Memento game over: a ética e a estética de uma morte lúdica
Memento game over: a ética e a estética de uma morte lúdica
Duanne de Oliveira Ribeiro
Doutorando e mestre em Ciência da Informação pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Graduado em Filosofia pela USP e em Jornalismo pela Universidade Santa Cecília (Unisanta). Editor da Úrsula (revistaursula.com.br).
Resumo: Este artigo se debruça sobre a mais típica das situações para os jogadores de videogame: morrer. Consideramos quais estruturas simbólicas são envolvidas nesse elemento lúdico e quais efeitos sobre o jogador podem estar carregados nessa situação, a partir de estudos nos campos da psicologia, da mídia, da crítica cultural, da estética e da filosofia. Apresentamos uma história de como surge a morte nos games, analisamos como a forma pela qual ela é instaurada modifica os seus efeitos e a coloca em diferentes relações éticas e políticas. Discutimos o componente estético que distingue os games de outras formas artísticas: o morrer em primeira pessoa – isto é, não apenas assistindo à morte, mas implicando-se nela de alguma maneira –, e o morrer como um avatar. Ponderamos em detalhe como isso se efetiva em jogos “não sérios”, voltados ao entretenimento. Por fim, propomos, em diálogo com Michel Foucault, os jogos como forma de uma prática estoica, a meditação sobre a morte.
Palavras-chave: Videogame. Morte. Estética. Estoicismo. Psicologia
Abstract: This article deals with the most typical of situations for video game players: dying. We consider what symbolic structures are involved in this element of gaming and what effects on the player this situation can have, based on studies in the fields of psychology, media, cultural criticism, aesthetics, and philosophy. A history of how death arises in games is presented, with an analysis of how the way in which it is established modifies its effects and places it in different ethical and political relationships. Furthermore, we discuss the aesthetic component that distinguishes games from other artistic forms: dying in the first person – that is, not just watching death, but being involved in it in some way – and dying as an avatar. We consider in detail how this takes place in “non-serious” games, aimed at entertainment. Finally, in dialog with Michel Foucault, we propose games as a form of Stoic practice, meditation on death.
Keywords: Video games. Death. Aesthetics. Stoicism. Psychology
Introdução
Gilberto Gil canta: “Não tenho medo da morte // mas sim medo de morrer”, isso porque “morrer ainda é aqui // [...] a morte já é depois”. Nesses versos, a morte aparece como algo inapreensível: não é nem mesmo um horizonte, pois nela “já não haverá o além”, sendo que o além é construído por nós sem indícios quaisquer, “o além já será então”, em sua (ir)realidade efetiva, seja ela qual for. Já o morrer surge como processo, é testemunhado, exercido, vivido integralmente: “A morte é depois de mim // Mas quem vai morrer sou eu // O derradeiro ato meu”. O morrer como última realização, acidentada, insuspeitada, “e eu terei de estar presente // assim como um presidente // dando posse ao sucessor”. É para esse instante que nos encaminhamos – somos “seres para a morte”, diria Heidegger – e, de longe (?), ele nos afeta. Queremos, não queremos, sabê-lo.
Só o dia e a hora exatos proporcionarão a cada um de nós essa experiência, mas por vários meios procuramos tateá-la ou prospectá-la, ou ainda envolvê-la com o conhecido ou diluí-la. A Filosofia, sabe-se, pensou esse tema desde os seus primórdios. Pensemos no texto egípcio “Diálogo entre um homem e seu Ba”, que lida com os potenciais da mortalidade e do pós-vida, ou nos diálogos platônicos, que abordam a morte por vários ângulos, sendo um dos mais significativos a rota de Sócrates em direção ao suicídio (no “Fédon”, o vemos em seus últimos momentos). Os estoicos, a quem retornaremos no final do nosso percurso, desenvolveram todo um maquinário para que pudéssemos lidar com essa forma do inevitável. Epicuro, por sua vez, na Carta sobre a felicidade (a Meneceu), defende, de maneira muito próxima a Gil[1], que a morte não tem consistência. Esse panorama, por óbvio, não é, e nem poderia ser pelo escopo deste trabalho, exaustivo.
A arte também se embrenha nessa problemática. Além da canção apresentada acima, exemplos de obras que tratam do ato de morrer são o filme Minha vida sem mim (2003), em que a notícia da morte busca cumprir desejos deixados para trás, além de construir algo que permaneça; “O Milagre Secreto”, conto de Jorge Luís Borges no qual o tempo pára para que um homem prestes a ser executado conclua sua obra; e “Tô ouvindo alguém me chamar”, música dos Racionais MCs em que alguém, no chão, baleado, rememora erros e promete “se eu sair daqui, eu vou mudar”. Neste artigo, de acordo com a proposta da edição, me dedico a uma área de expressão somente, o jogo, em especial os videogames. Proponho que há neles uma experiência peculiar do morrer, em que temos de estar presentes e, distintamente de outras vertentes criativas, morremos nós – e não só os personagens –, pelo menos um pouco, por um tempo de nada que seja.
O caminho para elaborar essa proposta será este: na primeira seção, procuro pôr em perspectiva a relação entre morte e jogo, recorrendo a uma pesquisa de viés psicológico-evolucionista; após esse movimento especulativo, faço uma história da morte nos games, mostrando como condições de produção, gêneros e mecânicas modulam o seu sentido e efeito; nas três seções posteriores, discuto o que pode haver de peculiar no morrer dentro dos videogames; já a sexta seção realiza a análise de alguns jogos que, sem pertencer a gêneros “sérios”, permitem viver a morte de uma maneira interessante; por fim, a sétima especula sobre o valor de jogar o ato de morrer.
O jogo como dialética de emoções primevas
As relações entre morte e jogo parecem ir muito além do objeto deste texto. Sutton-Smith (2003) remonta essa dialética às origens da humanidade: em uma perspectiva evolucionista, considera que o desenvolvimento biológico e protossocial dos primatas causou um conflito entre emoções primárias (reflexivas, involuntárias, ligadas à sobrevivência, abrangem a raiva, o medo, o choque, o nojo, a tristeza, a alegria) e emoções secundárias (cognitivas, voluntárias, ligadas à família e à cultura, incluem o constrangimento, o orgulho, a empatia, a vergonha, a culpa, a inveja). O jogo – utilizado pelo autor em sentido amplo, que se aplica a esportes, rituais, contação de histórias, estilos de vida etc. – surge como um mediador entre os pólos. Para cada emoção primária, uma estrutura lúdica é gerada: “[...] a persistência de muitas dessas formas de jogo [...] são movidas por essas emoções biológicas subliminares. Ou seja, quando nos encontramos agradavelmente envolvidos por esses prazeres de performance e sentimento, é como se ainda celebrássemos um sistema de regulação afetiva que tem estado com os hominídeos por milhões de anos” (Sutton-Smith, 2003, p. 7)[2]. Jogaríamos, assim, para exercer, sob controle, nossa psique recalcada.
Consideremos as correspondências jogos-emoções listadas pelo autor. Sem referir todos os itens é possível captar o essencial da classificação: à raiva, corresponderiam campeonatos esportivos, do futebol à queda de braço, e, no caso de crianças e jovens, as rivalidades escolares, o bullying, as pegadinhas; ao medo, jogos de azar, o Halloween, os filmes de terror, as montanhas-russas, o X Games; ao choque, os trocadilhos, o Dia da Mentira, as paródias, a mágica; ao nojo, a pixação, a obscenidade, a escatologia, as caretas, o humor ácido; à tristeza (nomeada também “solidão”), as iniciações, os apelidos, os festivais, os desfiles, as festas, os aniversários, os códigos secretos, o New Games Movement (corrente fundada na década de 1970 tendo em vista fomentar jogos não-competitivos); à alegria (nomeada também “ego/alegria”), as experiências-ápice (conceito do psicólogo Abraham Maslow que denomina uma experiência mística ou “transcendental”, um estado alterado de consciência em que o indivíduo sente que percebe o real como um todo e se distancia da própria identidade), o estado de fluxo (noção do psicólogo Mihaly Csikszentmihalyi para descrever a situação em que o sujeito se envolve intensamente com uma atividade, lidando com suas dificuldades naturalmente e sem atritos)[3], os concursos de beleza, as estátuas.
A listagem de Sutton-Smith pode soar absurda, mas se compreende que “jogo” aqui significa um ato de isolamento, canalização, encenação de uma emoção: "O jogo é em si uma impressionante exultação do conceito de que emoções involuntárias podem de fato ter sua expressão permitida se escoadas dentro desses termos lúdicos. O jogo é aqui uma dialética entre as antigas e as novas formas de sobrevivência emocional” (Sutton-Smith, 2003, p. 12). Sobrevivência, aí, é tomada no sentido físico e existencial também – o que nos retorna ao tema da morte: "[...] a sobrevivência frente à predação é o tipo de vulnerabilidade primária e central em todo nível de complexidade biológica [...]. Presumivelmente, ansiedade causada pela raiva, pelo medo e pelo choque podem estar primariamente conectadas com essas vulnerabilidades” (Sutton-Smith, 2003, p. 14).
Assumindo que essa teoria esteja mais ou menos correta em suas pressuposições, podemos crer que os videogames se vinculem a essa ancestralidade e a essa tensão decorrente da evolução. E é interessante que possam eles ser encaixados nas seis categorias de Sutton-Smith: tomando em consideração os vários gêneros de games, assim como as culturas desenvolvidas em torno deles, podemos pensá-los como pertinentes à raiva, ao medo, ao choque, ao nojo, à tristeza, à alegria. Por tudo isso, é razoável supor que morrer num jogo possui um peso psicológico e sociocultural. Morreríamos brincando para comunicar, traduzir a morte em termos humanos.
Outra perspectiva psicológica que funda a relação morte e jogo em estruturas mentais perenes é a de McAllister e Ruggill (2008), cujo objeto é particularmente os videogames. Baseando-se na Teoria da Administração do Terror – a qual pressupõe que o comportamento humano é marcado por medo da morte onipresente e inconsciente, e, por isso, “qualquer estímulo que intensifique a consciência humana sobre a morte (saliência de mortalidade)” (McAllister; Ruggill, 2008, p. 90) dispara reações psicológicas potentes – pensam os jogos como dispositivos de dupla identidade nesse contexto. Em um primeiro plano, eles atiçam essas pulsões: “Claramente, a morte permeia os games para muito além dos momentos imediatamente antes e depois do instante em que se morre. Quase tudo ligado aos jogos de computador é mórbido, desde as habituais mecânicas de sobrevivência, de limite de tempo, de reservas de energia e de dominação até o fato de que os jogos impõem especificamente regras de engajamento que transcendem as reais vicissitudes da vida voltada à morte” (McAllister; Ruggill, 2008, p. 92). Já em um segundo plano, abafam e gerem essas pulsões, do que são capazes devido a seu distanciamento do real: “Games – como rigorosas formações de jogo – são, por assim dizer, momentos de vida excisados de seriedade, dos seus terrores mortais, da morte. Games se aproximam da morte, mas nunca avançam sobre ela”.
Para situar sua área de estudo, McAllister e Ruggill (2018, p. 93) cunham o termo tanatoludismo – “o jogar com e em torno da morte”, tipo de jogo com “um propósito (usualmente inconsciente) – nominalmente, minimizar, controlar e, de outra forma, enfraquecer os medos mais graves dos indivíduos”. “A questão fundamental do tanatoludismo”, dizem McAllister e Ruggill (2018, p. 91), é responder: “De que forma os lembretes de morte nos jogos de computador constituem parte crucial do que torna os games divertidos?”, sendo que o motivo é a sua capacidade de processá-la: “Os jogos bem literalmente aliviam a mente, agindo como um bálsamo digital para devaneios de finitude. [...] Por se referir ao terror inato da morte (segundo a TMT), mas fazer com que seja relativamente inconsequente ao refundi-lo em uma esfera lúdica, os desenvolvedores de games capturam a atenção do jogador insinuando (mas não instanciando) a morte” (McAllister; Ruggill, 2018, p. 96). Quanto a esse ponto, em nossa penúltima seção apresentamos algo discordante – há algo como uma instanciação da morte nos jogos, onde podemos visitá-la por um momento.
Apesar desse desacordo, nos atrai a análise que McAllister e Ruggill (2008, p. 88) fazem da morte intrajogo, sobretudo porque separa o joio do trigo nas realizações nesse contexto:
[...] a morte nos jogos ocupa um curioso espaço liminar e afetivo e se torna tanto mais consequente – assim, ativando mais defesas contra os terrores que a morte inspira – quanto mais o jogador se aproxima dela em meio ao jogo. A morte aparece, noutras palavras, como uma experiência assintótica. A morte nos jogos sempre se acerca do grau zero da mortalidade real – a morte efetiva do jogador (não do avatar) – mas nunca o ultrapassa, nem mesmo quando o personagem não pode ser resgatado ou revivido e o jogo deve ser reiniciado [...]. Tais experiências assintóticas ou de quase-morte são parte do que torna os games agradáveis e, tão frequentemente quanto, entediantes. Em games bem-construídos, surfar às portas da morte [...] pode propiciar sentimentos potentes de perigo, perda e quietude, sentimentos cuja simpatia com aqueles que giram em torno da morte real é suficiente para ativar o sistema nervoso central de modo estimulante, mas, felizmente, emudecido. Em games menos bem-construídos, tais sentimentos são facilmente amortecidos pelas defesas da psique, achatando um terror presumido em um tédio previsível.
Há semelhanças e diferenças entre os dois artigos tratados. Ambos vinculam os jogos a emoções que acompanham a humanidade desde a sua gênese; ambos veem neles maneiras de elaborar esses afetos. No entanto, Sutton-Smith usa essa palavra para designar uma imensa variedade de eventos sociais, o que dilui a especificidade do que chamamos mais restritamente de jogo. Além disso, para ele a morte está presente de forma difusa em tudo isso. Já McAllister e Ruggill tratam da manipulação de representações da morte, e entendem os games não como algo que expressa um recalcado, pelo contrário, são algo que age para recalcar, embora possam também trabalhar positivamente essas pulsões. Ao fim da nossa trajetória, retomaremos essas perspectivas.
A invenção da morte nos games e sua vida posterior
Botta (2011, p. 14-15) informa que o primeiro jogo de computador propriamente dito (na medida em que não só reproduzia jogos físicos anteriores, mas criava algo novo e com o uso de recursos únicos da máquina), Spacewar! (1962), já aplicava a morte como mecânica: naves se digladiavam até o debacle explosivo de uma das duas. Ainda de acordo com ela, foi Hunt the Wumpus (1973) o primeiro a descrever, indiretamente – no caso que cita, com uma onomatopeia de mastigação: chomp! –, a morte do jogador; já Zork (1977), o primeiro a anunciar: você morreu (tanto Hunt the Wumpus quanto Zork são jogos em texto análogos a livros de escolha-sua-aventura). No decorrer da década de 1980, marcada pela “era de ouro” do arcade, ou fliperama, a morte passa a servir para gerar lucro: quanto mais o jogador morresse, mais moedas precisaria gastar para continuar. Concordam nesse último ponto Botta (2011, p. 15), Boyd (2021, p. 17) e Curtis (2015), sendo que esse último destaca os afetos mobilizados nesse processo:
Game Over significava uma recusa da estimulação visual, e essa frustração para o espectador/jogador era o suficiente para justificar o gasto de mais e mais moedas. Tratava-se de uma frustração feita claramente visível por meio de sequências de encerramento que eram pouco mais do que uma tela estática provocando o jogador com a dura notícia do seu fracasso e um contador adicionando pressão psicológica a isso – extraindo a cada segundo as diminutas chances de inserir mais moedas e continuar jogando.
Com a popularização dos consoles domésticos – por exemplo, o Nintendo Entertainment System (NES), apelidado no Brasil de Nintendinho, foi lançado em 1983 no Japão e em 1985 nos Estados Unidos, com expressivo sucesso[4] –, os arcades caem em declínio e, como os jogadores adquiriam o jogo integral, a morte como mecânica deixa de ser obrigada a cumprir o papel de caça-níqueis. Em um primeiro momento, muito da estrutura antiga se mantém nos jogos posteriores[5], contudo isso passa a ser flexibilizado de várias formas, seja pela provisão de meios de conseguir múltiplas vidas dentro do jogo, seja por códigos “secretos” de trapaça (dando invulnerabilidade ou infinitas vidas), seja por permitir salvamento. Mas não foi essa a única transformação sofrida pela morte: dos anos 1990 até hoje, se preponderou a sua presença como ferramenta de game design entre pedagógica e punitiva – demonstrando ao jogador sua falta de habilidade e a necessidade de se aperfeiçoar e/ou de repensar estratégias –, tanto esse recurso foi aplicado de maneiras variadas quanto a morte tornou-se objeto estético, seja como espetáculo visual, seja como ocorrência de peso na narrativa, seja – mais recentemente – como tema e como experiência.
Percorramos um pouco essa pluralidade de usos. No que se tange à morte como cesura instrutiva e penosa do fluxo de jogo, é interessante como se desenvolve uma espécie de epistemologia que é própria dos games e em que é mais ou menos preciso morrer para saber. Uma das ocorrências disto é o tropo dos chefões em jogos como Donkey Kong (1981), Megaman (1987) ou Banjo-Kazooie (1998) – quando chegamos às batalhas com esses adversários mais fortes, que marcam a conclusão de uma etapa ou de todo o ciclo, o estilo de combate dos inimigos tem dois ou mais padrões, que são revelados de forma sucessiva; é preciso superar o primeiro para conhecer o posterior, que pode nos pegar muito desprevenidos. A cada contato com um padrão, morrermos, contudo, aprendemos algo. Um sucesso será a interligação dessas poucas ou muitas mortes (em Super Meat Boy [2010], isso é feito imagem: quando derrotamos uma fase, é exibido um replay que soma todas as nossas iterações, criando um cortejo de avatares sangrentos avançando e falhando, até que um deles vingue). Essa lógica não é muito diferente da que funciona na série Dark Souls, famosa pela dificuldade e por impor muitas mortes ao longo da curva de aprendizado. Não obstante, tanto essa franquia como o gênero inspirado por ela – o soulslike – mostram algo já diverso, a estratégia e a destreza como ideais, ligados ao valor pessoal de quem joga, pois que se supera. E é relevante, além disso, que a severidade de Dark Souls tenha sido gerada por uma vontade de valorizar a morte, como contou o criador da série, Hidetaka Miyazaki, em entrevista da New Yorker. Para ele,
a morte nos videogames é uma oportunidade de criar uma memória, ou trazer um arremate. “Quando estou jogando, eu penso, É assim que eu gostaria de morrer – de um jeito que é divertido ou interessante, e que cria uma história que eu posso compartilhar”, disse ele. “Morte e renascimento, tentativa e superação – nós queremos que esse ciclo seja deleitável. Na vida, a morte é uma coisa horrível. No jogo, pode ser outra coisa. (Parkin, 2022)
Entretanto – e talvez isso valha para Dark Souls, contra a intenção de Miyazaki – os inumeráveis óbitos nos jogos em geral causam também um embotamento: a morte teria se tornado uma rotina, a ponto de ter perdido todo “significado no que diz respeito ao luto, à perda ou a levar a morte a sério” (Boyd, 2021, p. 1) e seria tão banal que “jogos encorajam o sacrifício despreocupado do corpo do avatar em vista de experimentos e diversão” (Rest in Play..., 2021)[6]. Isto se liga à atração pela brutalidade e pelo gore. Com a capacidade gráfica expandida, a explosãozinha de Spacewar! ou o sucinto chomp! de Hunt the Wumpus deram lugar a cenas mais vistosas: “[...] a estética da morte se deslocou da negação de estímulo visual para se tornar um espetáculo em si própria” (Curtis, 2015). Contra essas tendências estão movimentos que referimos de passagem, ao menos três formas de valorizar a morte dentro dos games. A primeira é a de jogos em que morte de um personagem ou do protagonista-jogador é um acontecimento forte; destaco nesse sentido King’s Quest (2015), em que vivemos o rei desde a sua juventude, antes da coroa, e o acompanhamos, em sua pele, através da maturidade até a velhice. A segunda é a mecânica de permadeath (morte permanente), na qual jogamos com apenas uma vida. Há não só jogos com essa estrutura como alguns jogadores se autoimpõem essa limitação (um exemplo é Abraham, 2009). A terceira, por fim, é a de produções, em geral independentes, que tratam a morte com experiências imersivas e mecânicas criativas, abordando temas como o luto (Boyd, 2021 e Chittaro; Sione, 2018).
Sentidos do fracasso: posturas éticas, políticas e psicológicas
Toda essa história pode ser vista sob outra perspectiva: no que é específico às mecânicas de jogo, o que se mostra decisivo é não exatamente a morte, mas a interrupção do jogo e a imposição de algum custo ao jogador, senão monetário, de tempo, de investimento, de autoestima. A morte parece ser um caso particular – uma metáfora nem sempre subjetivamente evocada (nunca senti ter morrido ao capotar violentamente em Need for Speed III: Hot Pursuit [1998])[7] – de uma determinação mais geral, a qual é pensada por Juul (2013, p. 30) como um fundamento: “O fracasso nos games nos diz que somos falhos e deficientes. Nesse sentido, videogame é a arte do fracasso, a única forma de arte que nos predispõe ao fracasso e nos permite vivenciá-lo e experimentá-lo”. De fato, todo o livro citado – nomeado The art of failure – analisa como os jogos estruturam o fracasso e como o jogador o vive. O pesquisador extrai daí questões éticas, psicológicas e políticas.
Políticas, na medida em que aos três tipos de jogo – segundo a classificação usada por Juul (2013, p. 72-79), jogos de sorte (o jogador não influencia o resultado, aposta), de habilidade (nos quais treino, técnica e performance são decisivas) e de trabalho (em que a fatura se obtém meramente pelo investimento de tempo e cumprimento de tarefas) – correspondem ideais de justiça, dentro e fora da lógica dos jogos. Assim, diz-se ‘justo’ em significados orientados pela sorte (ter “chances iguais de vencer”), pela habilidade (ter premiadas as “destrezas pessoais”) e pelo trabalho (ter o mesmo resultado dado semelhante esforço), e esses teores seriam consonantes com ideologias: a primeira com o igualitarismo e o libertarianismo; a segunda com a meritocracia; a terceira com a ética protestante tal como estudada por Max Weber (Juul, 2013, p. 79 e p. 81). Psicológicas, já que a derrota no jogo revela uma “inadequação”[8], o que pode corroer a nossa autoimagem (pelo contrário, podemos “deflacionar” o valor da perda) e pode ocasionar uma procura por quem ou o que é responsável (Juul, 2013, p. 51). Esses processos podem ser vividos de modo positivo ou negativo, com os impactos mentais respectivos: diz Juul (idem) que “enxergar o fracasso do jeito errado pode abalar nossa crença na nossa competência e nos ensinar a se sentir sem esperança frente a desafios futuros” – o chamado desamparo aprendido. Agem igualmente mecanismos de anulação da falha, como o comportamento autolesivo, em que se causa preemptivamente os motivos do fracasso, tornando possível ignorar a avaliação; e o fracasso espetacular, em que são criados objetivos alternativos aos propostos e se pode buscar a falha (Juul, 2013, p. 63-64). Todos esses, também, podem ocorrer dentro e fora dos jogos. É por isso que
jogar é fazer uma aposta emocional. Quanto maiores os riscos em termos de tempo investido, reconhecimento público e importância pessoalmente atribuída, maiores os potenciais de perdas e ganhos. Fazemos estimativas dessa aposta bem por cima, calculando a probabilidade de fracasso junto ao investimento temporal requerido, a audiência que nossa performance terá e o nosso desejo pessoal de performar bem. (Juul, 2013, p. 57)
Enfim, éticas, pois acarretam posturas filosóficas: “Os jogos também são peculiares pelo fato de que as convenções em torno do ato de jogar são em si mesmas filosofias do sentido do fracasso. [...] Ser um mau perdedor é fazer uma afirmação filosófica concreta: de que o fracasso em jogos é francamente doloroso, sem nada para compensá-lo. [...] Em contraste com o mau perdedor, o desmancha-prazeres que joga um jogo sem se importar com ganhar ou perder afirma que o jogo não é nem um pouco doloroso” (Juul, 2013, p. 7 e p. 9). A decisão de como valorizar esse desafio e de como abrigar seus desdobramentos é uma decisão de modo de vida, por menos que “vaze” a atitudes extrajogo. E nela nos iniciamos cedo: “[...] a filosofia do fracasso é ensinada às crianças desde pequenas. Talvez: quando jogamos jogos, somos todos filósofos” (Juul, 2013, p. 43).
Forma específica dessa estrutura do fracasso, o que a morte recebe ou afasta dessas dimensões todas que o caracterizam? Podemos pensar que diante da morte jogada são mobilizadas também ideologias políticas, mecanismos psicológicos, posições filosóficas. Não é o objetivo deste artigo explorar essas correspondências, mas posso indicar algumas possibilidades. Quanto à política, é sintomática a passagem Botta (2011, p. 66-67), na qual a autora comenta Missile Command (1980), jogo de guerra inspirado pela ansiedade em torno de um conflito armado e que tem fatura antiguerra. Quanto à psicologia, McAllister e Ruggill (2018, p. 95) veem nos games instrumentos que servem para abafar a morte, análogos aos que havíamos visto agir para conter a ideia de ser falho. Enfim, nossas concepções sobre o que é morrer no jogo podem depender de uma concepção assumida por nós, como é o caso daquela dupla valoração do fracasso; um ir ao encontro filosófico nosso, em que podemos ser bons ou maus moribundos, em que absorvemos ou damos de ombros.
Quem morre sou eu: um elemento estético distintivo
Façamos agora um exercício de deathsetics – termo cunhado por Curtis (2005), união de “death” e “aesthetics”, que batiza “um engajamento estético com os afetos e a representação da morte virtual”, sendo que “a morte não é exclusiva dos jogos, mas há uma estética da morte particular produzida pela natureza imersiva do jogar” – ou um estudo de tanatoludismo. Vou focar no que me parece mais distintivo na relação jogos/morte: é que neles se morre em primeira pessoa.
Não morremos com os personagens da literatura ou do cinema. Podemos sofrer pela sua morte – por Macabéia atropelada, por Jack Dawson hipotérmico, por Baleia sonhando com um mundo de preás, por Anna Karenina sob as rodas do trem –, mas não morremos junto, assistimos ao seu falecimento, não nos misturamos a ele. Podemos incorporar a tragédia, refinar ou purgar nossas emoções na medida do conceito aristotélico de catarse; podemos nos projetar, exercitar a nossa empatia, “pôr-nos no lugar”, nos posicionar em relação às atitudes dos personagens (avaliando: o que eu faria nessa situação? Teria tomado essas decisões? Teria o mesmo destino?), deixar que se produza em nós um momento de elaboração ética. Mas temos os pés firmes no nosso próprio lugar, estamos em um ponto de vista, nunca coincidimos. Pelo contrário, sou eu quem morre, em decorrência das minhas escolhas, quando jogo Game of Thrones: A Telltale Games Series (2014): se Ned Stark degolado – demolindo minhas expectativas quanto ao gênero da fantasia, fundamentando esse mundo em particular em causas e consequências claras e duras – me feriu de imediato, ao passo em que ele me instruía em um pragmatismo cínico, todavia foi o seu sangue que correu; por outro lado, quando a espada passa pelo pescoço de Mirra Forrester, é minha cabeça que cai.
Esse é um recurso tão trivial e um acontecimento tão corriqueiro dos games que é fácil esquecer a sua particularidade. Contudo, mesmo entre as atividades lúdicas, esse elemento sobressai. Ao perder uma disputa de par ou ímpar, meramente constatamos a derrota; quando Mario é tocado por um inimigo ou cai em um buraco, afirmamos, em primeira pessoa: “Morri”. Por mais intensas que sejam as emoções resultantes de uma partida de futebol, e mesmo que alguns se disponham a matar e a morrer por isso, nem jogadores, nem torcida, nem equipe técnica se figurarão como mortos após a perda de um campeonato. No jogo de xadrez, sobrevoamos, deuses abscônditos, o tabuleiro, planejamos, acertamos, erramos, reagimos, nunca cobrimos nenhum desses verbos com uma pátina do “morrer”, embora o xadrez represente uma guerra; ademais, nenhuma peça morre: peões, bispos, torres, cavalos, rainha são capturados, e o rei cai em xeque-mate, sem que isso nos remeta a qualquer vivência concreta, seja a execução de Luís XVI na guilhotina, seja mais tranquilamente o degredo de Dom Pedro II[9]. Em oposição a isso, com meu Super Nintendo, meu Playstation e meu X-Box já morri incontáveis vezes: baleado por snipers, incinerado por dragões, despencando de montanhas e árvores, agonizando devido a venenos ou feridas mortais[10].
Claro, não é só nos jogos eletrônicos (meus exemplos até agora) que se pode vivenciar a morte. Nos RPGs de mesa, podem(os) morrer personagens longamente cultivados, entrelaçados, pouco ou muito, com a nossa personalidade, já que os criamos se aproximando ou se distanciando dela e os vivemos por dias, meses, até anos. Um exemplo mais compacto disso, o RPG Ten Candles (2015) se desdobra no momento de confronto com o morrer: os jogadores sabem que ninguém sobrevive ao fim da partida; apagam as luzes, acendem velas e, a cada uma que se apaga, um deles deve narrar a morte do seu personagem, que, ora, não é a sua? (Saint-Croix; Nguyen, 2023). Podemos citar até um caso singelo: na brincadeira de Detetive, há assassinos, policiais e vítimas, e dizemos também: “Morri”. Se há particularidade no uso da morte pelos games, não há excepcionalidade, e o que há de particular pode ser compartilhado, gerando uma categorização outra, não focada nas mídias, mas em como esse tropo se efetiva: com que textura, com que efeito se morre? Cada variação nessas respostas pode produzir diálogos entre os itens referidos e outros possíveis, tais como obras do tipo escolha-sua-aventura, filmes interativos, textos em segunda pessoa etc.
Por duas vezes enfatizei aquela declinação pessoalíssima[11] de “morrer”; creio que há relevo no fato de haver um âmbito em que se exprimir desse jeito tenha se tornado prosaico. Retraímo-nos diante da representação da nossa própria morte, frases como “quando eu morrer”, “quando eu estiver morto” teriam certa solenidade. E, no entanto, ao jogar, brandimos, sem perturbação, essa figura. Dir-se-á que a resposta para isso é simples: apesar da minha retórica, não morri em quaisquer das vezes que o personagem na tela morreu. Mas o arranhão no tabu em torno dessa palavra e, principalmente, a identificação, mesmo que mínima, com a queda, não são nulos, têm alguma consistência, e evocam pelo menos duas boas questões: o que significa controlar ou estar no corpo de um avatar? E: como se constitui o eu que morre quando morremos nos jogos?
Quem morre é o outro? O jogador como multiplicidade
A história de como o termo “avatar” – que, em sânscrito, significa “descida” e, no hinduísmo, se refere às encarnações de uma divindade – é integrado ao contexto da literatura, da cultura pop, da tecnologia e dos games é curiosa: aparece na língua inglesa em 1784; recebe novos sentidos no século seguinte, sendo usado para quem ou o que fosse considerado como a instanciação de algum poder ou princípio (em 1815, Napoleão Bonaparte é dito um “avatar do espírito civil”), ou ainda meramente como “objeto de culto”; e, nas últimas décadas do século XX, passa a denotar os sujeitos feitos de bits pelos quais encarnamos nas realidades virtuais. É na literatura de ficção científica que se encontra o primeiro registro desse significado – em Songs from the stars (1980), de Norman Spinrad; na mesma década, dois RPGs para computador também o utilizam: Ultima IV (1985) e Habitat (1986)[12]. Já em 1992, outro romance, Snow Crash, de Neal Stephenson, aplica o termo para corpos digitais (todo o parágrafo, Britt, 2008; Paez, 2020; e Avatar, 2023).
Diante dessa trajetória, talvez tenhamos analisado de menos o que significa que nos atribuamos a capacidade de ter avatares: isso não nos caracteriza como pertencentes a uma realidade superior, não diz que agora podemos viver por procuração como um deus ou um transcendental? Que sentidos “mais profundos” impregnam a palavra vê-se em falas dos criadores dos pioneiros, entre os games, em usá-la: um autor de Habitat afirmou que “o avatar era a encarnação de uma divindade, o jogador, no mundo on-line. Nós gostávamos da ideia de um mestre de marionetes controlando o seu boneco” (Paez, 2020, grifo nosso). Já o desenvolvedor de Ultima declarou que desejava apresentar “dilemas morais e desafios éticos” ao jogador, e em textos hindus encontrou uma referência útil: “[Neles], o avatar era a manifestação física de um deus quando ele descia à Terra. Era perfeito, porque de verdade eu estava tentando testar seu espírito” (idem). É revelador que ambas essas concepções se efetivem mais ou menos concomitantes: desde sempre, o avatar parece oscilar entre uma janela à outra vida e um alheamento, um brinquedo de poder.
E em um game, essa não é a única binariedade que se disponibiliza. Discutindo os desníveis entre jogador e avatar, Botta (2011, p. 60) afirma que aí se exibe “a duplicidade ambígua da identidade do jogador. O jogador está presente em dois lugares ao mesmo tempo, o mundo físico dos botões e do monitor e o mundo virtual atrás do monitor”; ainda mais, estamos mais em um ou mais em outro, e vice-versa, instantaneamente, de acordo com o momento: transitamos entre pronomes, eu, você, ele (Botta, 2011, p. 59 também o percebe), situando-nos de maneira distinta na mesma experiência. Esse movimento parece ser tanto condicionado pelos jogos quando dependente da vontade do jogador: é nesse eixo que qualquer acontecimento intrajogo tem ou não a chance de receber valor e significado, ou de ser ou não vinculado a uma vivência. Isso fica em aberto.
Que haja neles essa possibilidade, contudo, faz com que os jogos toquem em uma problemática filosófica que visitamos com Gilberto Gil e Epicuro: podemos conceber nossa própria morte? Em Benn (1993, p. 236), essa dificuldade é delineada nos seguintes termos:
[...] é simples porque se poderia pensar que ninguém pode conceber a própria morte. Pois não há nada igual a estar morto. Há algo afim ao testemunho que os outros terão da minha morte, claro. Mas estamos nos questionando se eu posso conceber o que é, para mim, estar morto. Parece que, se ter uma tal concepção exige alguma experiência do estar morto, então ela é impossível.
O artigo procura apresentar os aspectos dessa posição e demonstrar que é infundada. O motivo do seu funcionamento, entretanto, é que nos prendemos ao ponto de vista em primeira pessoa e a um apego por quem somos. Assim, embora seja possível, ao imaginar nosso fim, adotar uma “perspectiva em terceira pessoa, enxergando-o como um evento insignificante, indistinguível de outras mortes” (Benn, 1993, p. 238), essa ótica se choca com a nossa vivência de sermos alguém, um eu com uma realidade própria, irredutível: “Não sou apresentado a mim mesmo como uma coisa no mundo, em vez disso, ocupo uma perspectiva no mundo. Conceber a mim mesmo como um item contingente no mundo implica ter o conceito de um mundo sem tal item; e é isto o que não é possível de um ponto de vista em primeira pessoa” (Benn, 1993, p. 246-247)[13]. O artigo se encerra, não obstante, com a proposta de que não há aí tensão indissolúvel: Benn (1993, p. 250) apresenta uma questão que não responde – “O que se quer dizer exatamente com ‘harmonizar’ as perspectivas em primeira e terceira pessoa?” –, mas da qual antecipa as condições de solução, negando haver conflito entre esses modos de ver ou contradição entre as suas asserções.
Ora, talvez possamos contribuir com uma resposta oblíqua a essa pergunta, pois os videogames realizam algo dessa harmonização vislumbrada. Mais ainda, nos permitem exercitá-la, conforme alternamos entre primeira e terceira pessoa[14]; conforme ocupamos o centro de um mundo e ao mesmo tempo estamos fora dele; conforme vemo-nos existir e deixar de existir.
Ver-se morrer: três memórias póstumas de um jogador
“Os games são significativos não simplesmente porque representam tragédias, mas, de vez em quando, por criar tragédias pessoais e concretas”, comenta Juul (2013, p. 20). De fato, nos jogos, entram em jogo (é significativa essa expressão: “entrar em jogo”, o jogo como aquilo que agrega o que faz diferença, o que se ativa) estruturas psicológicas, sociais, éticas, políticas que agem de modo mais ou menos intenso. Ver a morte do avatar – contemplar-se morto – me parece ser um acontecimento dos mais potentes nesse sentido, dadas certas condições e disposições. Formam também o que Botta (2011, p. 52-54), chama de micronarrativas, pequenos momentos incluídos, até de passagem, em uma história, mas com alto impacto afetivo. Noutro trecho da dissertação, aliás, ela demonstra como isso é factível: “Consigo me lembrar de pelo menos dois instantes, um durante Mirror’s Edge e outro em Shadow of the Colossus, nos quais instintivamente fechei meus olhos e me encolhi enquanto meus avatares iam de encontro à morte” (Botta, 2011, p. 60).
Falávamos antes das texturas do ato de morrer, dos efeitos diversos que podem ter essas frações de experiência de jogo segundo a forma como sejam construídas. Quero examinar agora algumas dessas instâncias, com uma seleção a um passo subjetiva e parcialmente polêmica. Por um lado, disputo a tese de insignificância das mortes lúdicas, gerada pelo fato de serem muito numerosas e pelo teor de entretenimento e frivolidade em que se inscrevem; defendo que até os jogos sem “pretensões filosóficas” – não somente os jogos sérios, ou persuasivos, ou de jogo crítico (Boyd, 2021, p. 24-30)[15] – podem proporcionar vivências interessantes nesse sentido. Por outro, escolho falar de jogos em que morri eu mesmo muitas vezes, falando, assim, em primeira pessoa.
O primeiro deles é Ultimate Mortal Kombat 3 (1995), o que é contraintuitivo, já que a série Mortal Kombat, de jogos de luta, é um exemplo por excelência da espetacularização da violência (para um relato sobre o seu desenvolvimento e as reações ao seu estilo, cf. Hora, 2020). Mas nisso em que o jogo nos deixa suspensos dentro da contemplação da nossa morte há algo produtivo. É o que se dá no ápice do show de brutalidade, as fatalities, finalizações extremamente cruéis do adversário que são uma marca da franquia: só posso olhar enquanto o inimigo cospe gosma ácida e me deixa em carne viva; ou me eletrocuta, me incinera, me degola, me fatia, me empala, me explode, arranca meu esqueleto inteiriço pela boca, separa minha alma do corpo com um grito monstruoso[16]. Meramente assistir a essas cenas não produz o efeito que pretendo isolar. É apenas na situação em que o breve vínculo que tenho com esse avatar ainda não se rompeu que a tortura aplicada a ele me pega como um miasma.
Ademais, o esquema micronarrativo das fatalities faz com que a morte tenha uma duração. Nem bem processei a derrota, vejo que a tela se escureceu e sei que isso prepara uma das finalizações especiais. Minha agência pausa, me resta contemplar: por alguns segundos, estou morrendo.
É outra a colocação temporal em jogos como Assassins Creed: Origins (2017), Dino Crisis (1999) e Rei Leão (1994), que usam todos um mesmo tropo: durante o game over, é enfocada uma cena do corpo morto do avatar. Assim, vejo meu corpo cravado de flechas, contorcido sobre as areias do deserto, vejo a congregação dos velociraptors em torno do meu cadáver, vejo a minha carcaça de leão humilhada. Estou morto: a duração, aqui, é tensa, feita em música, uma dissonância que não chega a ter solução. Sou extraído da primeira pessoa e trancafiado na terceira pessoa, deixei de ser agente, tornei-me objeto. A cena é quase muda, pois seus parcos elementos evocam uma gama de afetos: ver Simba caído pode trazer tristeza se temos uma relação com o filme em que o jogo se inspira; Regina rodeada de predadores transmite vulnerabilidade, com o corpo humano prestes a ser feito de pasto; e Bayek assassinado, visualizado por uma câmera inusual no jogo, é inerte demais, como um saco de carne – passa um desagrado, um tipo de nojo.
Há uma variante em Batman: Arkham Knight (2015), que, quando morremos, nos confronta com o escárnio dos vilões. A câmera muda de terceira pessoa para primeira pessoa, e exibe um deles, de pé, sendo que estamos presumivelmente no chão e os vemos de baixo. Coringa, Duas-Caras, Arlequina, mesmo os bandidos sem nome que infestam Gotham na noite em que se passa o jogo – todos nos legam últimas palavras, provocam e desprezam, comentam nossa fraqueza. Insinua-se nisso o que será o mundo sem o heroi – sem mim: não apenas a cidade estará à mercê desses criminosos, como a imagem de mim, a verdade sobre o que fui no fim das contas, tem sua versão final dada por eles. O eu especialíssimo, dono de um mundo, evidencia-se frágil[17].
É evidente que nenhuma dessas descrições precisa valer para todos. Mostrei percepções minhas, na verdade mesmo indo além delas: jogando, só contemplei o avatar, que há pouco me absorvia, em quem eu me misturava, morto – e “não pensei nada”. Para produzir o discurso acima, tive de destrinchar esse “não-pensamento”. Mas apesar do viés tão pessoal dessa leitura – o que talvez seja forçoso no que se refere ao estudo dos videogames (Botta, 2011, p. 69-70) –, que o percurso realizado possa servir para incentivar explorações semelhantes é um dos objetivos deste texto. Os sentidos e os impactos da morte jogada parecem muito efêmeros[18], somem sem deixar rastro se não sabemos capturá-los, guardá-los na mão, para perguntar o que teriam nos ensinado.
Para continuar, insira uma moeda: que fim tem uma morte de jogo?
A acreditar na argumentação deste artigo, morrer em um jogo, pelos enraizamentos que possui, teria consequências bem concretas, embora possivelmente latentes. Na medida em que figuram uma inaptidão nossa, mobilizariam o “[...] desejo de proteger nossa autoestima”, armando uma espécie de barreira ética, pois “o truque básico do aprendizado e do aperfeiçoamento é aceitar a resposta dolorosa (a culpa é minha, uma falha tendo em vista quem eu quero ser) de modo a que nos motivemos para nos tornar quem queremos ser. É assim que cada tentativa, vez a vez, de evitar o fracasso têm significado existencial para nós” (Juul, 2013, p. 67).
Nossa identidade está em jogo quando jogamos. E isso não é tudo: os jogos estariam colocados não só no bojo de concepções políticas e éticas – e nossa postura frente a eles revelaria já nossa filosofia do fracasso –, mas também remeteriam a estruturas psicológicas arcaicas: nossa mente primata suprimida, nosso medo da morte subliminar. Neles haveria a ocasião de atuar, por meios indiretos, sobre essas fontes de afeto, com resultados factuais, já que
[…] o jogo como um evento paródico com inversão e ironia oferece diversão e excitamento e dessa forma constitui uma forma alternativa de realidade [...]. Que essa forma alternativa seja uma virtualidade adaptativa significa que jogar o jogo é tão bom quanto, ou melhor que, viver realmente. Isso significa que, no jogo, as inanidades, o caos, ou a mortalidade da vida cotidiana podem ser transcendidos ao menos temporariamente e isso pode ser adaptativo por fazer com que o restante da vida valha a pena ser vivido, mesmo que de costume ele não mereça essa ajuda. (Sutton-Smith, 2003, p. 15)[19]
Seja como for (e resistindo à posição de retrucar que, às vezes, um charuto é só um charuto, que estamos apenas jogando), circunscreve-se, ao menos, a possibilidade de o jogo prover vivências mais fundas do que se esperaria. Para terminar, quero acrescentar uma camada a essa ideia.
Dialogando com a filosofia helenística, talvez possamos considerar essa finitude de videogame como formas de meditação sobre a morte. Foucault (2018, p. 429-432) remonta essa prática aos pitagóricos e a Platão e estuda a sua manifestação específica entre os estoicos. Neles, ela se põe como um meio de interromper o fluxo da vida, provendo tanto uma visão de sobrevoo que dê o correto valor das nossas atividades atuais como uma percepção de conjunto da nossa vida. Para tal, podemos por exemplo representar no dia o período de toda a vida, e viver o ocaso como fim do que somos. Esse procedimento não se exaure em reflexão, pede colocação em ato, realiza-se como prática, pois, descreve Foucault (2018, p. 319), a meditatio envolve uma
[...] experiência de identificação. Quero com isso dizer que na meditatio trata-se não tanto de pensar na própria coisa, mas de exercitar-se na coisa em que se pensa. [...] Meditar sobre a morte (meditari, meletân), no sentido em que os latinos e os gregos entendiam, não significa pensar que se vai morrer. Nem mesmo significa convencer-se de que se vai efetivamente morrer. Não é associar à ideia da morte algumas outras ideias que dela decorrerão etc. Meditar sobre a morte é pôr-se a si mesmo, pelo pensamento, na situação de alguém que está morrendo, que vai morrer, ou que está vivendo seus últimos dias. A meditação não é, pois, um jogo do sujeito com o objeto ou os objetos possíveis do seu pensamento. [...] Trata-se de um tipo bem diferente de jogo: não mais jogo do sujeito com seu próprio pensamento ou seus próprios pensamentos, mas jogo efetuado pelo pensamento sobre o próprio sujeito.
É marcante que Foucault utilize aqui o termo “jogo” para designar a relação que o sujeito dispõe para si mesmo com a situação de morte. Seria preciso situar adequadamente como tal conceito surge na sua obra, mas se entende como pode funcionar: a meditação se destaca da vida “real”, postula regras novas, estabiliza uma simulação, produz, por meio de artifícios, efeitos relevantes. Portanto, é plausível afirmar que os estoicos jogam (apreciariam eles Mortal Kombat 3, Batman: Arkham Knight e Dino Crisis?) e, saltando desde aí, propor que se, como Montaigne (1996, p. 92) formula com base no helenismo, filosofar é aprender a morrer, jogar videogame é filosofar.
Referências
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[1] Ou, mais provável, o contrário: pode ser exequível construir uma leitura de Gil como epicurista. Algumas passagens de “Não tenho medo da morte”, a canção citada, parecem reproduzir a Carta sobre a felicidade (a Meneceu), onde se lê: “[...] o mais terrível de todos os males, a morte, não significa nada para nós, justamente porque, quando estamos vivos, é a morte que não está presente; ao contrário, quando a morte está presente, nós é que não estamos” (Epicuro, 2002, p. 29). Porém, o filósofo não distingue o “morrer” como o músico, e talvez o repreendesse por temê-lo também: “Não existe nada de terrível na vida para quem está perfeitamente convencido de que não há nada terrível em deixar de viver. É tolo portanto quem diz ter medo da morte, não porque a chegada desta lhe trará sofrimento, mas porque o aflige a própria espera: aquilo que não nos perturba quando presente não deveria afligir-nos enquanto está sendo esperado (idem). Gil, entretanto, poderia contrapor, como interpretamos, que a morte nunca é antecipada.
[2] Todas as citações de fontes estrangeiras nesse texto tiveram tradução minha.
[3] Não poderia a própria filosofia ser incluída entre essas formas de jogo? O diálogo por meio de linguagens cultivadas e os grupos fechados a aproximariam da tristeza; competições acadêmicas, declaradas ou não e por vezes ritualizadas – como no caso da disputatio medieval – a classificariam na raiva. A filosofia como modo de vida, a procura por outras versões de nós mesmos, a ampliação do pensamento pela escrita ou pelo pensamento seriam frutos da alegria.
[4] Agradeço ao parecerista por ressaltar nessa história de popularização o Atari 2600 (1977), pelo qual saíram jogos antes presentes nos arcades como Space Invaders (1978), Pac-man (1980) e Missile Command (1980, citado abaixo).
[5] Botta (2011, p. 16) comenta que o abandono da “regra de três vidas” foi um processo lento. É interessante também quando ela nota que não se sabe bem por que essa convenção estabeleceu desde os arcades e se fez vir aos consoles – cita como possível explicação que esse esquema fora apropriado de carnival games, brincadeiras de circo ou parques de diversão, como tiro ao alvo, pescaria, nos quais se tem três chances. Esse aparte é sugestivo: mostra como houve intercâmbio de recursos entre analógico e digital, tradicional e moderno, e, ainda, deixa uma questão: como chances se transformaram em vidas? A consolidação dessa metáfora pode merecer uma pequena genealogia.
[6] Wong (2015) discute essa banalização com alguns exemplos, em um texto que é também interessante por ressaltar os impactos, no nível da mecânica, de como vidas são disponibilizadas: "Quando vidas extras são uma mercadoria preciosa, isso muda toda a abordagem que o jogador tem do jogo. [...] A avaliação do risco foi sempre uma grande parte do metajogo em títulos desse tipo". Vemos, um jogo pode ou não pôr a dificuldade de lidar com o arriscado.
[7] É algo a se discutir. Botta (2011, p. 17) defende que a morte é mais generalizável, devido ao caráter não-realista dos games: “Os variáveis graus de fidelidade das simulações podem também ajudar a explicar porque assumimos que um personagem morre mesmo quando isso não é dito explicitamente. Na medida em que aceitamos que os games são aspectos estilizados de alguma coisa, também podemos aceitar que algo desaparecer do mundo, não estar mais lá, é uma simplificação extrema do morrer. Nós assumimos que a simulação realista de atirar em um monstro com uma arma em Doom, a pequenina e mais impessoal explosão de uma nave espacial no Space Invaders, e o Mario pulando na cabeça de um inimigo que em seguida desaparece são diferentes níveis de estilização da mesma coisa”.
[8] É interessante que Juul (2013, p. 20-21) use essa categoria para separar o joio do trigo dos games: “É uma questão que podemos fazer a qualquer jogo: este jogo expõe inadequações importantes nossas ou apenas gera inadequações artificiais e irrelevantes? Se um jogo expõe inadequações existentes, então devemos recear como ele revela nossas deficiências escondidas. Se, pelo contrário, cria inadequações novas [...], é fácil dar de ombros diante dele”.
[9] Botta (2011, p. 9, nota 5) também repara nessa diferença em relação ao xadrez, mas não se pergunta por que é que isso se passa, por que eu jamais sou minhas peças, mesmo estando intelectual e fisicamente envolvido com elas, não muito diferente da situação em que estamos quando lidamos com um avatar digital.
[10] Considero sintomático que me tenha ocorrido descrever minhas mortes como abertura deste texto antes que tivesse lido Curtis (2015), que se inicia assim: "Nunca vou esquecer a primeira vez que morri. Eu tinha oito anos e, depois de um bombardeio bem-sucedido em território inimigo, fiquei sem combustível para voltar ao porta-aviões. Desde esse primeiro acontecimento fatal em Harrier Attack (1983), jogado em um Amstrad CPC464, morri incontáveis vezes, de quase todas as formas concebíveis". Que, além da ideia, a forma – uma enumeração das mortes, com um certo prazer pelos detalhes brutais (o autor fala também de sermos “comidos por um monstro, ou termos o nosso rosto derretido pelo vômito ácido de um necromorfo”), e a linguagem (por exemplo, o uso de uma mesma expressão para dar ênfase ao caráter inumerável dessas situações) sejam similares indica, para mim, algo fundo, uma experiência compartilhada (isso, salvo a possibilidade de eu ter, voluntária ou involuntariamente, plagiado Curtis). Talvez nós, jogadores, vivamos contra o pano de fundo de todos os nossos debacles, todas essas mortezinhas como um solo arenoso sob os pés.
[11] Sobre essa qualificação, remetemos a Juul (2013, p. 90): “[…] jogos são sempre pessoais; apenas o design de games tem múltiplas formas de fazer com que um jogo seja pessoal. Habilidade, trabalho e sorte podem fazer com que nos sintamos falhos de muitas formas. Objetivos transitórios, completáveis ou de aperfeiçoamento [contínuo] distribuem nossas falhas, nossos fracassos e sucessos de maneiras variadas através das nossas vidas”.
[12] Dois apartes. Primeiro: de fato, o jogo que inaugura o uso dessa palavra parece ter sido Avatar (1979); contudo, não há indicativo de que o conceito tenha sido exposto ou aprofundado pelo game. Segundo: salvo engano, são quatro as vezes em que Spinraz utiliza o termo “avatar”; nas primeiras três, o sentido é aquele já antigo, de manifestação física de um poder, já na última se configura a ideia de estar presente em um mundo virtual. É curioso que a palavra tenha sido usada não como substantivo, mas como verbo: “You stand in a throng of multifleshed being, mind avatared in all its matter, on a broad avenue winding through a city of blue trees with bright red foliage and living buildings growing from the soil in a multitude of forms” (Spinrad, 1981, p. 247, grifo nosso). Uma leitura atenta do livro poderia procurar compreender como essa nova aplicação se cria a partir de um deslocamento da semântica antes estabelecida.
[13] O filósofo também argumenta que outra causa de confusão adviria da crença de que, para conceber a minha morte, eu estaria incluído como testemunha nessa concepção, o que não seria necessário: “Se posso entender o que é uma situação que existe despercebida, eu posso entender o que é um mundo que continua sem mim” (Benn, 1993, p. 247).
[14] Aqui e abaixo, uso “primeira pessoa” e “terceira pessoa” para designar circunstâncias do jogador, não disposições de câmera. Nos games, é usual se falar de “primeira pessoa” para o que no cinema se chama câmera subjetiva, e de “terceira pessoa” para visualizações à distância do avatar. O sentido que utilizo é próximo a Benn (1993): com primeira pessoa, indicamos o jogador posicionado como agente no mundo do jogo por meio do avatar; com terceira pessoa, o jogador apartado do avatar, a leve identificação que havia entre eles tendo sido quebrada por qualquer motivo.
[15] Há diversas análises de jogos que abordam a morte de modo crítico e/ou artístico: Boyd (2021) estuda That Dragon, Cancer (2016), Spiritfarer (2020) e A Mortician’s Tale (2017); Chittaro e Sioni (2018) comentam That Dragon, Cancer, The Graveyard (2008), One Chance (2010), Drowning in Problems (2014), The End of Us (2011) e Every Day the Same Dream (2009), além de um jogo de criação própria, Existence, o qual submeteram a uma pesquisa qualitativa; a série “Rest in Play: Exploring Death in Videogames”, do site A Good Death, tem artigos sobre What Remains of Edith Finch (2017), Brothers: A Tale of Two Sons (2013), Spiritfarer e Gris (2018) – cf. Reay (2021a, 2021b, 2021c e 2021d).
[16] Descrevo passagens de Ultimate Mortal Kombat III, mas as fatalities existem até nas edições mais recentes.
[17] Curtis (2015) chega a considerar que “o efeito emocional de ver o personagem morrer pode ser lido nos termos do clássico entendimento de Aristóteles sobre os efeitos positivos da tragédia sobre o espectador”, porém parece preferir um ponto de vista que diverge um pouco da nossa última frase: “[...] em vez de uma liberação catártica de emoções, a morte do avatar confirma ativamente a integralidade da identidade do jogador. Essa estética da morte existencial parte da necessária identificação entre jogador e avatar e a reformula em uma asserção violenta de autodefinição”.
[18] Em Sutton-Smith (2003, p. 13), há uma possível explicação para isso: “[...] pode-se especular que a razão para que essas bases dialéticas do jogo nunca tenham sido tratadas seriamente é que o próprio jogo é uma proteção contra um tal reconhecimento. As vulnerabilidades emocionais, que são a essência do jogo, são escondidas dos jogadores pelas regras, pela ética do jogo e pela sua própria mestria inversiva. Assim, o jogo não serve somente para representar essas vulnerabilidades, mas também para trazer proteção contra elas mascarando a sua relevância”.
[19] Sutton-Smith (2003, p. 15) também supõe “que os indivíduos que joguem com mais frequência serão mais capazes de controlar suas vidas emocionais em termos das capacidades para performance estratégica, coragem, resiliência, imaginação, sociabilidade e carisma” – o que não é tão plausível; mas lembremos do sentido lato de jogo que usa.
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