Um esboço crítico introdutório das historiografias filosóficas brasileiras: direcionamentos para a necessidade e elaboração de um método historiográfico insurgente


Igor Oliveira França 
Graduação em filosofia pela Universidade de Brasília e mestrando pelo departamento de Estudos Latino Americanos da UnB


RESUMO
O artigo levanta a questão da filosofia desde o Brasil tomando Julio Cabrera como paradigma crítico inicial, pretende ir além deste paradigma ao criticar não apenas os filósofos, mas algumas das historiografias feitas até hoje e pretende, através deste exercício crítico, esboçar algumas direções a que uma historiografia libertadora deveria apontar, sugerindo como motor da filosofia latino-americana o que o autor pretende tratar como “a insurgência do conceito”. 

Palavras-chave: Filosofia brasileira, Historiografias, Julio Cabrera.

Introdução

Pensamos em nós mesmos como viventes dos modos mais comuns e dos dias mais usuais: da nossa vida cotidiana emana certa serenidade inconteste e por tantas vezes desejamos dela evadir-nos para só então retornar e descansar, ainda que para novos hábitos rotineiros. Até o mais aventureiro acostuma-se a aventura e colhe deste cotidiano a mesma serenidade da morna e repetitiva certeza que goza a mais tediosa das existências. Isso até que um convidado ou inesperada visita adentre nossa casa por um motivo qualquer e conosco conviva, e por quantas vezes não nos vimos surpreendidos com a estranheza de nossas, agora não mais solitárias, mecânicas ações mais banais? Descobre-se tácita e rapidamente que a companhia agradável é aquela que torna nossa rotina ainda mais prazerosa com um fresco verniz de vívido interesse e gozo recíproco e que a desagradável nos mostra algo de surpreendente: nossos hábitos parecem-nos antinaturais e nos estranhamos com eles. Não sabemos se nossa vida é absurda ou se esconde algo profundamente obscuro o qual não conseguimos nos desvencilhar, tampouco identificar, mas sabemos, desde este momento, que a primeira conduz a um dia repleto de lembranças claras e risonhas, mas que a segunda, a incômoda visita, é a que nos conduz, de fato, à verdadeira filosofia. Que o leitor seja, então, esta companhia perturbadora, posto que por tanto tempo ocupei-me sozinho na casa de minhas próprias especulações que estou já pronto para alguma conversa, mas, certamente, muito bem acomodado a esta já invisível rotina e por isto – quem sabe– um pouco cego a ela. Resta a mim a salvação de uma visita incômoda para que possa estranhar meus hábitos e dar prosseguimento às minhas ideias.

            Quando perguntado acerca do que é a filosofia brasileira, ou no que ela consiste, por muitas vezes permaneço sem palavras. Há um enorme abismo que não se permite transpor em uma palavra, uma frase ou rápida explanação. O que permaneceu calado por muito tempo vem à tona através do grito. Como que por tempestuosa ira ou estranho ímpeto me invade a vontade de simplesmente dizer: “Filosofia do Brasil? Melhor ainda seria dizermos da América Latina, e não ‘da’: desde. E ela é isto: “e me toma a mente Colombo ou Vespúcio vislumbrando ao longe o continente depois de longuíssima viagem, num navio sujo e malcheiroso, após borrascas e navios destruídos ou simplesmente perdidos da frota, companheiros de viagem mortos ou que desistiram e retornaram, com poucos mantimentos, os homens que sobreviveram e que haviam quase perdido as esperanças aportando na praia limpa e ensolarada, sendo recebidos por belos índios que se deformam com adornos, que não sabem segurar a espada e que se cortam no fio, penso nas constelações felizes e nos bons ares que curavam, segundo relatos, os homens de suas doenças. Me invadem visões edênicas. Penso no espanto causado pelo Outro: o que assombra nele, para os “descobridores”, era o fato de conter algo que jamais havia sido visto e que não poderia ser simplesmente compreendido por todo pensamento disponível;algo que assombrava devido à sua especificidade... Assombra-me a guerra, a escravidão, a mentira por ganhos materiais, escambo, cobiça, ressentimento... Penso nos padres pregando e evangelizando os “gentios”, Valladolid: Las Casas e Sepúlveda, modernidade e secularização da vida, Civilização e Barbárie, encobrimento, Antônio Vieira: “Para um homem se ver a si mesmo, são necessárias três coisas: olhos, espelho e luz. Se tem espelho e é cego, não se pode ver por falta de olhos; se tem espelho e olhos, e é de noite, não se pode ver por falta de luz. Logo, há mister luz, há mister espelho e há mister olhos. (...) O pregador concorre com o espelho, que é a doutrina; Deus concorre com a luz, que é a graça; o homem concorre com os olhos, que é o conhecimento. [1] Falta olhos para que vejamos nossos filósofos.... Cronistas do Espanto: povos, culturas completamente novas para eles, isoladas dos outros continentes não por séculos nem simplesmente milênios: mas desde sempre. Me surpreendo nessa tempestade de ideias, mas o visitante é incapaz de ler mentes e permanece observando-me com estúpida feição interrogante.

            Tento recuperar minha doçura e conduzir o leitor de forma mais suave por meu percurso filosófico, me esforço por elaborar da forma mais compreensível e plausível possível: a Filosofia do Brasil – quebro o silêncio causado por meu devaneio – talvez seja melhor compreendida se pensarmos metafilosoficamente sobre o tema. Talvez seja necessário perscrutarmos o que desejamos abordar com esta pergunta ao invés de respondê-la abruptamente e completar-uma-tarefa, sem saber ao certo qual tarefa e como nos iniciaremos a executá-la. Ao que certamente sou recebido já com alguma impaciência do leitor, que gostaria de uma formulação mais objetiva. A pergunta – prossigo – pressupõe que já saibamos o que estamos tratando, posto que “Todo perguntar é um buscar. Toda busca tem sua direção prévia a partir do buscado. Perguntar é buscar conhecer o ente em seu ser-que e em seu ser-assim. O buscar que conhece pode se tornar ‘investigar’ como determinação que põe em liberdade aquilo por que se faz a pergunta. O perguntar como perguntar por... tem seu aquilo de que se pergunta. Na investigação, isto é, na pergunta especificamente teórica, aquilo a que se pergunta deve ser determinado e conceituado. Em aquilo de que se pergunta reside, pois, como aquilo para que propriamente se tende, aquilo de que se pergunta, no qual o perguntar atinge sua meta. Enquanto comportamento de um ente, do perguntante, o perguntar tem um caráter próprio do ser. Um perguntar pode se efetuar ‘só por perguntar’ ou como questionário explícito. Peculiar a este último é que o perguntar se torne transparente para si mesmo, depois que todos os já referidos caracteres da pergunta se tenham tornado transparentes eles mesmos. ”[2] É necessária uma abordagem preliminar, para que não sejamos enganados por uma forma superficial de perguntar ou de colocar a pergunta e tenhamos, como penalidade à nossa preguiça e mediocridade, uma resposta que parece resolver a questão, mas que nos mergulha numa ainda mais profunda incompreensão, porque é travestida de solução. É necessário elevar o nível da pergunta.

            O que desejamos saber quando fazemos a pergunta: o que é a filosofia brasileira? Quais são nossas expectativas acerca da resposta desta pergunta? O que buscamos com ela? Certamente, a busca que implica uma pergunta é norteada por aquilo que já sabemos acerca do assunto, ou melhor, daquilo que pensamos saber acerca do assunto, de nossas expectativas acerca dele e da forma como a pergunta já se estrutura preliminarmente. O hegemônico, isto é, a filosofia europeia, é frequentemente a medida pela qual comparamos todas as filosofias, e de fato, é constitutiva do filosofar brasileiro e latino americano: não apenas naquele sentido em que seu conteúdo é importante, de alguma forma, (e isto será discutido logo adiante) para a filosofia brasileira, mas também e mais importante, porque a filosofia europeia e principalmente, a relação que nós, dominados, estabelecemos com ela, acaba por configurar uma relação de encobrimento com a filosofia brasileira.

            Referindo-me a esta relação de encobrimento, não desejo dizer que a filosofia europeia simplesmente negue a existência da filosofia desde o Brasil (isto é feito de forma mais eficiente pela maioria dos profissionais brasileiros de filosofia), mas que algumas de suas definições mais basilares, se absolutizadas, se trazidas para dentro do pensamento do colonizado de forma irrefletida[3] encobrem a filosofia brasileira precisamente a partir daquele aspecto que eu já aludira anteriormente, isto é: acerca do quanto aquilo que já conhecemos influencia naquilo que almejamos conhecer.

Considerações Cabrerianas
            Neste sentido, gostaria de esclarecer a questão expondo uma forma em que ela comumente se estrutura de maneira irrefletida, confundindo termos que são distintos. A título de uma aproximação propedêutica com o tema, gostaria de simplesmente expor inicialmente a diferenciação cabreriana de filosofia “no”, “do” e “desde” o Brasil (operada em seu livro Diário de um Filósofo no Brasil) bem como explanar a questão da visualização dos filósofos: em pensar por que não os vemos, em um sentido preliminar. Apenas a partir daí penso que estaremos prontos para a introdução da problemática da História da Filosofia Latino Americana (a brasileira aí inclusa), no sentido exato em que desejo introduzir esta questão que tenho dedicado muitas de minhas reflexões. Penso ser necessário, após passeio preliminar pelas considerações cabrerianas, tocar no tema da História da Filosofia Latino Americana devido ao fato de que não desejamos aqui falar de um determinado filósofo, mas versar acerca de uma tradição que é mais abrangente que um personagem e certamente mais complexa que apenas a filosofia brasileira.

Por filosofia no Brasil, seguindo a diferenciação crítico-terminológica deixada por Julio Cabrera, compreende-se aquilo que é desenvolvido cartesiana e geograficamente em espaço e território brasileiros, isto é, que se dá no Brasil mas que poderia desenvolver-se da mesma forma em qualquer lugar. A aludida expressão refere-se simplesmente a quaisquer atividades filosóficas desenvolvidas em território brasileiro, e, deste modo, poderíamos resolver prematuramente o problema posto que sim, a partir desta definição é evidente que se faz filosofia no Brasil (na medida em que algum filósofo visitou o Brasil, ou que se fala e estuda algum filósofo estrangeiro estando espaço-geograficamente situado no Brasil). Eu gostaria de me afastar desta forma de abordar a pergunta posto que não é isto que temos em mente quando pensamos acerca desta matéria.

            Da mesma forma, Filosofia do Brasil poderia aludir a alguma filosofia nacional ou a um aspecto nacionalista acerca de uma determinada filosofia e, desta forma, resolvemos o problema de maneira apressada. Sabemos que diversas empreitadas da cultura abrigam forte ímpeto em representar realidades nacionais: o bildungsroman, por exemplo, é perpassado e por vezes até se confunde com o projeto de realizar uma literatura genuinamente alemã, o regionalismo brasileiro que data desde início do século XX (composto por vários grandes nomes da literatura nacional, dentre eles podemos citar: Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Guimarães Rosa, Euclides da Cunha, Cora Coralina, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Érico Veríssimo, Ariano Suassuna, entre tantos outros) é transpassado por questões similares, embora em um viés político, social e crítico diferenciados. Na filosofia, o romantismo alemão, apesar de não ser pensado para consagrar uma visão nacionalista ou eurocêntrica, acabou por solidificar o eurocentrismo e perspectivas regionais que se universalizaram, ou melhor: se generalizaram e se impuseram politicamente como um universal (como em solidificar a diferença do mito fundador ocidental e de sua diferenciação com o suposto e igualmente simbolicamente criado “oriente” e a universalidade desta racionalidade descoberta pelo ocidente): basta que saibamos que a partir do século XIX com o advento do historicismo e do idealismo alemão, é que se elabora (não apenas isso, mas que se cria e se descobre ao mesmo tempo, numa interessante relação dupla entre criar e descobrir) a “História da Filosofia”, que se desenvolveria desde a “Grécia antiga”, se encaminharia a Hegel e que não sem coincidência é narrada hegemonicamente como um fenômeno intraeuropeu.

 Apesar de, portanto, dentro da própria filosofia hegemônica o regionalismo impresso em nossas categorias “universais” não ser absolutamente estranho, e dentro dos diversos projetos culturais espalhados por todo o mundo, a composição de projetos culturais nacionais não ser também estranha, ao contrário, poderíamos aqui nos derramar em tantos outros exemplos, eu gostaria de afastar-me desta concepção nacionalista de uma filosofia. Não que seu aspecto nacional não seja importante ou que não tenha sentido, mas renuncio por hora e estrategicamente a esta discussão também no intuito de aproximar-me daquilo que mais me interessa.

            A Filosofia desde o Brasil, usando-me da diferenciação e formulação cabreriana, não designa um espaço geográfico ou nacional, mas histórico-existencial, isto é: filosofar a partir das matrizes e condições existenciais e históricas de onde se pensa, filosofar pelos próprios problemas, categorias, considerando sua própria tradição e com as próprias forças. Me situo, portanto, em uma posição diferente do pensamento instrumental e tecnicista que uma filosofia no Brasil poderia assumir e que toma forma hoje nas universidades, ou seja, do mero comentário anônimo, inautêntico, genérico e erudito acerca de um determinado autor (na esmagadora maioria das vezes, um europeu ou estadunidense) ou tema premente da filosofia hegemônica. Também me afasto das filosofias nacionalistas por interesse e por razões estratégicas. Assumo para os propósitos deste texto que filósofos desde o Brasil não fazem “filosofia brasileira”, mas tão somente filosofia. Como todos os que fizeram filosofia: todos os filósofos, ainda que com ambição universal, criaram suas filosofias a partir de seu lugar histórico-existencial, os europeus aí inclusos. Os problemas que os ocuparam são os problemas que se relacionam com suas tradições ou que tocaram à sua história e existência.

            Este fato permite que vislumbremos, portanto, o mais perverso aspecto que uma “luta simbólica”, na expressão de Murilo Seabra, mobiliza acerca do conceito de filosofia e de seu mito fundador: por muitas vezes a academia europeia ou estadunidense mostra-se receptiva ou curiosa em saber o que fazemos de filosófico desde nossas condições existenciais e históricas, em conhecer nossos filósofos[4]. É o intelectual brasileiro, entretanto, que demonstrando ter introjetado um discurso colonial civilizatório de centenas de anos declara que não temos “cabeça filosófica”, ou que não temos filósofos, isto é, é ele quem mais fortemente colabora para sua própria escravização intelectual: “(...) devido a uma série de aberrações afetivas, ele se estabeleceu no seio de um universo de onde será preciso retirá-lo. ”[5] O filósofo brasileiro não é mais amável do que o europeu, na verdade trata-se de deixar o homem livre.

            Diante de tantas dificuldades, não apenas àquelas oriundas do pensamento ou mesmo daquelas que esperamos de uma vida regular, mas principalmente aquelas oriundas do fato de ele simplesmente ser latino americano, este sub-homem, o filósofo latino-americano, não foi, não é e não será simplesmente aquele ser humano que se volta para seu sofrimento e incompletude com paixão reflexiva, mas será, certamente, aquele que além de contar com sua obsessão do pensamento, se insurgirá contra tudo aquilo que o impede de ser. Ele deve se insurgir contra seus iguais, que não acreditam que tenham a capacidade de pensar filosoficamente, também deverá se insurgir contra a cultura erudita hegemônica que insiste em narrar sua incompetência: não apenas diretamente, como Hegel, Rousseau ou Kant em seus momentos mais racistas, mas no indireto (e talvez mais brutal) panorama cultural onde ele vê seus iguais sempre parcial e problematicamente, encobertos por motivos filosóficos europeus. Mais precisamente: deverá se insurgir contra si mesmo, e o sucesso sempre parcial desta insurgência é marca indelével do pensamento latino-americano. A insurgência, portanto, em nosso último conceito cabreriano, é quando o filósofo se volta a superar tudo aquilo que o impede de ser, que o impede não apenas de levar a frente seu projeto filosófico (sendo ele “bom” ou “ruim”), mas, que o impede de ser simplesmente o que ele é: um filósofo, e que pretende lançá-lo na posição de servo do pensamento e em última instância, o conclama a dar continuidade ao projeto de alienação colonial levado a cabo desde os primeiros instantes do colonialismo moderno.

Encaminhando-me a questão
            A pergunta “o que é a filosofia do Brasil? ” Ou “quem são seus autores? ” vem sendo feita, de maneira corrente, a partir de um critério que torna visível apenas um determinado modo de fazer filosofia e pensá-la que considero não apenas inadequado, mas ingênuo e servil. Superada a questão meramente técnica de um filosofar no Brasil e a obscura acepção de uma filosofia do Brasil, resta verificar se estamos de fato abertos a encontrar uma filosofia desde o Brasil. Para isso é necessário perder algumas expectativas e até mesmo algumas definições que possuíamos ao buscar ver a filosofia desde o Brasil de maneira irrefletida. Primeiramente, creio que é completamente inadequado e ingênuo, para seguir os adjetivos levantados anteriormente, buscar critérios apreendidos na filosofia europeia para validar ou não os atores de nossa filosofia como genuinamente filosóficos. Adotar um critério externo de filosofia poderia excluir para nosso próprio pensamento aquelas problemáticas, conceitos, maneiras de abordar os problemas, estilos de escrita que podemos considerar importantes e frutíferos para nós, e que nos são particulares, ainda que possam conduzir a um conhecimento universal.

Podemos fazer (e fazemos) filosofia tão universal quanto qualquer outra, mas ela é situada (também como qualquer outra) a partir de nossos próprios problemas históricos e existenciais. O esforço profissionalizante da filosofia, entretanto, não consegue ver o fato de a filosofia hegemônica ser situadae isto é um fato político, não meramente epistemológico: a ideia de que a filosofia europeia constitui o exercício exemplar da razão e que é universal enquanto que “os outros” fazem simplesmente pensamento situado e local, é política do início ao fim. Ela aparece “universal” porque se relaciona com uma história e com temas que são vistos, igualmente, como “universais”, que se tornaram gerais ou “universalizados” senão por complexos processos históricos e políticos de dominação. Essa maneira de ver a filosofia tomando a experiência europeia como modelo paradigmático invisibiliza nossos filósofos. É evidente: não encontraremos um Kant isolado no sertão nordestino, um Marx nas favelas do Rio de Janeiro ou um Maquiavel em Brasília. Não apenas porque essas experiências filosóficas já aconteceram, mas porque todos estes personagens foram frutos de suas respectivas sociedades e de seus respectivos tempos históricos. Eles se utilizaram desta condição existencial contingente como matéria prima para sua atividade reflexiva. Devemos estar abertos para outros modelos de filosofar que aconteceram, que acontecem ou que ainda estão por acontecer entre nós, sem invalidá-los já de antemão como afilosóficos simplesmente porque não seguem uma estética, modelos argumentativos, critérios ou temas já clássicos, esperados ou conhecidos.

Em segundo lugar, e de forma mais importante, considero que a maneira como a historiografia acerca da filosofia do Brasil (e da América Latina) foi feita até hoje é não apenas igualmente inadequada e ingênua: é também demasiadamente colonizada, por mais que ela provenha de um ímpeto liberador, num esforço positivamente valorativo das próprias tradições. Esta historiografia funcionaria, talvez, se não estivéssemos em condição de dependência, se não tivéssemos passado pela situação colonial, se não tivéssemos, em suma, a nossa história. Gostaria de me ater um pouco mais a este ponto mais à frente, posto que ele toca tanto as historiografias de tendência uspiana quanto a outras cuja figura central é a de Antônio Paim. Num sentido profundo, penso que até mesmo a historiografia oferecida por Dussel ainda permanece problemática. Considero que os métodos rarefeitos de todas elas sejam igualmente equivocados, embora a historiografia uspiana tenha internalizado, de fato, um trato colonizado com nossa história de forma mais pronunciada.

A História da Filosofia europeia narra-se a si mesma a partir de um mito fundador: o mito do milagre grego. À parte deste milagre nunca haver existido e ser narrado a partir do século XIX e estendido até ao que hoje chamamos “antiguidade”, à parte de ter mesmo criado “os gregos” (isto é, como um povo unificado e apercebido como tal), à parte dos estudos acerca da antiguidade terem realizado franca tarefa de ocidentalização “dos gregos”, isto é, de terem esquecido não apenas as influências como também o caráter oriental da cultura grega, à parte da própria concepção de “milagre grego” ambientar-se em um ideal assepticamente branco e racializado, gostaria de destacar o fato de que esta história da filosofia tornou-se hegemônica única e exclusivamente por fatores políticos, e, mais importante, que a sua metafísica foi naturalizada (isto é, tomada como imediata, neutra e universal) e devido a isso, transplantada imediata e acriticamente às historiografias latino americanas e eu gostaria de demonstrar este fato.

 Num sentido profundo, poderíamos dizer que a maneira colonializada de conceber o que é filosofia não nos deixa ver grande parte dos filósofos brasileiros e latino americanos: ela os invisibiliza. Desempenha, portanto, um papel auxiliar ao racismo e machismo na tarefa de opressão intelectual. Num outro sentido, não é apenas a nossa maneira de conceber a filosofia que torna não visíveis os filósofos: é nossa maneira de conceber nossa história do pensamento segundo as mesmas categorias europeias que um sistemático encontro com a filosofia latino-americana nos é negado e em seu lugar nos restam apenas historiografias esparsas, listas de filósofos, alguns estudos acerca de algumas escolas, em suma: fragmentos do que a filosofia latino americana foi, é e pode ser. Ela encontra-se fragmentada em termos de sua própria compreensão, e isso não se dá devido a uma suposta diversidade do pensamento, mas devido à própria compreensão fragmentada e colonizada deste pensamento.

A gramática do dominado não nos deixa ver tanto os filósofos como a dinâmica na qual figuram, que poderia ser desvelada através de um método. É o método que constrói os fatos historiografados e suas inter-relações, seja ela da Filosofia ou qualquer outra e é a teoria que constrói o método. A falta desta percepção impediu-nos de sistematizar metodologicamente uma História da Filosofia desde o Brasil ou desde a América Latina posto que a crítica decolonial tem sido intensamente negativa e teórica, rejeitando o eurocentrismo e teorizando acerca do mesmo ao passo que demonstra, de forma bastante fragmentada, a importância do evento colonial para a disposição atual do mundo moderno, mas até agora não me parece ter criado um método capaz de produzir esta história descolonizada que buscamos, ainda que levemos em conta os esforços dusselianos.

Como as historiografias da filosofia do Brasil foram feitas
            Há uma cisão fundamental na forma como se faz e percebe a historiografia da filosofia do Brasil. Se por um lado tem-se o grupo que se mobiliza em torno da Academia Brasileira de Filosofia e do Instituto Brasileiro de Filosofia: no qual, liderando o grupo está Miguel Reale e Antônio Paim que serão seguidos por José Maurício de Carvalho, Velez Rodrigues, Jorge Jaime e Alberto Cerqueira, principal e atualmente, defendendo uma filosofia brasileira a partir da escolástica portuguesa e das respectivas reações a ela em diante, por outro lado, figuras como Ivan Domingues, Bento Prado Júnior, Paulo Eduardo Arantes, dentre outros hegemônica e predominantemente influenciados por uma narrativa situada a partir da USP, enxergam a existência da filosofia apenas a partir da implantação da “filosofia profissional” no país, isto é: a partir da criação da referida universidade. Estes dois grupos que se mobilizam em torno não simplesmente da instituição, mas de certas posições doutrinárias por elas representadas, em que cada facção permanece legitimada pelas instituições que os amparam.

            O que permanece bastante curioso, entre estes dois grupos, é o de se ignorarem reciprocamente, por isso conformando o panorama dos estudos de filosofia do Brasil num contexto culturalmente “esquizofrênico”, como denomina Paulo Margutti[6]. De fato: caso percorramos ambas as historiografias verificar-se-á que Paim não toca na implementação da USP e em suas figuras centrais, enquanto que a posição uspiana será a de que antes da criação da referida universidadenão há pensamento filosófico strictu sensu, apenas pensamento diletante, sem o rigor técnico do profissional de filosofia e que, portanto, não seria meritório situá-los em qualquer compêndio histórico-filosófico.

            O grupo de Paim descreverá a filosofia como sendo praticada no Brasil desde a escolástica portuguesa e o trabalho jesuítico no Brasil em diante, de forma dominante, feita inicialmente por padres e estudiosos ligados à formação eclesiástica. Depois predominam os profissionais do direito, da medicina e da diplomacia, embora a filosofia católica, por exemplo, esteja sempre presente e não tenha desaparecido de sua historiografia mesmo após a modernidade. Estes atores historiografados serão situados desde os escolásticos, contra reformistas, passando pelo moralismo do século XVIII, sensualismo, ecletismo, culturalismo espiritualista, liberalismo, tradicionalismo passeando pela filosofia católica do século XIX (que abriga o já citado tradicionalismo), o positivismo, o neopositivismo, marxismo, até os tempos contemporâneos, donde virão os filósofos da ciência, os fenomenólogos e os culturalistas de nosso tempo.

            O grupo uspiano se centrará na experiência de implementação da USP no Brasil em diante, performando um tipo intelectual descrito por Paulo Margutti como o estrangeirado-comentador, isto é, aquele intelectual que “estudou no exterior e não acredita que tenhamos maturidade filosófica suficiente para a elaboração de obras originais, recomendando que nos concentremos na exegese de textos de pensadores clássicos enquanto essa maturidade não for atingida.”[7] Este tipo de intelectual característico desde a fundação da referida universidade, narra o período de implementação da mesma como marco iniciático da existência de um trabalho filosófico verdadeiramente profundo e tecnicamente capaz. Apresentam grande aversão a qualquer perspectiva que pretenda considerar as particularidades filosóficas locais (aquele cabreriano “desde” referido anteriormente), preferindo relacionar-se a partir de perspectivas e entabulando questões que acreditam “universais”; deste modo, para Ivan Domingues “(...)como a matemática e a biologia, a filosofia transcende as nações, é fruto do intelecto e está enraizada na experiência humana, e o melhor a se fazer ao tentar compreendê-la é trocar o determinismo geográfico e psíquico forte pelas formas mais brandas da preposição (de) introduzindo uma relação de origem, de dependência ou de pertença, bem como da preposição (em) demarcando um lugar ou uma posição no espaço e no tempo. Desfeita a confusão, poderemos reconhecer a pertinência de se falar de filosofia no do Brasil: acepção neutral de filosofia feita no Brasil ou feita por filósofos do Brasil e de nacionalidade brasileira.”[8]

            Os partidários da posição uspiana elegem, via de regra, alguns critérios que possibilitariam a existência de uma filosofia “verdadeira”. Penso que estes critérios são discutidos e contra argumentados exemplar e exaustivamente por Júlio Cabrera em seu já clássico livro “Diário de um filósofo no Brasil”, e não nos estenderemos acerca deles aqui.

            Há uma terceira corrente que denominaríamos decolonial ou contra-dependente que possui acento mais forte no restante da América Latina (como Argentina, México, Colômbia) que propriamente no Brasil, mas como esta historiografia será importante para meu argumento a seguir, pretendo apresentá-la aqui de forma rápida. Esta corrente é herdeira tanto dos estudos de subalternidade indianos (cujos nomes centrais são Ranajit Guha e Gayatry Spivak), dos estudos culturais (cujo nome mais proeminente entre nós é certamente do palestino Edward Said e seu clássico: “Orientalismo”), quanto da tradição cristã insurgente que já se situava no Brasil(a Teologia da Libertação). Inspirada e representada, em parte pela tríade Aníbal Quijano, Walter Mignolo e Enrique Dussel, a historiografia produzida por este grupo tentará ser inclusiva dos pensamentos autóctones, deste modo, Dussel, Eduardo Mendieta e Carmen Bohórquez editarão o “El pensamiento filosófico latinoamericano, del Caribe y ‘latino’” e incluirão, a filosofia Nahuatl, a Maia, a Tojolabal, a Quechua, a Mapuche e de diversos outros povos latino americanos. Esta corrente pretende situar os esforços dos pensadores não simplesmente de países tomados de forma isolada no continente sul americano, mas de toda a região Latino Americana como que abrigando um debate comum possibilitado por um passado histórico comungado. Desta forma, o acento macrorregional da abordagem historiográfica decolonial pretende respeitar as especificidades e povos distintos da América Latina e ao mesmo tempo articulá-los em debates comuns.
           
Como a historiografia da filosofia desde o Brasil (e desde a América Latina) deveria ser feita
            O pensamento latino-americano é marcado por um acotovelar-se para dentro da História da Filosofia na inconfessada convicção de que seria possível estar fora dela. Deste modo, assim como os passageiros de uma grande metrópole empurram-se para dentro dos vagões dos trens, a filosofia latino-americana empurrou-se para o que imaginava ser “A Filosofia” através da constante correlação de si mesma aos “grandes temas” que ela considerava mais nobres e pertinentes. Relacionou-se ao centro do sistema e ao que ela considerava como intrinsecamente “bom” (ela é assombrada por sua baixa autoestima). Desta forma alguns disseram que não havia filosofia no Brasil, mas agora há, e agora compreendemos o grande evento do pensamento. Outros disseram que participamos do grande evento filosófico mundial, isto é, universal e discutimos entre nós, aquilo que pensávamos ser mais nobre e edificante: o empirismo mitigado, o culturalismo, o positivismo argentino, os estudos acerca “da antiguidade” e tantas outras correntes que exibimos a nós mesmos como uma espécie de alforria intelectual.

            O fato é que apesar de todas as diferenças historiográficas que existem entre nós, e ao fato de o próprio pensamento europeu ser constitutivo do que somos e do que queremos ser, a dinâmica do pensamento europeu nos contaminou para além de onde seria libertador e nos estacionou em uma história do pensamento latino americano que não possui dinâmica, isto é, é descrito com pouca vida interior e movimento independente, salvo algumas ilhas de debates conhecidas como “escolas”, sendo sempre escravo das últimas novidades europeias para “contribuir” com nossas teorias-notas-de-rodapé e levar à frente nossa pequena filosofia. Desta forma, nossa historiografia não apenas se comunica com a Europa: depende dela. Mas isto não se deve ao nosso pensamento simplesmente, mas como a apreciação dele foi construída entre nós.

            Em 1936, Alcides Bezerra reconhece, em discurso proferido na Sociedade Brasileira de Filosofia, não só que seria impossível que o Brasil não contasse com uma filosofia no período colonial (contrapondo-se já a um lugar comum entre os historiógrafos da filosofia do Brasil, posto que tomavam como axioma que a filosofia, já que haveria nascido na Grécia, só poderia vir para o Brasil em barcos e Caravelas, para vicejar em seminários, escolas de ler e escrever jesuítas, faculdades de direito e medicina, meramente transplantada no período colonial, apenas emancipar-se-ia – em parte –  da mera importação de ideias a partir do Ecletismo Espiritualista) visto que era improvável que “durante três séculos ninguém se preocupasse com os problemas fundamentais da vida humana”, que “Ninguém tenha meditado sobre o valor das ações, sobre o bem e o mal, a origem das coisas, o destino da alma”. Suspeitava ele que não apenas os conquistadores, mas os índios preocupavam-se com o problema: “Há uma filosofia dos Naturvölker, e os nossos indígenas tiveram também a sua”. Apesar deste notável, gigantesco progresso, restava ainda cindida a filosofia, no sentido em que apesar de reconhecida a origem existencial de todo filosofar e superada a compreensão historicista do mesmo (isto é, de que a filosofia tenha nascido na Grécia e se deslocado, como evento histórico, para todo o resto do mundo, para uma outra: que a filosofia é um relacionar-se perguntante com a realidade existencial que nos circunda e forma), se reconhece uma realidade existencial: a dos indígenas, e outra distinta: a dos conquistadores. Apesar da preocupação, proferida no mesmo discurso, da influência dos saberes indígenas na mentalidade nacional, permanece ainda muito primário o questionar filosófico já que não se perguntou em que termos a realidade colonial lançou as bases de nossas especulações. Como aquela primeira impressão colonial veio a influenciar e a marcar o filosofar, quais são as perguntas que lança, as investigações que perduraram, isto é: se existe algum conhecimento filosófico, para além do registro historiográfico imediato, que retornará em nossa filosofia, atualizando-se de tempos em tempos que comporia nossa marca distintiva e que começava a ser forjado ou já encontrara sua gênese e primeira apresentação já naqueles tempos coloniais.

            O fato é que ao invés de nos imergirmos em nossa própria história, preferimos procurar em nós o grande tema que seria imediatamente reconhecido pela filosofia europeia como grande e isto se deve ao fato de que os critérios que norteiam o que pensamos ser “grande” e filosófico estão já dominados em demasia. Este grande tema ou grande filósofo deveria comunicar-se, para o dominado, com a tradição europeia, porque ela seria universal. Desta forma provaríamos nossa pertinência. Mas o que foi que encontramos? Estrangeirados filósofos, estrangeirados comentadores, algumas nobres almas racionais: para alguns, literatos ou diletantes, para outros, já filósofos, mas para todos eram aqueles que estabeleciam alguma comunicação com “o Universal” e, por isso mesmo poderiam ser apreciados.

            É louvável o esforço de Paim em ultrapassar o “campo daqueles que procuraram dizer como deveria ser (postulação que batizamos de ‘participante’) para uma investigação direcionada para descobrir como ‘as coisas de fato se passaram’”[9], isto é, em abandonar as teorias subjetivistas e autocentradas da História da Filosofia do Brasil que buscavam justificar toda uma filosofia tendo a sua própria como alvo (e nossas críticas a ele não são simplesmente uma tentativa de desqualificar seu trabalho, mas sim de ir mais longe. Sem ele e seus titânicos – e por muitas vezes solitários –  esforços nosso trabalho não seria sequer possível), entretanto, apesar de toda empiria e pesquisa a que se pode realizar na historiografia da filosofia do Brasil, constata-se que ela se vale de conceitos basilares, anteriores à própria pesquisa, tais como: o que é um filósofo, o que é uma filosofia, o que é A Filosofia, quais são os temas genuinamente filosóficos. Bem como se vale de conceitos que são elaborados tendo como inspiração a observação da filosofia e seu paralelo e concomitante metafilosofar: como qual é a dinâmica histórica da filosofia. Isto é: há um componente na historiografia que vai além do método e observação e este componente é teórico, ele guia o fazer-história, ainda que inconscientemente guia o método em reconhecer o que deve passar por seu crivo. É anterior aos fatos em exata medida em que os organiza, que nos esclarece o que é um fato, o que deve ser considerado ou não e qual é sua dinâmica interna. É anterior ao campo da experiência posto que nos ensina como ela deve ser considerada e, portanto, pertence ao campo daqueles que procuram dizer como deveria ser. Tais questões são elucidadas única e somente pela especulação metafilosófica teórica, de sorte que o método historiográfico e a especulação metafilosófica são inseparáveis e formam uma síntese maior. É esta síntese que deve ser conhecida, entre nós, como História da Filosofia desde o (ou do) Brasil e América Latina. Neste sentido, a História da Filosofia do Brasil (entre nós, desde o Brasil) não pode, de forma alguma possuir a mesma dinâmica, ou sejamos mais diretos: não pode possuir a mesma metafísica que a História da Filosofia Europeia, pois há entre estas duas histórias condições políticas e ontológicas bastante distintas que nos obrigam a tratar o problema de forma distinta: o “tema” se insurge contra o método, obrigando que se altere para que possa dele tratar.

            Como os filosofares locais raramente seguem a regra hegemônica, pois partem de uma historicidade e existência diferentes, deve-se metafilosofar para não apenas reconhecer (conhecer o que já se sabe pela teoria) os modelos prévios de filosofar aprendidos com a filosofia europeia. Neste sentido, a tarefa contra hegemônica de simplesmente ver, reconhecer aquilo que a tradição europeia pode não chamar imediata ou absolutamente de filosófico como propriamente filosófico, cabe à metafilosofia. Em terras latino-americanas, a teoria metafilosófica aliada ao método historiográfico que irá investigar estas filosofias se mostra necessária, haja vista que lidamos com filosofias contra hegemônicas, que por muitas vezes pouco se adequam à nossas prévias expectativas filosóficas hegemônicas, mas que se mostram como tal por uma libertadora especulação metafilosófica. Na compreensão de Murilo Seabra, a filosofia possui um componente etnográfico. Necessitamos da metafilosofia para já não encobrir de imediato (ou encobrir cada vez menos, em uma repetida experiência histórica cada vez mais libertadora) os filósofos etnografados.

            É neste cabreriano sentido que o “no” ou “do” Brasil devem ser superados em nome do “desde o Brasil”. Desta forma, não se trata, como sugere Ivan Domingues, em perscrutar as origens do tratado de Tordesilhas para saber o que cai sob a égide de sua determinação geográfico-espacial que determinam as fronteiras do Brasil e consequentemente determinariam o que é Filosofia Brasileira, posto que para ele os filosofantes poderiam estar incluídos ou excluídos destas fronteiras; da mesma forma, não podemos julgar o que é Filosofia Brasileira baseados apenas em quando tais e tais escolas foram importadas e seguir sua linha genealógica.

Devemos considerar como filósofos aqueles que, partindo duma realidade latino-americana ou mesmo brasileira, partindo de problemas e preocupações locais, categorias locais, estilos de escrita e comunicação locais[10], em suma, de uma existência local se utilizaram desta experiência como matéria prima para uma reflexão própria, isto é: com as próprias forças. Desta forma, estariam excluídos de nosso critério filosófico todos aqueles cuja missão traduziu-se simplesmente em atualizar o país das ideias estrangeiras de último momento, todo encontro meramente técnico ou civilizatório com a filosofia. Consequentemente a esmagadora maioria dos profissionais de filosofia que trabalham nas universidades brasileiras hoje estariam situados fora de nossa historiografia. Não se trata de julgar apressadamente como não-filosóficos, os atualistas (aqueles que pretendem simplesmente atualizar e trazer a presente cultura brasileira às novidades estrangeiras dominantes). Eles deveriam ser avaliados em função do que fizeram com as filosofias que trouxeram: se a subverteram, se a ensinaram “errado” e acabaram por criar um novo ponto de vista, se foram influenciados de alguma forma por sua realidade e a partir dela “deformaram” a filosofia que pretendiam divulgar, se, em suma, falharam em seu propósito atualista e não resistiram à postura de criação filosófica, se se apropriaram ao ponto de realizarem o que Zea denomina como característica de nossa filosofia, sua estranheza, deveriam ser incluídos em nossa historiografia.

            Deveríamos avaliar além do sistema filosófico imediato e do domínio técnico deste sistema: quais são as questões que são tornadas importantes para nossos filósofos ainda que se mostrem dominados por uma teoria europeia e por que eles são importantes numa perspectiva histórica sistemática insurgente (que busca libertar-se ainda que problematicamente) e não dependente (que busca atualizar-se, custe o que custar). Ao invés de considerarmos “diletante” ou “carente de rigor” suas explorações filosóficas devido ao fato de aplicarem mal as teorias importadas, cumpre entender este ato como uma subversão, compreender em que termos “saber mal” as filosofias importadas implicou em fazer melhor a filosofia latino-americana. Compreender, portanto, como que aplicando as teorias estrangeiras, distorcendo-as e subvertendo-as, pouco a pouco foram se formando escolas e preocupações completamente distintas daquelas preocupações iniciais da teoria alienígena. Cumpre compreender este processo como uma espécie de insurgência. Da mesma forma, cumpre compreender diversos atores filosóficos para além daqueles que possuíram educação formal ou entraram em contato com as ideias europeias, em um esforço de visualizá-los para além das classes e meios sociais aburguesados e brancos.

Entre literatos e pensadores, compreender que não seriam levados a sério (até por eles mesmos) se simplesmente ousassem figurar no discurso que o poder colonial considerava mais sublime (isto é, a filosofia): por muitas vezes fizeram filosofia escondida em prosa e poesia, em crônicas sociais, ou mais tarde em teoria social. Levar a sério relatos nativos, suas cosmologias e pensamentos, do passado e do presente. Nosso método deve ser metafilosófico, local e histórico-existencial, sensível, e atento à insurgência e não meramente historicista e universalista, buscando, através de um critério irrefletido e opressivo, se nos adequamos àquela colonizada determinação que consideramos ideal.

            Do revisionismo decolonial veio aquilo que esperávamos ser uma espécie de salvação: temos nossos próprios temas e preocupações, nada é universal, tudo é local. O universal é o local que se generalizou, se politizou e que se esqueceu de sua própria história. Mas sua historiografia permaneceu tão fragmentada e rarefeita de método como aquelas que acreditavam que a filosofia no Brasil proveio da escolástica Portuguesa, ou que nasce apenas após a implementação das universidades no Brasil. Todas as historiografias são vítimas da assistematicidade a que se impuseram: enumerando escolas, autores e temas, pouca coisa foi feita a filosofia latino americana e brasileira para que se situasse verdadeiramente como um sistema, como uma inter-relação, posto que impomos a sua compreensão a uma titânica dependência das novidades europeias. O historiógrafo brasileiro sempre passa pelo momento em que é obrigado a dizer: “As novidades da nova teoria importada chegavam da Europa e influenciaram tais e tais pensadores”. Assim se leu Silvestre Pinheiro Ferreira, Tobias Barreto até a Teoria da Dependência e Sérgio Buarque de Holanda. Em verdade, se pensou pouco em Sérgio Buarque e em tantos outros como genuinamente filosóficos pois estes pensadores “pertenciam” a outras disciplinas. Mas não completamente: transitavam entre muitas e então tiveram de ser simplesmente isto: pensadores. O critério do que é um filósofo permanecia o importado.

            Entre as escolas do pensamento brasileiro e latino americano, e a partir da historiografia disponível, poucos vínculos foram criados entre eles. Muito mais foram criados entre nós e o pensamento estrangeiro, ao “espírito de época europeu”. Grande parte de nossa historiografia pensa nosso pensamento como sucessivas versões das novidades europeias, num paralelismo quase-perfeito às escolas e preocupações estrangeiras. Mostra-se um ato civilizatório em terras brasileiras, em suma: como uma atualização ou, quando muito, aplicação ou adaptação das ideias à nossa realidade e contexto histórico. Não busca ver a verdade por detrás destas disposições civilizatórias porque lemos a nós mesmos de forma marcadamente pobre e literal: aquele método hermenêutico, ou melhor, aquela poesia com que tratamos a filosofia europeia com o qual nos relacionamos com ela que nos sugere que sempre há mais do que foi dito e que o que foi dito é algo profundo, rico, singular e importante, não parece valer para nossos filósofos porque fazê-lo seria já uma espécie de independência e se há algo que o colonizado tema mais que ser dominado é ter a responsabilidade sobre si mesmo.

É necessário reconhecer a forma burguesa com que os filósofos profissionais conceberam a tarefa da filosofia sul-americana: como uma indefinida construção das condições de possibilidade ideais para um existir filosófico, como um filosofar confortável, arando o terreno da cultura e sociedade para uma adequada germinação duma flora filosófica idealizada, como eterna preparação, como se a filosofia ocorresse apenas em condições ideais: Boécio escreve a  Consolação pela Filosofia, o livro mais lido na Idade Média afora a Bíblia entre seções de Tortura, Sócrates filosofou sendo perseguido politicamente, nunca escreveu nada do que disse e (apesar de possuir influências) não contava com ampla tradição filosófica antes dele, Nietzsche escreveu suas últimas obras já sob efeito de problemas mentais advindos da Sífilis. Os profissionais de filosofia brasileiros postergam infinitamente o seu pensamento posto que estão tentando estabelecer as condições ideais de nascimento de pensamento filosófico em território nacional, ignorando o fato de que a filosofia europeia, que aparece como modelo paradigmático para todos eles, jamais desenvolveu-se em tal terreno ideal. Do mesmo modo, esperam que esta filosofia venha a existir, e não em pensá-la como algo que já existe. Penso que este eterno postergar muito mais se circunscreve num ato de retirar-se da responsabilidade de conduzir a filosofia latino-americana a novas paragens, em desenvolvê-la e enfrentar, quando necessário, as tradições euro-estadunidenses, que de gerar condições de possibilidade para o nascimento de uma filosofia. Em suma: o eterno postergar é simplesmente medo, ainda que extremamente elaborado sob muitas camadas de erudição e malabarismos argumentativos.

Para além de nossos problemas historiográficos, apostou-se pouco na potência do pensamento Sul-Americano porque temeu-se secretamente a responsabilidade de sustentá-lo frente ao poderio intelectual estadunidense e europeu. O medo que se tem em levar a sério um latino-americano é o medo que se tem de ser sistematicamente obliterado ao fazê-lo: fugir desse embate é fugir de uma segunda humilhação colonial. Colocou-se no lugar da responsabilidade, uma compreensão burguesa da filosofia que busca adiar o conflito do enfrentamento das tradições filosóficas: que teria de se chegar a um determinado ponto na civilização para sermos filosóficos, que teríamos de atingir determinadas condições de possibilidade materiais e espirituais para sermos filosóficos e não que já se é filosófico desde sempre, postergando eternamente a responsabilidade filosófica, posterga-se eternamente o embate contra colonial. Ao invés de uma experiência existencial inescapável, pensou-se que a filosofia dependia de critérios mínimos. Condições de possibilidade.

            A compreensão hegemônica notadamente burguesa do que é e como se faz filosofia, isto é, que para atingi-la é necessário atender a determinados critérios, não colaborou para que descobríssemos a nós mesmos como seres independentemente pensantes porque tal como o sertanejo que se juntou a Conselheiro e olhava para os céus esperando o aparecimento do Rei-messias, os filósofos profissionais olham para o céu esperando o aparecimento do genuíno filósofo brasileiro. Não há diferença. Mas em contraste com aqueles que erigiram uma cidade e venceram três expedições de um Estado Nacional, o filósofo profissional permanece em sua quietude departamental na crença que seu trabalho mecânico o distraia enquanto o escolhido caia dos céus.

            Afora o problema de conceber a filosofia desde o Brasil como algo que não aconteceu, quando a filosofia do Brasil é considerada como existente e é historiografada, é sempre pensada em um paralelismo quase-perfeito às tradições europeias, isto é, se há marxismo na Europa, busca-se o marxismo entre nós, da mesma forma a fenomenologia, o existencialismo, o positivismo sem pensar em como nos servimos de tais escolas para falar de temas interditos, advindos de nossa realidade, ainda que a tenhamos recebido num contexto de mera atualização da cultura nacional. Em que sentido nos utilizamos de uma mesma nomenclatura para elaborar algo novo.

Dividimos nossas escolas filosóficas segundo as categorias europeias, posto que quando lemos Tobias Barreto, o classificamos como um germanista excêntrico, um divulgador das novas ideias alemãs, um culturalista. Não o tomamos como aquele que buscava enfrentar uma compreensão naturalista de escravidão, nem pensamos em porque ele desejava resolver este problema, e fazê-lo na cultura: seriam resquícios dos desejos de realização utópica que foram potencializados e transformados a partir da visualização das terras Americanas como paraíso terreal e que permaneceram em nossa cultura, sempre reanimado sob o signo do exótico e que passearam desde tempos coloniais ao integralismo ou seria ainda outra coisa? Os filósofos pensam seus problemas fundamentais a partir do substrato que lhes é possível, mas sempre ultrapassam este substrato. O filósofo está sempre além. Mas a historiografia brasileira e latino-americana concentrou-se apenas no substrato.

            Desta forma, permanecemos fragmentados precisamente porque jamais chegamos a apreciar a elaboração das ideias sob um signo mais potente e inspirador que o da atualização a ideias estrangeiras, e quando a Teoria Decolonial nos aproxima de uma verdadeira insurgência, apontando para nossos próprios temas, continua a repetir o mesmo método: verifica quais são as escolas estrangeiras às quais os filósofos estão vinculados e situam os filósofos a partir daí e começam suas maçantes e infinitas listas: os culturalistas brasileiros, os espiritualistas, os marxistas, os fenomenólogos etc. Ao invés disso, os filósofos deveriam ser situados ao diálogo interno latino-americano, aos nossos desde históricos, numa compreensão que transcende os filosofemas individuais ou correlacionados à atualização cultural.

O filósofo latino-americano deve se insurgir contra tudo aquilo que o impede de ser, mas a filosofia latino-americana também se insurgiu no exato sentido em que realizou sua discussão interna a partir daqueles canais de comunicação em que foram possíveis de ocorrer: como a literatura, como entre aqueles em que não pesava o dogma acadêmico ou erudito. Nenhum filósofo brasileiro não teve de se insurgir contra o fato de que nunca foi considerado como um interlocutor à altura do “grande pensamento”. Pensar, para nós, é se insurgir contra um ideal excludente, e insurgindo-se contra este ideal, faz-se filosofia latino-americana, portanto, a história da filosofia latino-americana não é o atualizar-se em relação à filosofia europeia, nem mesmo o dialogar com ela. Isto é secundário.

A história da filosofia latino-americana é a história de sua insurgência e numa postura proto-metodológica deveríamos nos preocupar sempre como, contra e o que ela busca alcançar em relação a aquilo que ela se insurge e se possui uma insurgência de largo espectro, isto é, que atravessa épocas, por mais que seus autores muitas vezes se ignorem entre si não podem ignorar a própria insurgência contra uma condição comum de escravidão do pensamento e contra ela devem se voltar para simplesmente pensar. Aquilo que Cabrera acreditava ser característica dos filósofos latino-americanos é a chave do pensamento latino-americano: a insurgência do conceito.

Referências
Cabrera, J. Diário de um Filósofo no Brasil, 2ª edição. Ed Unijuí 2013
Fanon, F. Pele Negra Máscaras Brancas, Salvador: EDUFBA, 2008 .
Paim, A, História das ideias filosóficas no Brasil. I ed. São Paulo, Grijalbo, 1967
_____ História das ideias Filosoficas no Brasil . II. As correntes. Ed ver. Londrina, Edições Humanidades 2007
_____ Os intépretes da Filosofia Brasileira. Londrina, 1999
Margutti, P. História da Filosofia do Brasil, São Paulo, Loyola 2013
Seabra, M. Metafilosofia 2ª edição. Ed. Da resistência,2015



[1] VIEIRA, A. Sermões, Rio de Janeiro: Agir, 1972, p.94 - 99
[2] HEIDEGGER, M. Ser e Tempo, Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2012 página 41.
[3]Como normalmente se faz, por exemplo, com sua narrativa mítica de início grego ou a partir da suposição de a filosofia ser “Universal” esquecendo-se da carga histórica e existencial, local e situada, em suma, de todo filosofar, diriam que filosofia brasileira não é universal posto que o universal não se liga a particulares, a nacionalidades ou a condições contingentes de seu acontecimento, sem saber se a pergunta acerca da filosofia do Brasil se estrutura em torno deste nacionalismo ou se a filosofia “universal” realmente não é um pensamento local que se mundializou. Há uma avaliação extremamente ingênua do que seja “filosofia” e do que seja “universal” por parte dos profissionais de filosofia, mesmo entre aqueles que afirmam a priori que há uma escolha política por detrás de todas as classificações.
[4]O impacto de Paulo Freire no mundo acadêmico é um ótimo exemplo disso, bem como o fato de ser muito mais lido e valorizado nos círculos intelectuais internacionais que nos nacionais. O mesmo exemplo poderia ser dado a Frantz Fanon, num horizonte latino-americano, como foi e é imensamente valorizado por autores europeus, dentre eles: Foucault, Hannah Arendt, Sartre dentre outros e como foi eé subvalorizado nos departamentos brasileiros de filosofia.
[5] FANON, F. Pele Negra Máscaras Brancas, Salvador: EDUFBA, 2008 . Página 26
[6] MARGUTTI, P., História da Filosofia do Brasil, São Paulo: Loyolla , 2013 página 10
[7] MARGUTTI P. ,A Visão Ética de Mário Vieira de Mello
[8] DOMINGUES, I. Filosofia no/do Brasil: os últimos cinquenta anos – desafios e legados, Rio de Janeiro: Analytica, vol 17 nº2 2013 , página 89
[9] PAIM, A. Os Intérpretes da Filosofia, Londrina: Editora UEL 1999, página 36
[10]  A tradição oral, como já aponta Murilo Seabra, deveria ser considerada na filosofia acadêmica como forma legítima do filosofar. Em verdade, uma tese cara à Seabra é a de que toda filosofia conta com alguma etnografia, ainda que de seu próprio povo e costumes ou pela leitura de livros que versam (ao passo que também filosofam) sobre determinados povos e costumes. Esta espécie de acúmulo de dados e experiências é necessário ao filosofar.  Outras disciplinas, tal como a História, já passaram pelo debate acerca de considerarem apenas fontes escritas, para depois valorizarem o que pode ser coletado oralmente, como demonstra o autor de Metafilosofia. A etnografia figura como disciplina que pode enriquecer enormemente o debate filosófico brasileiro (neste sentido, a filosofia desde o Brasil, a meu ver, deve ser antropologicamente bem informada ao passo que tenta, ao mesmo tempo,superá-la) e o trabalho de Bruce Albert e David Kopenawa (A Queda do Céu), por exemplo, figura como importante fonte de inspiração e aprendizado aos filósofos brasileiros.


FEIRA DE SANTANA-BA | nº 8 | vol. 1 | Ano 2018


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