Os deslocamentos conceituais de jogo em Byung-Chul Han


 

Os deslocamentos conceituais de jogo em Byung-Chul Han

 

 

 

PDF

Alan Isaac Mendes Caballero

 

Pedagogo (2017) e Mestre em Educação (2020), ambos pela Faculdade de Educação da UNICAMP. Desenvolveu temas para o pensamento educacional associados às Filosofias da Diferença, Políticas Públicas e Teorias de Gênero, sendo a Estética um interesse recente de investigação. Atualmente, não possui vínculos institucionais formais.

 

Resumo: O presente artigo consiste em um comentário filosófico à conceituação de jogo na obra de Byung-Chul Han. Quer-se mostrar o percurso de uma noção vulgar na filosofia e nas ciências humanas, passando por seus deslocamentos conceituais, até alcançar a forma de conceito na fase mais recente da obra do autor. Para isto, usamos algumas traduções em português e espanhol de suas obras. Tentou-se contornar as limitações idiomáticas pela consulta de referências fundamentais ao pensamento haniano na língua original, o alemão (Kant, 1922; 2004; Hegel, 1987; Heidegger, 1967; 2012). Somente Huizinga (2000) e Bataille (2015) são referências desacompanhadas de sua duplicação em alemão, pois jogo é tema central nas respectivas obras. Em conclusão, a partir da literatura elencada, jogo pode ser considerado: a) um processo mental na combinação de ideias e; b) gerador de sentimentos de prazer, além de; c) um processo de mediação linguística com o mundo factual. Em Han (2018b [2014]; 2020a [2019]), jogo ganha a forma de conceito sem definição precisa, mas diferencia-se por oposição ao trabalho, à seriedade, à submissão e ao capital. Com o fenômeno da gamificação, Han (2020a [2019]) divide o jogo em forte e fraco, o qual identifica a luta do senhor e do escravo, respectivamente, ao jogador soberano e ao jogador dominado pelo capital.

Palavras-chave: Byung-Chul Han; homo ludens; jogo; jogador; gamificação.

 

Abstract: The present article consists in a philosophical commentary to the conceptualization of game in the Byung-Chul Han’s work. It is wanted to show the path of a vulgar notion in philosophy and social sciences, going through thematic figurations, until reach the form of central concept in the author work. For this, we used some translations in Portuguese and Spanish of work. It is tried to avoid the idiomatic limitations by the consult of fundamental references to the hanian thought in the original language, the German (Kant, 1922; 2004; Hegel, 1987; Heidegger, 1967; 2012). Just Huizinga (2000) and Bataille (2015) are references unaccompanied by their duplications in German because game in as central theme in these works. In conclusion, game is traditionally considered: a) a mental process in the combination of ideas and; b) generator of pleasure feeling, moreover; c) a linguistic mediation process with the factual world. In Han (2018b [2014]; 2020a [2019]), game assumes the concept form without precise definition, however it is differentiated by opposition to labor, seriousness, submission and capital. With the gamification phenomenon, Han (2020a [2019]) splits game in strong and weak, which identifies the master-slave struggle, respectively, to the sovereign player and the dominated player by the capital.

Keywords: Byung-Chul Han; homo ludens; game; player; gamification.

 

Introdução

            A palavra jogo (Spiel, no alemão), tanto em Byung-Chul Han como na filosofia e nas ciências sociais, participa do vernáculo por senso comum e expressões linguísticas para conectar ideias e colorir argumentos, e em alguns casos admite a forma de um conceito. Jogo nem sempre foi um tema  de destaque em Byung-Chul Han, mas em No enxame (2018a [2013])[1], já se fermentava a questão pela recorrência de um homo ludens - o gênero humano do jogador – no texto. Em obra posterior, Psicopolítica (2018b [2014]), jogo assume nítida centralidade em como o pensador contemporâneo percebe os mecanismos de controle do neoliberalismo e as mudanças culturais da pós-modernidade. Isto se mantém em Bom entretenimento (2019b [2018]) e A desaparição dos rituais (2020a [2019]). Este processo também é percebido por jornalistas como Fanjul (2021), que questionam o filósofo sobre jogos, lazer e o homo ludens na atualidade.

            A partir desses achados, pretende-se percorrer um comentário filosófico para discutir os usos e as transformações da palavra jogo em Byung-Chul Han, desde obras iniciais até suas conceituações mais recentes. Para isto, usamos algumas traduções em português e espanhol disponíveis na internet para a elaboração do comentário[2] e livros físicos das editoras Herder (Espanha), Vozes (Brasil) e Ayinê (Portugal). Os originais em alemão, de difícil acesso online e a uma pesquisa sem financiamento como esta, apresentam uma limitação inicial ao estudo, mas se tentou contornar este problema pela consulta de referências fundamentais ao pensamento haniano na língua original, o alemão (Kant, 1922; 2004; Hegel, 2002; Heidegger, 1967; 2012). Sendo Huizinga (2000) e Bataille (2015) referências desacompanhadas de sua duplicação em alemão, pois jogo é tema central nas respectivas obras.

Para algumas/alguns autoras/es, o belo é principal componente da estética e não requer o jogo como processo ou elemento explicativo de fenômenos sociais (Taylor, 2017; Carrascoza, 2020; Cabuya, 2021; Cannielo; Souza, 2022), outras vezes o jogo facilita a captura de subjetividades pelo neoliberalismo (Ribas, 2020; Schmidt et al., 2020). Sabe-se, com Espinosa et al. (2018) - ainda que jogo ou estética não sejam suas  preocupações críticas -, o quanto Byung-Chul Han, desde seu best-seller Sociedade do Cansaço (2017a), é reconhecidamente controverso, contraditório e insuficiente ao nível da teoria, seja por suas posições categórico-apocalípticas ou propostas sem materialidade política na resistência a uma era informatizada de conformidade reflexiva. Embora a conceituação de jogo não resolva os imbróglios políticos, estéticos e materiais de uma vez por todas, permite um fio narrativo alternativo. Argumenta-se aqui pela possibilidade de reencontrar os horizontes de resistência ao capital na noção de jogo, cuja mediação proporcionaria ação social, estruturas de mediação psíquicas e ainda uma comunicação entre o espaço vazio da criação e a densidade da cultura. 

Interface gráfica do usuário, Aplicativo

Descrição gerada automaticamente

 

A finalidade racional do jogo

            Uma das primeiras aparições de jogo em Byung-Chul Han está em Morte e alteridade (2020b [2002]), mas aparece como expressão indicativa de um processo mental necessário para que o pensamento alcance a razão. Nesse meandro, Han (2020b [2002]) está em diálogo com a filosofia de Immanuel Kant, mas sem acordo aparente, já que ela estabelece uma finalidade para o jogo contrária ao divertimento.

            Em Kant (2004; 1922), o jogo se insere em sua teoria do conhecimento para desenvolver a razão. Seja ao mencionar as expressões “jogo da imaginação [Spiele der Einbildung]”, “jogar com ideias [Idee spielen]” ou “jogar com pensamentos [Gedanken spielen]” (Kant, 2004, on-line), admite-se no sujeito o movimento, o choque e a junção de representações mentais como processos epistêmicos do pensamento. Observa-se, ainda, a aparição do jogo nas faculdades cognoscitivas por um “efeito da sensação”, o que sugere um sentimento de divertimento entre a imaginação e a razão na produção lúdica do conhecimento; ação livre e desinteressada das representações entre si, ocasionando satisfação, prazer e regozijo ao ser pensante. Tal animação, contudo, não é para Kant (2004) sinônimo de razão, pois como bem ensina Han (2020b [2002]), o filósofo alemão não é dado a animar a sensibilidade, pois ela se desvia da razão.

            Veja-se, apesar da enorme presença da expressão jogo (Spiel) no desenvolvimento do conhecimento, como ele se distancia do ideal de verdade: em Kant (1922), o jogo possui um aspecto dissimulador da razão na medida em que o jogo de representações conduz a consciência ao engano sobre a própria realidade em que habita o sujeito, ou seja, o jogo pode transformar a realidade em ficção, o que significa uma preocupação gigantesca ao pensamento de Kant (2004). Seguindo essa chave de leitura, seria possível a um indivíduo “jogar como juiz [Richter zu spielen]” quando o objeto de seu gosto e as ideias por ele concebidas não são reconhecidas por outras pessoas de igual modo (Kant, 1922, on-line), o que faz prevalecer o sentimento subjetivo e candente de sua experiência frente a outras possibilidades e, quem sabe, da experiência suprassensível do sublime.

Com efeito, a dissimulação ficcional do jogo é preterida por Kant (2007) pela possibilidade comparativa entre representações, isto é, um mínimo de objetividade ao lidar com as sensações, o que deve suscitar um movimento equilibrado do pensamento a um fim: a razão. Assim, a espontaneidade do jogo, enquanto processo mental, permite às sensações adquiridas com a experiência divertirem-se entre si por meio de combinações livres, sem a pretensão de aniquilar a “sensação estética” no “jogo subjetivo das próprias potências emocionais [subjektive Spiel der Gemutskräfte]” do sujeito (Kant, 1922, on-line). Entende-se, por sua vez, que Kant (2007) enaltece o jogo das faculdades cognitivas, desde que proporcione iluminação ao jogo da imaginação com o entendimento: “somente onde a imaginação desperta o intelecto em sua liberdade e este, sem conceitos, põe a imaginação em jogo livre, se divide a ideia, não como um pensamento, mas sim como um sentimento interior de um estado mental com propósito” (Kant, 2007, p. 125, tradução minha).

            Em Kant (1922), a estética supera a mera permissividade do jogo desinteressado, ela acompanha o sujeito com uma orientação, um “propósito”, um movimento dirigido moralmente. Quando isso ocorre, o jogo passa a ser sério e admite uma finalidade, expulsando do pensamento as ameaças lúdicas da autossatisfação. Nesse momento, como discutido por Han (2020b [2002]), o sujeito kantiano se submete à dor, à sobrevivência e a sua própria finitude, guiando-se por sentimentos de dever. Isto representa, ainda, a internalização de regras sem divertimento, pois são vistas como imperativos morais. Quando o jogo entretém o corpo com sensações agradáveis ao invés de racionalizar o pensamento, o ser humano se desvia de seu fim e, para Kant (1922) se animaliza.

Em Bom entretenimento (2019b [2018]), Byung-Chul Han retrata Immanuel Kant como alguém atento à saúde, quando se refere ao gosto cotidiano pelo jogo. Esta afirmação se desdobra em uma contradição, apresentada a seguir: para Kant (1922), o entretenimento é saudável para o organismo, porém não o é para o entendimento, já que o entendimento entretido se animaliza; mesmo assim, o entendimento não se libera totalmente das sensações orgânicas, o que justifica a regularidade de práticas saudáveis ao corpo.  Em Kant (1922), o entretenimento acontece nos jogos de azar e durante as fofocas, ambas livres de finalidade racional, portanto, prejudiciais para a eficácia do entendimento em alcançar a verdade tal como o faz a razão.

Quando Han (2019b [2018]) acrescenta a música de Gioachino Rossini à discussão, sinaliza, em semelhança aos jogos anteriores, um exemplo de desperdício de tempo para a razão kantiana, pois ela é inútil para conhecer o mundo em sua realidade absoluta. Em contrapartida, Han (2019b [2018]) explora tal contradição ao discorrer sobre a “beleza livre” – a combinação do belo consigo mesmo – expressada pelo músico italiano e acrescenta: “As narrações não argumentam. Só tentam agradar e entusiasmar. Nisso reside sua alta eficácia” (Han, 2019b [2018], p. 130), o que anuncia a ineficácia da razão kantiana e sua busca pela verdade por um entendimento saudável. Para Han (2019b [2018], p. 141), o “jogo das sensações” é mais eficaz do que o “jogo das representações”.

Ainda que Han (2019b [2018]) associe a busca pela razão com um projeto demasiado Ocidental, não se desfaz da teoria do conhecimento de Immanuel Kant e a usa diversas vezes como percurso para iniciar suas discussões estéticas sobre gosto, beleza e moral[3]. Porém é sempre um percurso intermediário e sem qualquer resquício de adesão, a não ser quando se cria uma tensão conveniente. Em Sociedade da Transparência (2019g [2012]), por exemplo, entre a imaginação e o entendimento, destaca a primeira por fundamento do jogo, portanto, a imaginação torna-se princípio do próprio conhecimento, e a razão perde sua prioridade de função do pensamento:

 

Segundo Kant, a força da imaginação reside no jogo. Ela pressupõe espaços de jogo no qual nada está definido de antemão e onde não há contornos claramente delineados, necessitando de imprecisão e falta de clareza. Não é transparente para si mesma, ao passo que a autotransparência é que caracteriza o entendimento. Este não joga, mas trabalha com conceitos claros e unívocos. (Han, 2019g [2012], p. 41-42).

 

            Se em Kant (2004) o conhecimento se classifica por puro ou empírico, para Han (2019g [2012]) isto não possui sentido, pois relega os conhecimentos impuros a uma marginalidade arbitrária, a sensibilidade é inferiorizada na estruturação da percepção. Nessa esteira, há no neokantismo sistemas de pensamento mais convenientes a Byung-Chul Han, tal como Hegel (2007).

 

Jogo de forças, mediação e poder

            Para Byung-Chul Han, Hegel é um filósofo incontornável. Seus conceitos são amplamente utilizados pelo coreano para discutir comunicação, política e filosofia de forma geral. No momento, importa sinalizar uma semelhança entre a noção de jogo em Immanuel Kant e Hegel (2007): em ambos, o pensamento, em seu cerne, combina livremente e aleatoriamente os elementos mentais para produzir conhecimento, mas em Hegel (1987, p. 129) o pensamento pode estar liberado de suas funções prazerosas: “Há muita autocomplacência em explicar porque a consciência, por assim dizer [e que remete, na verdade, aos problemas gerais da percepção], em solilóquio direto consigo mesma [já que é autorreferencial], só se diverte, ainda que pareça estar fazendo outra coisa, mas em realidade só está consigo mesma dando voltas”. Em Kant (2007) o corpo joga com ideias e proporciona divertimento na forma de sensações, mas nossa conduta moral não deve se contentar com essa autossatisfação. Já em Hegel (2007), o pensamento se situa entre uma realidade orgânica (a natureza) é uma realidade inorgânica (os conceitos), nas quais a produção de conhecimento não se inspira precisamente na sensação de divertimento com ideias, mas de processos entre essas realidades em meio ao “jogo de forças [Spiel der Kräfte]” (Hegel, 1987, p.129).

            A expressão jogo de forças é também conhecida por “jogo de mudanças [Spiele der Wechsels]” (Hegel, 1987, p. 144) e “jogo do movimento [Spiel der Bewegung]” (Hegel, 1987, p. 161), uma vez que as forças se exteriorizam de um polo negativo para outro positivo, e vice-versa, o que modifica a forma e o conteúdo da força, além de indicar o movimento pela passagem da força entre os polos. Sendo assim, o jogo de forças obedece à “lei das forças [Gesetz der Kräfte]” (Hegel, 1987, p. 112), cujo sentido pode ser condensado na jornada do espírito.

O espírito é a totalidade de processos históricos, sustentados por jogos de força, os quais tendem a uma unificação dos contrários. Percebe-se, então, que as leis de movimento no jogo de forças são sempre o automovimento do espírito, o que também representa para o filósofo um “jogo vazio de legislação [Spiel des Gesetzgebens nicht]” (Hegel, 1987, p. 200), e até “irrelevante para” a natureza orgânica “que tipo de moinhos ela gira” (Hegel, 1987, p.207).

À natureza não interessa conhecer-se, embora a consciência interessada perceba a existência de processos infindáveis de autoassimilação do espírito encontrados nos percursos de formação, transformação e unificação de cada consciência, os quais informam a ideia de mediação. Assim, quando se menciona o jogo insubstancial [Spiel der Festsetzung] [da consciência] de fixar os detalhes e sua resolução” (Hegel, 1987, p. 406) ou um “jogo de individualidades [Spiel der Individuälitaten]” para as aparências (Hegel, 1987, p. 272) são referências à mediação das percepções para sua estabilização na interioridade da consciência. Mesmo se ela expressa “jogos de amor [Spielen der Liebe] consigo mesmo” (Hegel, 1987, p. 21) ou encontra um “jogo de dissolução [auflösende Spiel]” (Hegel, 1987, p. 370) nas representações da realidade, media-se do particular ao absoluto, do inferior ao superior, da intuição à razão, e do homem à Deus, como se na mediação se experienciasse para a consciência um “jogo de simulação [Spiel der Abwechslung]”  (Hegel, 1987, p. 446) responsável por guiar e educar moralmente um indivíduo.

Recupera-se nesse desenvolvimento moral da consciência, os juízos pessoais e as motivações egoístas desejadas por uma consciência ao consumir os objetos na natureza. Alguns objetos, contudo, podem se revelar na condição de outras consciências e resistir à consumação. A persistência da consciência em dominar e subjugar uma ou demais consciências incorre em uma luta de vida ou morte. A isto, Hegel (2007) denominou dialética do senhor e do escravo – alegoria extensamente utilizada por Byung-Chul Han em suas obras, mas, assim como o filósofo de Tubinga, raramente considerada um jogo, já que o desejo vitorioso impõe ao derrotado a humilhação do trabalho, destituindo-o de qualquer gozo, prazer ou divertimento; ao escravo está imputada uma obrigação para desobrigar seu senhor, o qual está livre para o ócio.

Han (2019d [2005]; 2019f [2005]), ao contrário de Hegel (2007), não se demora por nenhum jogo de forças, admite que as consciências já se envolvem na luta por reconhecimento e nomeia pelo menos duas delas – ego e alter. A prioridade do coreano é, em um primeiro momento, argumentar por um poder sem jogo ou acima dele e definido por uma espacialidade e temporalidade próprias. Em decorrência disso, a emergência de estruturas mediadoras no jogo entre as consciências seriam meros apêndices funcionando para o poder ou até mesmo lhe dispensam qualquer elaboração.

Se em O que é o Poder (2019f [2005]) Han define poder como a continuidade do ego no alter por uma estruturação ipsocentrada no self, em Hegel e o poder [2019d [2005]) a formação dessa interioridade corresponde, primeiramente, a uma espacialidade:

 

O poder proporciona ao ego espaços que são seus, nos quais, apesar da presença do outro, ele pode estar em si mesmo. Ele capacita o poderoso a voltar a si, no outro. [...] No caso da obediência em liberdade, o caráter contínuo do ego é bem estável. Ele está entremeado no alter. [...] A continuidade coercitiva do self, em contrapartida, é frágil por falta de mediação. [...] Se  a mediação for reduzida a zero, o poder vira violência. [...] Assim sendo, violência e liberdade são os dois extremos de uma escala de poder. Maior mediação gera mais liberdade, ou seja, mais sensação de liberdade. É assim que a forma de aparência do poder é condicionada por sua estrutura interna de mediação (Han, 2019f [2005], p.11).

 

Sendo assim, a consciência em acordo com o poder cria espaço para si ao se deslocar pelo mundo. Tal passagem do poder ao seu estado contínuo requer uma reespacialização da outra consciência. Sua efetivação se explica no quão ótima a mediação garante a adequação sensorial entre diferentes formações espaciais. Somente sob esta condição se diz que uma consciência está “entremeada no alter”, o que desobriga o ego do consentimento do alter, o que não acontece na morte, já que nela não há qualquer espacialidade. Segundo Han (2009f [2005], p.19), "continuidade e subjetividade são elementos estruturais que compartilham todas as formas de aparição do poder", ou seja, são componentes de toda "mediação intensiva". Nesse caso, "uma esfera de poder abrangente, uma instância mais alta de mediação seria necessária, os espaços-poder que agem uns contra os outros precisariam se unir numa totalidade ou serem mediados" (Han, 2019f [2005], p.19).

Sendo assim, dado que o poder é vivido como liberdade de decisão sobre si, o poderoso aparece livre da negatividade. Por isso, o "sim" do sujeito subjugado se sobrepõe ao "não" que arrisca a própria vida. Ao mesmo tempo, a mediação aparece como uma operação de construção da positividade, já que aumentar a capacidade de mediação constitui o poder e diminuí-la prejudica o poder, mas o põe em jogo. “Pôr para jogo” ou “estar em jogo” são condições do princípio de movimento encontrado em Hegel (1987), no qual a negatividade pode diminuir a capacidade de mediação do poder na diversidade de autoafirmações das consciências durante a luta de vida ou morte.

Em um segundo momento, Byung- Chul Han introduz o tempo no poder, e com ele uma dimensão estratégica de jogo:

 

No jogo de gato e rato [de Elias Canetti], contudo [ao contrário da nova formulação de poder por tempo e espaço], o espaço é da mera estreiteza de uma antessala da morte. Se o corredor da morte é mais estreito do que o focinho do gato, o espaço do poder preenchido de medo não é um espaço positivo de ação. Para que seja possível ocorrer realmente “algo novo” [como a sobrevivência do rato] é preciso que tal “jogo” seja mais do que um prelúdio para o assassinato. É preciso pressupor um verdadeiro espaço-jogo que admita possibilidades estratégicas. O poder pressupõe um espaço de tempo que seja mais do que o ainda não de uma porta para a morte." (Han, 2019f [2005], p.22-23.

 

Com isto o conceito de poder incorre implicitamente em uma separação entre jogo e mediação, mas é uma separação com suas recorrências. A princípio, a mediação é um processo psicológico de elaboração de estruturas subjetivas para comunicação. Seu verbo é interiorizar. Já o jogo aparece no campo das ações, diferenciando-se das forças, e aparece como consequência das estratégias adotadas. O verbo do jogo  é exteriorizar. Se as estratégias previstas ao jogo acontecem por meio de regras (coerções), elas bem poderiam pertencer a uma consciência, como o gato que parece decidir as regras ou os limites para o rato nessa caçada compreendida como jogo. Aqui, pressupõe-se que apesar do rato esperar pela morte o desejo do gato consiste em não o matar, sendo assim o gato permite que o rato viva para que o jogo mortal continue. Apenas neste sentido o poder recupera uma dimensão lúdica do jogo, mas não se confunde com ele, pois o jogo está abaixo do poder quando remete a um espaço no qual o rato possa agir, mas não em seu favor, senão para o próprio divertimento e regozijo do gato. 

Com esta argumentação, imagina-se que Han (2019f [2005]) usa a expressão "jogo de poder" para referir-se a uma integração de intensidades com vistas ao poder e na qual a “abertura do jogo” acontece apenas como momento intermediário do poder. Por isso se diz que: “é possível que o poder pertença ao jogo. É possível também que [o poder] esteja equipado com elementos lúdicos. Mas [o poder] não se baseia no jogo. O jogo pode até mesmo ser usado como contrafigura do poder” (Han, 2019f [2005], p. 48), pois “a intensidade do desejo [de poder] não depende [...] da abertura do jogo ou da diversidade de modos de jogo. Pode-se, ao contrário, remetê-la à continuidade do self que cresce com o poder” (Han, 2019f [2005], p. 49), ou seja, a função do poder é conservar e estender suas estruturas intensivas, seu self.

Todavia, se o jogo pode ser visto como contrafigura do poder o será junto da amabilidade, um processo de abrir-se para conjugar os acontecimentos em um espaço sem violência. Nessa toada, a abertura da amabilidade está esvaziada da subjetividade e da continuidade esperada do fechamento pelo poder, por isso, seu fluxo requer baixa ou nenhuma mediação intensiva.  Um  jogo de poder não se esvazia do ser como em “o gracioso jogo da água na paisagem terrena [da natureza orgânica]” (Han, 2019d [2005], p. 30, tradução minha) -, mas ao esvaziar-se abre-se à possibilidade de um repreenchimento da intensidade com sua recondução e  formação de novas estruturas de mediação. Nesse sentido, o jogo é a reelaboração das estruturas de mediação, na qual a sensação do poder também é reestruturada se a continuidade de uma das consciências detém seu movimento de autoafirmação.

Na contrafigura da amabilidade, quando se menciona o “jogo inócuo” do ânimo no prazer estético (Han, 2019c, p. 57, tradução minha) ou quando “jogo” (Han, 2019d, p. 60, tradução minha) faz referência à incapacidade da arte moderna à seriedade e ao trabalho, e, portanto, se alinha ao “humor(Han, 2019c, p.60, tradução minha), o  jogo não promove o esvaziamento pleno do indivíduo de suas representações habituais, embora possa ser tomado como um exercício intensivo de renovação de si ao abrir-se para outro sistema de referências e experimentar um fechamento provisório com a retomada do poder, sua função comunicativa e, consequentemente, da sensação de liberdade encontrada na experiência estética.

Se o jogo se conjuga com o poder, há mais no retorno a si mesmo da consciência do que o próprio sentimento de si, há também uma "recreação subjetiva" proporcionada pelo momento de jogo (Han, 2019f [2005]), p. 62).  Para Han (2019f [2005]), o jogo tampouco está desligado da amabilidade, uma vez que, bastaria reparar "[n]a amabilidade e [n]a hospitalidade às coisas e aos acontecimentos que vem e vão: só ela é capaz de perceber a beleza do ser-assim. O sim não procurado nem intencionado ao ser-assim é possivelmente uma contrafigura do poder, o qual, em última instância, é autoafirmação" (Han, 2019f [2005], p. 77). Pelo contrário, na amabilidade o jogo é um abrir-se para os detalhes e as pequenezas de forma que elas participem até mesmo dos processos mais estáveis de mediação e permitam a criatividade.

            Sendo assim, o movimento dialético formulado por Hegel (2007) confere à natureza uma capacidade de jogo que está subentendido no desenvolvimento da consciência, a qual é posta para trabalhar e alcançar, com seriedade, uma vida espiritual integrável ao espírito da História. Forma-se, então, um prestígio em torno da união do entendimento com a imaginação para a criação da natureza inorgânica. Já em Han (2019d [2005]), a sensibilidade é a função primordial do pensamento, é por meio dela que a consciência se esvazia e se dissolve na beleza do mundo. Em obras anteriores a Sociedade do cansaço (2017a [2010]), Byung-Chul Han se filia ao sistema de pensamento hegeliano para sustentar suas teses sobre o poder[4], o que retira a obrigatoriedade do componente lúdico na política, pois poder (natureza inorgânica) e jogo (natureza orgânica) não se confundem, e somente a amabilidade é antagônica ao poder. Somente em período posterior ao best-seller, o jogo será recuperado para repensar práticas de controle neoliberais.

 

 

A mão do ser-aí

            Com Martin Heidegger, Byung-Chul Han está amparado metodologicamente para preferir uma posição relativista da verdade àquelas versões absolutistas e universais. O projeto kantiano da razão passa, assim, da necessidade do pensamento para suas possibilidades. Em Ser e Tempo (1967), Heidegger deslinda o problema da percepção do ser por uma estrutura existenciária denominada ser-aí. Com ela sinaliza a existência de um ente[5] qualquer, todavia, o espaço é condição vital para que exista o ser-aí, então o renomeia ser-no-mundo. A palavra mundo indica as superfícies, objetos e todo tipo de ente ao redor do sujeito e disponíveis a sua sensorialidade. Sendo assim, o sujeito da percepção é um ser-no-mundo, ele percebe um ser-aí a partir do mundo que lhe é próprio.

            Nesses termos, o conjunto da sensação e da percepção estruturam a experiência, ao menos narrativamente, ao tomar a mão (Hand) por órgão cognoscitivo, o que está dado pelos termos “à mão” (Zuhandenen) ou “agir” (Handelt) na elaboração dos referenciais internos ao sujeito, ou seja, a significatividade do mundo. O termo ser-à-mão expressa a capacidade de manipulação dos seres-aí pelas estruturas existenciárias para perceber e se apropriar do mundo-ao-redor. Ou seja, o que se percebe do mundo-lá-fora ou mundo-circundante é o que já está no mundo-aqui-dentro ou mundo intramundano do sujeito. Esses elementos espaciais não são transportados pura e simplesmente para o pensamento, eles são modificados temporalmente pelo agir da consciência, um tipo de trabalho mental com vistas ao cuidado desse sentimento de pertencer-se a si mesmo - a consciência. Em todo caso, a consciência repousa em uma conformidade para conhecer que é um não-abrir-se completamente ao acontecimento.

            Em resumo, para Heidegger (1967), toda experiência se fundamenta em um processo temperamental, já que a conformidade da consciência está intimamente relacionada ao estado de ânimo para conhecer e significar a realidade dos entes ao redor, desde sua própria realidade interna, em estreita relação com uma manualidade. O sujeito de Heidegger (1967) agarra a realidade para si com suas mãos, torna-a parte de sua visão, pois a realidade se mostra “ante os olhos” (Heidegger, 1967, p. 66, tradução minha). Para alcançar os entes espalhados por aí, manipular sua natureza e envolvê-los em sua própria substância existenciária, o sujeito requer pés para caminhar e ouvidos para captar os chamados da vocação de seu ser-para-o-mundo. Todos esses acessórios reunidos permitem ao sujeito “ver ao redor” e “ser no mundo” na forma de um habitante (Heidegger, 1967, p.83, tradução minha).

            Habitar um mundo pressupõe, por sua vez, estados de ânimo, como já mencionados anteriormente. O processo estabelecido por Heidegger (1967) para conhecer a partir dos estados de ânimo consiste em quatro processos principais, também nomeados por estados: “estado de aberto”, “estado de descobrimento”, “estado de perdido” e “estado resoluto” (Heidegger, 1967, p. 323-324). Cada um possui sua própria estrutura existenciária, porém, aqui eles serão conhecidos em sua brevidade e simplicidade. Com isto, quer-se dizer que um sujeito dotado de estado de ânimo é capaz de abrir-se ao mundo, descobrir nele elementos estranhos a sua própria constituição interna, perder-se nos referenciais linguísticos adotados ou ver-se de repente sem direção no sentido conferido a um mundo previamente orientado, e resolver o medo e a angústia de sua perda com um cuidado de reelaboração do sentido - o que confere significatividade à experiência mundana.

            Em Hiperculturalidade (2019e [2005]), o turista digital é um andarilho sem pátria entregue à justaposição de culturas. Com isto, Han (2019e [2005]) sugere que esse sujeito vagueia pelo mundo sem qualquer tipo de apropriação manual para modificação de sua estrutura interior, seu “ver ao redor” é somente um mover de pés. Perder-se sem transformar-se é um novo imperativo para Han (2019d), pois o turista digital não teme nada; não se angustia diante da inospitalidade linguística do ser-estrangeiro; não há qualquer preocupação em compreender o ser dos entes em uma nova realidade, assim se diz que se desfacticizaram, pois nenhum ser lhe é “à mão”. Posteriormente, em No enxame (2018a [2013]), Byung-Chul Han afirma que a inutilidade da mão provoca seu atrofiamento, e dela restam os dedos: “a mão de Heidegger pensa, em vez de agir […]. O pensamento é um trabalho manual [Hand-Werk]. Assim, a atrofia digital da mão faria com que o próprio pensamento atrofiasse” (Han, 2018a [2013], p. 70-71), já que “a mão é, para Heidegger (1967), o medium para o Ser, que designa a fonte fundamental do sentido e da verdade” (Han, 2018a [2013], p. 69). Para o ser humano de membros atrofiados, Han (2018a [2013], p. 62) sugere que “no lugar das mãos, entram os dedos”.

A preocupação de Byung-Chul Han com a atrofia das mãos em dedos é estritamente atual. Ela remete ao período pós-guerra caracterizado em sua obra pela globalização de mercados e pela informatização das nações ao redor do planeta. Na análise de Han (2017a [2010]), origina-se com a pós-modernidade um sistema totalizante de pensamento denominado inicialmente sociedade do cansaço[6], principal estado de ânimo do trabalhador moderno que cultive a autoexploração. Em Sociedade do Cansaço (2017a [2010], p.32), Han menciona “jogos de computador como exemplo de técnica temporal capaz de animalizar a atenção humana tornando-a superficial, sem capacidade de um “aprofundamento contemplativo”[7]. Em contrapartida, a contemplação permanece lá onde se encontra a “mão lúdica” (Han, 2017a [2010], p. 74), aquela capaz de criar uma “aura de amizade” na “comunhão de singularidades pintada numa natureza-morta holandesa” (Han, 2017a, p. 75), o que é uma referência explícita à vida no campo e longe da agitação urbana, tal como Martin Heidegger descreve em A caminho do campo (2012) e Byung-Chul Han recupera em obras como Hiperculturalidade (2019e [2005]) e No enxame (2018a [2013]) pela imagem do caçador.

            No contexto pós-moderno, Han (2018a [2013], p. 62) sugere: “o novo ser humano passa os dedos [fingern] em vez de agir [handeln]. Ele quererá apenas jogar e aproveitar. Não o trabalho, mas sim o ócio caracterizará a sua vida. O ser humano do futuro intangível não será um trabalhador, um homo faber, mas sim um jogador, um homo ludens”. Paradoxalmente, o novo homo ludens é um trabalhador-jogador sem o recurso lúdico, pois para Han (2018a [2013], p. 63), “o jogador se dopa e se explora, até que ele se arruíne com isso. […] O próprio jogo se submete à coação do desempenho. […] À atrofia das mãos se segue uma artrose dos dedos”. Com isso, Han (2018a [2013]) remete à articulação de sentido das mãos em seu processo de compreensão da realidade por sua apreensão em mundo de significações.

Em Hegel e o Poder (2019f [2005], Byung-Chul Han recupera com Heidegger uma propriedade mediadora do poder, a semântica. Nela a mediação passa a ser um processo de elaboração de sentido por incorporação de significações. A afecção do mundo na consciência criaria, por repetição, frequência e constância dos eventos formadores da consciência, uma consciência média. Consequentemente, tem-se um novo sentido de mediação: adquirir um sentido médio para as coisas no mundo, responsável pela formação estética da consciência e de suas inclinações.

O “ser-à-mão” desenvolve, portanto, uma estrutura semântica denominada hábito ao alcançar um sentido médio, cuja importância em Han (2017b [2012]) se desenrola no componente mimético da cultura para a articulação do sentido, o que também oferece uma segurança ontológica ao sujeito quando o hábito medeia a sensação de verdades na consciência. Porém, em obras posteriores, como Sociedade da Transparência (2019g [2012]), o mimetismo articula-se na performance teatral em referência às estruturas existenciárias e suas mundanidades[8].

Sobre a caverna de Platão, por exemplo, lê-se: “Os presos ali estão sentados como espectadores de teatro diante do palco” (Han, 2019g [2012], p.87)”, eles “entregam-se a um jogo, a uma narrativa”, pois aquele lugar está repleto de “diversas formas de vida; a saber, a forma de vida narrativa e a forma de vida cognitiva” (Han, 2019g [2012], p. 89). À contracorrente, Han (2019g [2012]) afirma que o mimetismo na caverna de Platão está fundado em um brincar com as sombras antes de alcançar a verdade solar. Ou ainda: Jean-Jacques Rousseau, para quem “o que importava [para Jean Jacques-Rousseau na corte] era jogar e brincar com a aparência, com ilusões cênicas” (Han, 2019g, [2012]), durante o baile de máscaras, cenário em que a verdade está mediada pelo que se mostra, bem como por aquilo que se dá a ver.

Portanto, a performance é mimética quando símbolos culturais, como as sombras e as máscaras, participam do processo de significação.  Isso vale para os povos ditos primitivos de Topologia da Violência (2017b [2011]), os quais imitam a natureza nos rituais de vingança para afastar o mal das aldeias e restaurar um estado de segurança. Percebe-se, assim, como o caráter mimético se oferece ao ser-aí como estrutura de jogo, seja pelo teatro ou outras formas de ritual.

 

Nos jogos e nos rituais o decisivo são as regras objetivas, e não os estados psíquicos-subjetivos; quem joga com outros se submete a regras de jogo objetivas. A comunalidade do jogo não reside na autoabertura mútua, mas as pessoas socializam-se mutuamente quando guardam distância uma das outras. A intimidade, ao contrário, destrói essa socialização. (Han, 2017b [2012], p. 83).

 

Não é por acaso que Han (2017b [2011]) recorre a Richard Sennet (1992), uma vez que sua cura para o narcisismo na modernidade é justamente o jogo, uma prática social desenvolvedora de moralidade. Com moralidade entende-se a capacidade humana de criar, organizar, manter e alterar regras em funcionamento, as quais permitem não somente um espaço de objetividade, mas um “jogar consigo mesmo” a partir das experiências (Han, 2017b [2011], p. 85), pois com elas “encontramos o outro; mas na vivência, ao contrário, sempre encontramos a nós mesmos” (Han, 2017b [2011], p. 84). Com isto, Han (2017b [2011]) tem em mente a partilha, a compreensão, a performance e a existência perene de um sentido comum entre diferentes indivíduos. Com efeito, a experimentação da vida se recobre de encontros misteriosos e velados com objetos sensoriais que findam em espaços comuns.

A comunidade se aproximaria, para Han (2017a [2010]) de uma amizade. Em Sociedade do cansaço (2017a [2010]), amizade é um estado de ânimo que conjuga indivíduos-em-suas-diferenças em um lugar e os une por um propósito comum; e seguido da conjugação, a amizade proporciona interações nas quais as partes se submetem a uma intersubjetivação capaz de renovação e inspiração de suas interioridades. Por isso a ação é importante, porque em cada jogada os jogadores percebem resistências às suas vontades, mas se espera que ela não se sinta por uma coação, pois há um acordo entre os jogadores sobre as regras do jogo, o que não é do feitio do poder, já que seu sujeito não se oferece à resistência. Assim, regula-se suas jogadas e as estratégias possíveis, mas sem capacidade de previsão - o que caracteriza a abertura do jogo. Pode-se dizer, ainda, que a amizade é uma consequência do jogo[9], seja na forma de uma brincadeira, uma encenação, uma performance, um presente (uma dádiva, um dom), uma sacralidade ou, sua forma mais mundana, um estar-juntos.

            Toma-se, assim, em Byung-Chul Han, uma complementaridade entre a expressividade da mão heideggeriana, a abertura de mundo provocada pela mímesis e a significação lúdica. Percebe-se, aí, o jogo como objeto cultural de investigação, mas não precisamente como um conceito. O que só acontecerá ao ganhar uma independência das mãos e dos dedos para a sensorialidade abrangente do corpo.

 

O jogo gamificado

No último capítulo de Bom Entretenimento (2019b [2018]), Byung-Chul Han assume que o entretenimento sempre existiu, seja no Ocidente ou no Oriente, e que ele equivale ao “modelo do jogo” (Han, 2019b [2018], p. 202), isto é, uma ocupação temporária e voluntária sem coação, uma breve distração. Em Han (2019b [2018]), por outro lado, a cotidianidade do entretenimento faz dele um fenômeno crônico que tende a totalizar a percepção da consciência. A importância desse achado é sobre o uso de tal recurso em modelos híbridos de comunicação, ou seja, veículos ou meios que informam e divertem simultaneamente, o que se confunde com um jogo: “é possível sim que o mundo mesmo tenha se tornado um tabuleiro. O pulo do gato seria, então, uma jogada” (Han, 2019b [2018], p. 205).

Sendo assim, ao tratar do jogo, Han (2019b [2018]) parece revelar-lhe traços comunicativos ao revisitar antigos ideais seus em Hiperculturalidade (2019e [2005]): a), a binariedade inicia o pensamento de um conceito e lhe permite intuir sobre aspectos do mundo circundante, concedendo-o a propriedade de real ou de ficção; b) a informação só é vista como tal na medida em que existe a não-informação, e a partir desta diferenciação a comunicação age como sistematizadora do pensamento, isto é, formam-se sistemas de pensamento a partir de uma realidade sistêmica; c) hoje em dia, informação e entretenimento são faces de uma mesma moeda, o que significa que o pensamento se estrutura por meio de presenças híbridas, mas cujo fundamento é o entretenimento, o que incorreria em um hipersistema, que em muito lembra a hipercultura de um período pré-Sociedade do Cansaço: “Para ser, para pertencer ao mundo, é preciso ser algo que entretém. Apenas aquilo que entretém é real ou efetivo” (Han, 2019e [2005], p. 206).

O aspecto comunicativo do jogo estabelece uma capacidade de mediação; ele age como um medium. A sensação de jogo inclina o indivíduo a uma performance de jogador, sendo a dedicação à competição e as decisões aparentemente livres suas características fundamentais. Anteriormente, em Psicopolítica (2018b [2014]), Han admite que o jogo, assim como a emoção ou a comunicação, são “práticas” e “formas de expressão da liberdade”, porém, “o neoliberalismo é um sistema muito eficiente – diria até inteligente – na exploração da liberdade” (Han, 2018b [2014], p 11). Empresas de comunicação e informação (Microsoft, Google, Apple e Facebook, por exemplo), exploram a liberdade quando se cria uma inclinação comportamental em um “nível pré-reflexivo” do pensamento nos usuários de seus produtos (Han, 2018b [2014], p. 31). Com isto, eles são levados a informar dados pessoais, os quais serão armazenados e comercializados com fins à expansão do capital.[10] Sendo assim, a atmosfera de jogo é o que inclinaria um indivíduo a não se confundir com um informante ou qualquer tipo de trabalhador explorado digitalmente, pois a consciência não percebe coação alguma no uso do tempo livre, cuja eficiência redunda em autoexploração.

Quando o trabalho passa a imitar o jogo, está-se diante do fenômeno da gamificação. O “poder inteligente” das empresas é percebido, assim, por um “poder afável” (Han, 2018b, p. 27). Por isso, apesar do jogo admitir uma escolha ao entrar ou sair do jogo, quando Han (2018b [2014]) menciona que “a motivação, o projeto, a competição, a otimização e a iniciativa são inerentes à técnica psicopolítica de dominação do regime neoliberal” (Han, 2018b [2014], p. 31), o faz em virtude do poder de influência de novas mídias em “um nível pré-reflexivo” do pensamento (Han, 2018b [2014], p. 23), caracterizando, por sua vez, os propósitos de dominação da psicopolítica. Por isso mesmo, as técnicas de controle neoliberal, o controle e a vigilância de informações possuem efeitos retroativos sobre as condições de percepção do indivíduo, pois criam estados emocionais no indivíduo, como se se instalassem nele um gosto kantiano pelo trabalho, ou mesmo um hábito (e um estado de ânimo) heideggeriano. O fenômeno dataísta e a gamificação do cotidiano tornam-se  então um problema estético, pois, sucedendo o regime disciplinar, “a intervenção ortopédica [ou mesmo a dialética do senhor e do escravo] dá lugar à estética” (Han, 2018b [2014], p. 40, acréscimo meu) e é preciso levar a questão a sério: “justamente uma deslegitimação do entretenimento ou do jogo pode trazer consigo uma atrofia do estético [no que toca a compreensão da contemporaneidade]” (p. Han, 2019b [2018], p. 83).

Em Bom Entretenimento (2019b [2018]), igualmente, o que se quer mostrar com a paixão na arte Ocidental (a música, a poesia e a literatura) é uma compreensão em como a paixão – dita por aquelas sensações encantadoras à percepção - desenvolve o belo no entretenimento, sua capacidade de reunião e mediação de subjetividade a um grande contingente de indivíduos. Em outras palavras: sua capacidade de jogo.

Byung-Chul Han anuncia: “haverá novamente o JOGO” (Han, 2019b [2018], p. 6), mas o controle emocional do corpo induz performances e, assim, o controle de ações:

 

O capitalismo do consumo, além disso, introduz emoções para criar necessidades e estimular a compra. O emotional design molda emoções e padrões para maximizar o consumo. Hoje, em última análise, não consumimos coisas, mas emoções. Coisas não podem ser consumidas infinitamente, mas emoções sim. Emoções se desdobram para além do seu valor de uso. Assim, inaugura-se um novo e infinito campo de consumo. (Han, 2018b [2014], p. 66).

 

Em resumo, Han (2018b [2014]) propõe com isso a capacidade do neoliberalismo de capturar o elemento lúdico do jogo para impulsionar a autoexploração do trabalho: “Para gerar mais produtividade, o capitalismo da emoção também se apropria do jogo, daquilo que seria, na verdade, o outro do trabalho. [...] O jogador com suas emoções está muito mais envolvido do que um trabalhador meramente funcional ou que atua apenas no nível racional” (Han, 2018b [2014], p. 69). Observa-se, então, que o tempo livre do indivíduo para o jogo é capitalizado em tempo produtivo, naquele tempo há “uma sensação de êxito e recompensas imediatas” (Han, 2018b [2014], p. 69) úteis ao funcionamento emocional do capital. Em Han (2018b [2014]), esses fenômenos de captura se misturam a processos causais e finalísticas antagônicos às formas de jogo da antiguidade.

            Contra a gamificação intolerável da realidade Han (2019b [2018]) aposta no jogo, e tenta recuperar todo seu esplendor, mas como isso seria possível se o jogo se submete à produção? Seria suficiente apostar, como Byung-Chul Han o faz em Psicopolítica (2018b [2014]), naquelas crianças gregas que brincam com dinheiro? O uso irracional e lúdico do dinheiro nas mãos dessas pequenezas aponta para a ruína do capitalismo inteligente?

 

Jogo forte e jogo fraco

Em A desaparição dos rituais (2020a [2019]), pela primeira vez, Byung-Chul Han se vale de uma obra inteiramente dedicada ao jogo como objeto cultural de investigação - Homo Ludens (2000), de Johan Huizinga. A própria ideia de homo ludens já se apresentava para Byung-Chul Han por outras vias, mas o esforço de Huizinga (2000) em elencar as propriedades constitutivas do jogo continuam pertinentes para compreender a transformação da palavra jogo em um conceito denso, variável e extenso.

Os exemplos de Huizinga (2000) são tão vastos (e alguns similares) àqueles usados por Han (2020a [2019]):  de brincadeiras de crianças e animais, jogos de cartas e adivinhação ou mesmo atletismo, até duelos de esgrima entre nobres, competições judiciais entre advogados, rituais religiosos cujo confronto entre guerreiros termina em morte e a própria produção do conhecimento, seja ele filosofia, arte ou poesia, cada um com suas regras particulares. A equivalência entre todos estes exemplos se deve à tese de que o jogo é fundamento de toda cultura e, consequentemente, da civilização:

 

O objeto de nosso estudo é o jogo como forma específica de atividade, como "forma significante", como função social. Não procuraremos analisar os impulsos e hábitos naturais que condicionam o jogo em geral, tomando-o em suas múltiplas formas concretas, enquanto estrutura propriamente social. Procuraremos considerar o jogo como o fazem os próprios jogadores, isto é, em sua significação primária. Se verificarmos que o jogo se baseia na manipulação de certas imagens, numa certa "imaginação" da realidade (ou seja, a transformação desta em imagens), nossa preocupação fundamental será, então, captar o valor e o significado dessas imagens e dessa "imaginação". Observaremos a ação destas no próprio jogo, procurando assim compreendê-lo como fator cultural da vida. (Huizinga, 2000, p. 7).

 

            Por “significação primária” do jogo pelo jogador e o desdobramento dessas “imagens” em “imaginação”, compreende-se o caráter lúdico do jogo. O surgimento de um universo lúdico pela materialidade do jogo é o que permite ao homo ludens habitar uma interioridade. Consequentemente, a tese segundo a qual cultura é um jogo salienta a dimensão lúdica de um espaço imaginário de onde deriva toda a vitalidade do ser social e suas interações, que são entendidas com base em descargas e ligações emocionais. Tal tese recobre o jogo, bem como sua ludicidade, de características fundamentais e formais, exprimidas da seguinte maneira:

 

Numa tentativa de resumir as características formais do jogo, poderíamos considerá-lo [1] uma atividade livre, [2] conscientemente tomada como "não-séria" [ou desinteressada] e [3] exterior à vida habitual, mas ao mesmo tempo [4] capaz de absorver o jogador de maneira intensa e total. [1] É uma atividade desligada de todo e qualquer interesse material, com a qual não se pode obter qualquer lucro, praticada dentro de limites espaciais e temporais próprios, segundo uma certa ordem e certas regras. [2] Promove a formação de grupos sociais com tendência a rodearem-se de segredo e a sublinharem sua diferença em relação ao resto do mundo por meio de disfarces ou outros meios semelhantes.

A função do jogo, nas formas mais elevadas que aqui nos interessam, pode de maneira geral ser definida pelos dois aspectos [ou características] fundamentais que nele encontramos: [1] uma luta por alguma coisa ou [2] a representação de alguma coisa. Estas duas funções podem também por vezes confundir-se, de tal modo que o jogo passe a "representar" uma luta, ou, então, se torne uma luta para melhor representação de alguma coisa.

Representar significa mostrar, e isto pode consistir simplesmente na exibição, perante um público, de uma característica natural. [...] [A representação] É executada no interior de um espaço circunscrito sob a forma de festa, isto é, dentro de um espírito de alegria e liberdade. Em sua intenção é delimitado um universo próprio de valor temporário. Mas seus efeitos não cessam depois de acabado o jogo; seu esplendor continua sendo projetado sobre o mundo de todos os dias, influência benéfica que garante a segurança, a ordem e a prosperidade de todo o grupo até à próxima época dos rituais sagrados. (Huizinga, 2000, p. 13-14).

 

            Esta longa passagem sugere, primeiramente, que o jogo antecede o indivíduo tal como a cultura, e ela se mantém por adesão de um indivíduo à realidade interna do jogo (ou da cultura) por uma vontade de jogar (ou de pertencer), da qual emerge um jogador (ou indivíduo cultivado). Tornar-se jogador marca, por sua vez, uma função essencial para a sustentação do próprio mundo do jogo (e da cultura), o qual passa a ser organizado e mantido pelos jogadores. As características formais do jogo indicam, portanto, a passagem de um indivíduo a jogador e de sua performance durante o jogo.

O segundo ponto a ser considerado são os efeitos do jogo no coletivo de jogadores assim que o jogo tem fim. Enquanto características fundamentais do jogo, luta e representação observam-se durante e depois do jogo, pois aquilo que se diz por “espírito do jogo” (Huizinga, 2000, p. 19) é também a repercussão desse mundo imaginário e isolado do jogo em outras esferas sociais. Consequentemente, o jogo reverbera para além de si mesmo e se oferece como fundamento de outras dimensões da vida social, por isso se diz que o jogo é projetado na coletividade, pois ele unifica as partes separadas e tensionadas do espírito humano em um propósito comum, além de preenchê-lo com satisfação, sentido e alegria. Não à toa, esta experiência desenvolve uma proximidade com o sagrado, lugar da “segurança”, da “ordem” e da “prosperidade”, bem como da festividade.

Em resumo, a função social do jogo consiste na elaboração estética de mundos interiores a partir de realidades externas, ou seja, na transformação do material recolhido pela percepção humana em conjuntos de estruturas de sensibilidade disponíveis ao pensamento para experimentar as possibilidades da vida. O jogo enquanto atividade estética seria, assim, uma forma de estruturação da sensibilidade por cultivo do caráter lúdico do ser. O que se diz em Han (2020a [2019]) pela força simbólica de espetáculos sociais para o pensamento, já que a sociabilidade da cortesia ou o teatro, por exemplo, “joga com a bela aparência” (Han, 2020a [2019], p. 19, tradução minha), o que representa uma “forma intensiva da vida” (Han, 2020a [2019], p. 32).

Se em Hegel e o poder (2019d [2005]), Byung-Chul Han se desfaz do jogo para enaltecer a soberania na conceituação de poder, então em A desaparição dos rituais (2020a [2019]) o jogo é reintroduzido na discussão da soberania: “a glória do jogo caminha lado a lado com sua soberania, que não significa outra coisa que não estar submetido a uma necessidade nem subordinado a um objetivo nem a uma utilidade” (Han, 2020a [2019], p. 37, tradução minha). Tal argumento recorre a Bataille (2015) para dividir o jogo em duas subcategorias: jogo fraco, submetido à produção e ao trabalho, e jogo forte, incompatível com a produção. E logo percebe-se que é o jogo forte que “põe a vida mesma em jogo. Se caracteriza pela soberania” (Han, 2020a [2019], p. 37, tradução minha), o que retoma o tema da liberdade, mas desta vez coletivizando o indivíduo em temas culturais.

Aqui, Han (2020a [2019]) marca uma separação entre o seu pensamento e o de Huizinga (2000a [2019]). O paradigma da vida social como jogo não tem vez na globalização do neoliberalismo, cenário em que o trabalho, a produção e o rendimento dividem as fronteiras do social entre a seriedade e a brincadeira. Do neoliberalismo nasce o dataísmo, paradigma em que “o homem [no sentido de humanidade] deve reger-se por dados. Abdica [de si] como produtor de saber e entrega sua soberania aos dados” (Han, 2020a [2019], p. 60). Além disso, “o pensar se reveste de figuras [por isso é simbólico]. Não raras vezes é [o pensar] retorcido e sinuoso. [...] O pensar tem um caráter lúdico” (Han, 2020a [2019], p. 61). Faz-se, assim, nítida a dialética entre o pensamento e a soberania proporcionada pelo jogo.

Com a diferenciação de jogo forte e jogo fraco sucedem-se, ainda, algumas reformulações de ideias anteriores. Agora, quem joga ritualmente guiado por um sentimento de soberania, arrisca a própria vida e não teme a morte:

 

O jogo forte anula e supera a economia do trabalho e a produção. A morte não é uma perda, não é um fracasso, senão uma expressão de vitalidade, força e prazer extremos. [...] A norte é um aspecto da vida. A vida só é possível em um intercâmbio simbólico com a morte. Os ritos iniciáticos e sacrificiais são atos simbólicos que regulam múltiplos trânsitos entre a vida e a morte (Han, 2020a [2019], p. 39).

 

            Os sacrifícios rituais se estendem, inclusive, às práticas de suicídio, às quais o Byung-Chul Han de Sociedade do cansaço (2017a [2010]) tomou uma vez pelas últimas consequências da autoexploração. Isto também sinalizava para a inadequação da luta do senhor e do escravo em uma contemporaneidade sem dialética ou hermenêutica. Agora, senhor e escravo são jogadores: “O senhor quer brilhar. Vive para a honra e a glória da vitória. [...] O amo é um homem livre porque está disposto a pôr a vida em jogo” (Han, 2020a [2019], p. 43, tradução minha), transformando-se, então, em um jogador forte, enquanto o escravo seria um jogador fraco.

 

 

 

Conclusão

            Ao debruçar-se sobre a noção de jogo na obra de Byung-Chul Han, quis-se expor um paradigma estético que se refina em seu pensamento mais recente. Desde suas primeiras obras até Sociedade da transparência (2019g [2012]), jogo é tomado por uma expressão habitual, noção genérica ou metáfora para denotar três situações: a primeira, o meio pelo qual a sensibilidade se transforma em pensamento ao combinar ideias e experiências entre si; a segunda envolve a primeira, mas acrescenta um sentimento de prazer a essa combinação de elementos sensoriais e representativos do pensar. Estas características são percebidas nas filosofias de Immanuel Kant e Friedrich Hegel nas sessões A finalidade racional do jogo e Jogo de forças, mediação e poder deste artigo, mas enquanto ambos filósofos se atêm à transformação da natureza em humanidade, seja por uma preocupação moral com a razão ou com o espírito humano, Byung-Chul Han envereda pela natureza como processo constante de esvaziamento e estruturação do pensamento, o que recupera o valor sensível do jogo, se comparado às preocupações ideológicas  dessas duas filosofias modernas.

Uma terceira situação, mostrada nas sessões Jogos de força, mediação e poder e A mão do ser-aí deste artigo, estende a compreensão de jogo como mediação do pensamento em interação com um mundo fático, um ambiente físico, para retomar preocupações antropológicas e linguísticas de Martin Heidegger no estudo da sensibilidade e preocupações políticas de Friedrich Hegel sobre o poder. Por isso, Byung-Chul Han, desde suas primeiras obras, vale-se da imagem da mão como membro que apreende o mundo para a consciência, bem como a recobre da possibilidade de esvaziar-se da preensão do mundo. Somente em No enxame (2018a [2013]), ainda, atrelado à mão, o jogo ganha algum protagonismo e desloca-se da compreensão dada até então à percepção e à consciência, pois o ser é agora um jogador, um homo ludens. A vida social passa a ser comparada à mimesis do teatro, e o jogo leva à performance, ao desenvolvimento de um hábito.

Por fim, como visto nas sessões O jogo gamificado e Jogo forte e jogo fraco deste artigo, desenvolve-se nas obras Psicopolítica (2018b [2014]), Bom entretenimento (2019b [2018]) e A desaparição dos rituais (2020a [2019]) um conceito de jogo em permanente mutação, cuja compreensão se dá em oposição ao trabalho, à seriedade, à submissão da vontade e ao capital. Em A desaparição dos rituais (2020a), a partir dos comentários de Bataille (2015) à Huizinga (2000), jogo alcança nova diferenciação (jogo forte e jogo fraco) para suprir lacunas e contradições na formulação do fenômeno da gamificação. Com isto, temas esquecidos desde Hipercultura (2019d [2005]) voltam a participar de questões pós-modernas em Byung-Chul Han, como os termos cultura (Han, 2019b [2018]; 2020a [2019]) e hibridação (2019b [2018]). Bem como a reconfiguração de temáticas antigas, como a metáfora política do tabuleiro de xadrez, a luta do senhor e do escravo, o teatro como ritual performativo e a objetivação do senso comum em força simbólica codificada. O conhecimento, seja ele qual for, estaria mediado na percepção por estruturas de jogo, o que conecta o indivíduo à cultura humana, ou seja, à Bildung, mas atravessado por relativismos de espaços e tempos culturais.

Em um sentido mais estrito, é junto da terra que se desenvolvem as estruturas fortes de jogo (Han, 2021 [2021]).

 

Referências

BATAILLE, George. ¿Estamos aquí para jugar o para ser serios?. In: La felicidad, el erotismo y la literatura: ensayos 1944-1961. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Adriana Hidalgo, p.186-219, 2015.

CABUYA, David A. Jiménez. Contra la hedonia depresiva: el aburrimiento como tratamiento estético. Universitas Philosophica, año 38, v.77, p.67-90, 2021.

CANNIELO, Angelica; SOUZA, Luciana Coutinho Pagliarini de. A perspectiva da moralidade nos games de conteúdo violento. INTERIM, v.27, n.1, 2022.

CARRASCOZA, João Anzanello. A publicidade sem caráter e a estética do velamento. RuMoRes, v. 14, n.27, p.169-188, 2020.

CHAGAS, Eduardo. O defeito da lei universal do entendimento. Revista Dialectus, ano 2, n.3, p.1-17, 2013.

ESPINOSA, Luciana; GRECO, María Beatriz; PENCHASZADEH, Ana Paula; FERRIER, María Cristina Ruiz del Ferrier; SFERCO, Senda. ¿Por qué (no) ler a Byung-Chul Han?. Buenos Aires: Ubu Ediciones, 2018.

FANJUL, Sergio C. Byung-Chul Han: “O celular é um instrumento de dominação. Age como um rosário”. El País (Online), Cultura, Ideas, 2021.

HAN, Byung-Chul. A salvação do belo. Petrópolis: Vozes, 2019a [2015].

HAN, Byung-Chul. Bom entretenimento: uma desconstrução da história da paixão Ocidental. Petrópolis: Vozes, 2019b [2018].

HAN, Byung-Chul. Filosofía do zen-budismo. Petrópolis: Vozes, 2019c [2002].

HAN, Byung-Chul. Hegel y el poder: un ensayo sobre amabilidad. Barcelona: Herder, 2019d [2005]. E-book (e-pub).

HAN, Byung-Chul. Hiperculturalidade. Petrópolis: Vozes, 2019e [2005].

HAN, Byung-Chul. Louvor à terra: uma viagem ao jardim. Petrópolis: Vozes, 2021.

HAN, Byung-Chul. La desaparición de los rituales: una topología del presente. Barcelona: Herder, 2020a [2019]. E-book (e-pub).

HAN, Byung-Chul. Muerte y alteridad. Barcelona: Herder, 2020b [2002]. E-book (e-pub).

HAN, Byung-Chul. O que é o poder?. Petrópolis: Vozes, 2019f [2005]. E-book (e-pub).

HAN, Byung-Chul. No enxame: perspectivas do digital. Petrópolis: Vozes, 2018a [2013].

HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte/Veneza: Editora Âyiné, 2018b [2014].

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017a [2010].

HAN, Byung-Chul. Sociedade da transparência. Petrópolis: Vozes, 2019g [2012].

HAN, Byung-Chul. Topologia da violência. Petrópolis: Vozes, 2017b [2011].

HEGEL, Friederich. Fenomenologia do espírito. Petrópolis: Vozes, 2007 [1807].

HEGEL, Friedrich. Phänomenologie des Geistes. Stuttgart: Phillip Reclam jun., 1987 [1807].

HEIDEGGER, Martin. El ser y el tiempo. 11. Ed. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1967 [1927].

HEIDEGGER, Martin. Sein und zeit. Tübingen: Max Niemeyer Verlag, 1967 [ 1927].

HEIDEGGER, Martin. Camino de campo/Der Feldweg. Trad.: Carlota Rubies. Barcelona: Herder, 2012 [1989].

HUIZINGA, Johan. Homo ludens. São Paulo: Perspectiva, 2000 [1938].

KANT, Immanuel. Kritik der reinen Vernunft. E-Book. 2ª publicação. Alemanha: Project Gutemberg. 2004 [1788]. DIsponível em: < https://www.gutenberg.org/cache/epub/6342/pg6342.html>. Acesso em: 20/07/2022.

KANT, Immanuel. Kritik der Ursteilskraft. E-Book. Alemanha: Projeto Gutemberg, 1922 [1790]. Disponível em: <https://archive.org/stream/kritikderurteils00kantuoft/kritikderurteils00kantuoft_djvu.txt>. Acesso em: 20/07/2022.

KANT, Immanuel. Critique of judgement. Inglaterra: Oxford University Press. 2007 [1790].

NEUSER, Wolfgang. Entendimento e força: Sobre um aspecto fundamental da filosofia da natureza na Fenomenologia do Espírito de Hegel. Revista Estudos Hegelianos, ano 5, n.9, p.37-47, 2008.

RIBAS, Maria Cristina Cardoso. Estudos literários, leitura e experiência estética: conexões e(m) tempos de confinamento. Pensares em Revista, n. 18, p. 142-163, 2020.

SCHMIDT, Albano Francisco; GUSSO, Luana de Carvalho; CARELLI, Mariluci Neis. O patrimônio cultural e os jogos: o estado de fluxo como facilitador da interface patrimonial. Revista Confluências Culturais, v.9, n.1, p.133-143, 2020.

SENNETT, Richard. The fall of public man. New York/London: W. W. Norton & Company, 1992 [1977].

TAYLOR, Francesca Teltscher. The self as experienced aesthetically: the reflective relationship between Immanuel Kant, Heinrich von Kleist, and Byung-Chul Han. Colloquy, n.34, p.43-62, 2017.



[1] Ao mencionar os títulos das obras de Byung-Chul Han e citações de excertos utilizo a seguinte regra para a menção ao ano: (ano da publicação da tradução [ano de publicação do original].

[2] Muerte y alteridad (2020b [2002]), Hegel y el poder (2019d [2005]), O que é o poder? (2019f [2005]), La desaparición de los rituales (2020a [2019]) contam com formato epub, o que altera as paginações em comparação com as obras impressas.

[3] Cf. Entretenimento moral e Entretenimento saudável em Han (2019b [2018]) e Belo digital, Estética do desastre e Ideal do belo em Han (2019a [2015]).

[4] O mesmo sucede com o conceito de belo em Salvação do belo (2019a [2015]).

[5] As representações e sentidos mentais das coisas percebidas.

[6] A qual se compreende por outros avatares, como bem mostra o sumário de Sociedade da Transparência (2017), embora pudesse ser condensada na denominação hipermodernidade (Han, 2019). Cf. Hipertexto e hipermodernidade em Han (2019).

[7] O que se estende para No enxame (2018a [2013]) em obras posteriores para a internet e em Salvação do Belo (2019a [2015]) para aparelhos celulares. Isto atualiza os exemplos usados por Heidegger (1967), como o rádio e o jornal, meios de comunicação inovadores para a primeira metade do século XX.

[8] Como presente em Filosofia do Zen-Budismo, o teatro Nô aparece como recurso mimético de desinteriorização.

[9] Por outro lado, também pode-se afirmar, como em Filosofia do Zen-Budismo (2019c [2002]), que o amigo se faz presente mesmo na negatividade do outro, ou seja, mesmo lá onde não há jogo ou jogadores.

[10] Han (2018b [2014]) denomina a isto psicopolítica em reformulação à biopolítica de Michel Foucault.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Hannah Arendt e a condição humana da pluralidade

Pensar por imagens: Vilém Flusser e a construção do pensamento na atualidade

A escrita como cuidado de si na obra tardia de Michel Foucault