor, mas só confere valor no que tange a dor se inserido em uma rede de sentidos. Fora dessa rede, não há nomeação.

Daí que não há distância alguma entre o sujeito e a sua dor, ele é a dor; tratamos de sujeitos encarnados. A rede de sentidos tem corporeidade, pois ela não parte do nada, ex nihilo. Na filosofia de Laurenio Sombra encontramos sempre um sujeito atuente no mundo, afastando tal rede de uma mera idealização. Por isso, também, que o filósofo afirma que a rede de sentidos só existe enquanto prática, porque ela atravessa o sujeito, “corta” a sua carne. Considerando esse corpo, o sujeito é corpo-dor, corpo-prazer.

Entramos novamente na dialética que está presente, por várias perspectivas, na filosofia de Sombra: a rede de sentidos que se mantém pela prática – e, por isso, precisa do corpo que a pratique. Entendendo que o corpo aqui não só é braço e perna, como ainda as mais “ínfimas” relações neuronais num dado contexto –, não se sustenta por si própria: precisa do corpo para ser rede de sentidos, e o corpo também não se sustenta por si próprio, porque para ser corpo humano precisa da rede de sentidos. Caso contrário, se essa dialética não for considerada, não só a rede de sentidos se desfaz por falta de uma prática, como o corpo não passaria de uma mera carne ou objeto.

O que entendemos é que, na filosofia de Sombra, corpo não se resume à medicina, à anatomia ou à fisiologia. A fisiologia é uma análise a partir dos “cadáveres”, porque se analisa a carne e não a vida em sua totalidade. Um pedaço de carne não produz sentido. Assim como um computador também não produz sentido. O sentido só é possível na rede de sentidos.

Quando Sombra nos diz sobre possibilidades de experiência (SOMBRA, 2015a), nos afasta desse corpo “morto” da fisiologia e da anatomia. Sombra nos afasta de certos filósofos e psicólogos que somente tendem a descrever equivocadamente a experiência do corpo do outro como a experiência de uma coisa física, anatômica ou fisiológica, vide as ciências que resumem o ser humano a meros efeitos neuroquímicos ou comportamentais. Assim, aquilo que o fisiologista faz existir aqui é a coisa “corpo” e não o corpo como possibilidade que o sujeito é como ação e prática em um contexto existencial entendido como rede de sentidos.

Com efeito, ao se voltar ao corpo – seja ele mensurado ou não, seja ele condicionado ou não –, se não se considera a rede de sentidos, então, só é um corpo como objeto. Discorremos, portanto, sobre um corpo não como experimento ou experimental, mas como experiência, como totalidade humana que existe na / pela rede de sentidos.

Ainda precisamos compreender a afirmação colocada aqui do filósofo Laurenio Sombra (2015a), quando nos diz que temos, por fim, um corpo, e nos movemos a partir dele. Isso é de suma importância, já que o sujeito é “encarnado”. Podemos compreender que o corpo, para esse filósofo, permite o sujeito ter uma perspectiva e se comprometer no mundo. Caso contrário, é possível um sujeito sem perspectiva? Por exemplo, não seria sequer concebível um sujeito que pudesse sobrevoar o mundo, permitindo o corpo fornecer ao mesmo tempo à direita e à esquerda de uma xícara, à frente e atrás dela. Isso, para o ser humano, é incognoscível. Então, o corpo situa-se em um contexto e em uma perspectiva de mundo, que configura a rede de sentidos.

Também outra implicação que essa dialética presente entre corpo e rede de sentidos pode nos proporcionar, é o fato de que “a história do corpo humano é a história da civilização. Cada sociedade, cada cultura age sobre o corpo, determinando-o [...] Cria os seus próprios padrões” (BARBOSA; MATOS; COSTA, 2011, p. 24). E criar padrões é criar sentidos? É possível criar padrão fora da rede de sentidos? Sombra afirma que “de um modo geral, a rede de sentidos é constituída de modo intersubjetivo e tem natureza eminentemente social” (SOMBRA, 2015b, p. 64). Criam-se padrões fora do social? Mesmo o sujeito mais isolado, não cria seus padrões fora da rede de sentidos.

6.0 O SUJEITO COMO SER SOCIAL
            Considerando uma natureza eminentemente social na intersubjetividade que constitui a rede de sentidos, entendemos também que é possível encontrar um sujeito social na filosofia de Sombra. Há diversos signos articulados na rede de sentidos que nomeiam sujeitos individuais e coletividades, sempre em uma intersubjetividade, uma correlação com outros sujeitos e com os signos que os qualificam e todo esse processo intersubjetivo ocorre numa demanda de valoração contextualizada, ocorre em uma determinada temporalidade. Lembremos ainda que a tal valoração ocorre em uma hierarquia de signos na rede de sentidos e os sujeitos agem em uma dialética com tais signos “de um modo tal que formam, progressivamente, um sistema de classificação dos sujeitos que os posiciona, com o qual eles identificam/reconhecem os outros sujeitos e se identificam/se reconhecem” (SOMBRA, 2015b, p. 65).

            Contudo, não se trata aqui de uma permanente harmonia social de identificações. Sombra nos apresenta também um conceito fundamental, o de antagonismo. O filósofo nos diz sobre tal conceito:
ele se dá sempre que sujeitos em relação mútua não compartilham a mesma rede de sentidos em aspectos essenciais, seja no modo com o qual eles valorizam/hierarquizam os sujeitos, seja no modo, talvez mais sutil, como eles valorizam/hierarquizam outros signos da rede (SOMBRA, 2015b, p. 65).

            Ou seja, os sujeitos podem obter valores diferentes, o que tende a gerar um atrito ou conflito social. Sombra afirma ainda que divergências mais superficiais são passivas de ocorrer, contudo, o conceito de antagonismo é mais grave, na acepção de que a diferença se manifesta entre as redes de sentidos, quando há “certa inaceitação mútua com relação à rede de sentido do outro” (SOMBRA, 2015b, p. 65). Então o antagonismo é uma inaceitação de um mundo, da forma de existir do outro, como o outro estar-no-mundo. Esse “ser-no-mundo” de um ou alguns é visto como inadequado perante o outro ou os outros. Daí a gravidade do conceito de antagonismo que toca na rede de sentidos, sendo esta universal-singular como base do sujeito, como sua base existencial, portanto, é a sua “estrutura” existencial que está sendo negada pelo outro. Em última instância, trata-se de “uma discordância da forma de vida entre sujeitos, mas apenas nos casos em que a convivência entre eles suscita algum nível de incompatibilidade prática entre as formas de vida de cada um” (SOMBRA, 2015b, p. 66).

            Por esse antagonismo tocar na rede de sentidos, a qual é considerada, por nós, de forma ontológica, intersubjetiva e social, como visto aqui, então, os sujeitos se “veem ameaçados, em maior ou menor medida, por outras rede de sentidos” (SOMBRA, 2915b, p. 66). Com efeito, “de um modo geral, as relações de antagonismo podem ensejar negociação ou enfrentamento de sentido, mas também processos de dominação e submissão” (SOMBRA, 2915b, p. 66).

Os aspectos sociais já estavam presentes, mas é agora também que começam a se apresentar com mais evidência na filosofia de Laurenio Sombra, especialmente no que tangem aos processos de dominação e submissão, por exemplo. Nas palavras do filósofo: “em última instância, que proporciona a possibilidade de transformação social, numa tentativa pelos sujeitos de superação ou conciliação de redes de sentidos antagônicas” (SOMBRA, 2015b, p. 66).

7.0 REDE DE SENTIDOS: UMA AÇÃO ALÉM DA PERCEPÇÃO COMO CARÁTER PRÁTICO
A rede de sentidos existe na prática, estamos, então, discorrendo sobre um sujeito da ação e não somente da percepção. Já que entendemos isso no decorrer de toda esta atividade, compreendemos ainda que o mundo se organiza perante o sujeito, não simplesmente perante a consciência sem “corpo” ou a percepção no sentido de mera contemplação. Além do ontológico e social já exposto aqui, percebemos também um caráter prático que tem como base a filosofia de Sombra, no qual o mundo percebido perante o sujeito tem a sua configuração como advento da / pela prática, e não simplesmente da percepção que o sujeito tem dele. A rede de sentido, que permite um mundo, só se sustenta pela prática, pelo ritual. Daí que a organização do mundo advém da ação concreta do sujeito.

O que entendemos é que para o filósofo não é de modo algum suficiente o sujeito perceber o mundo, para se tornar possível a organização do mundo, a não ser que a percepção esteja intricada com a prática na qual esta sustenta aquela dialeticamente. Se ficarmos satisfeitos com a ideia de que ao perceber o mundo, viabiliza a sua organização, estamos afirmando que já há o sujeito e o mundo organizado. Contudo, não é bem assim, a organização que tecemos aqui implica linguagem e seus signos que definem uma rede de sentidos. Portanto, homens pré-históricos ou bebês não podem se deparar com tal mundo organizado, já que estão numa fase de pré-linguagem. Os signos não nasceram com o surgimento do humano, como ainda não nasceram com a criança. Eles são criados e assimilados no decorrer de sua existência, para dar conta daquilo que ainda não foi nomeado. No caso da criança, são aos poucos que ela vai entrando na rede de sentidos. Logo, é importante entender que sem o sujeito e sua prática, esse mundo não estaria organizado para ser percebido. Esse entendimento na filosofia de Laurenio Sombra nos parece essencial para superar a ideia metafísica da primazia da percepção que acredita que o mundo se organiza na ou pela consciência perceptiva.[3]

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tentamos evidenciar uma ontologia na filosofia de Sombra. Mostrando a abrangência do seu pensamento. Nessa acepção, entendemos que a Rede de Sentidos não se sintetiza aos aspectos psicológicos humanos ou meramente cognitivos. A Rede se caracteriza como pano de fundo da existência humana ou configuração profunda do sujeito.

O sujeito, na verdade, é a própria Rede de Sentidos, pois não podemos pensá-lo como ser humano fora dessa Rede, já que para ser como tal, são necessários a linguagem e os signos que se desdobram na história humana e vice-versa. Com efeito, um sujeito ontológico revela um sujeito social também devido, além dos signos e linguagem, a intersubjetividade em um processo de historização – esta não se resumindo a mero conjunto de subjetividades – fortemente presente na filosofia de Sombra.

REFERÊNCIAS

BARBOSA, M. R; MATOS, P. M; COSTA, M. E. Um olhar sobre o corpo: o corpo ontem e hoje. Psicologia & Sociedade, 23 (1), 24-34, 2011, p. 24.

COSSUTTA, F. Elementos para a leitura dos textos filosóficos. São Paulo: Martins Fontes, 1994.

DELEUZE, G; GUATTARI, F. O que é a filosofia?. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.

SOMBRA, L, L. O Ocidente como Problema Filosófico. Revista Ideação, n. 35, jan./jun. 2017.

_____ . Identidade dos sujeitos: linguagem, constituição de sentido e valor. Revista Sísifo, n. 1, Mai./Set. 2015a.

_____ . Escândalo da Política Brasileira: O Sentido da Desigualdade. Revista Ideação, n. 32, jul./dez. 2015b.



[1] O próprio filósofo Laurenio Sombra afirma que “os sujeitos são ‘sujeitos encarnados’ [...] têm uma corporeidade” (SOMBRA, 2015b, p. 65),ou seja, “somos ‘animais linguísticos’” (SOMBRA, 2015ª, p. 97).
[2] Retomaremos a ideia de percepção no capítulo “Rede de sentidos: uma ação além da percepção como caráter prático”.
[3] Parece-nos que neste ponto chegamos a um ápice da filosofia de Laurenio Sombra, na qual pode questionar a fenomenologia de Edmund Hursserl que considera a primazia da consciência perceptiva.


FEIRA DE SANTANA-BA | nº 8 | vol. 1 | Ano 2018


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