Adorno, literatura e psicologia: ruminando o admirável mundo novo

Carlos César Barros*


            Este trabalho surgiu de um generoso convite para apresentar a relação entre literatura e filosofia em um dos principais representantes da teoria crítica da sociedade, ou Escola de Frankfurt, Theodor Wiesengrund Adorno (1903-1969). Diante da dificuldade da tarefa em si, dos meus esparsos e nada sistematizados conhecimentos sobre o tema, da intermitência do cursor na tela branca do computador, tomei a decisão de trabalhar de forma fragmentada. Além dos fragmentos serem uma marca no trabalho de Adorno, com eles é mais fácil ceder aos devaneios que, segundo Freud, auxiliam os escritores criativos. No meu caso, não se trata de um escritor, mas de alguém que escreve e que precisa tomar uma decisão imediata, versão apressada da criatividade, sobre os caminhos a seguir na escrita. Em meio a inúmeras folhas rabiscadas em sessões de associação livre, misturadas aos textos do filósofo que se aproximam da temática deste dossiê, o desenho que se esboçou foi mais ou menos o seguinte: falar sobre Adorno e literatura, eis o ponto de partida, mas cheguei ao autor pela psicologia... sempre me encantei e me incomodei com a forma de exposição de Adorno, que comecei a entender, ou encontrar as bases da minha dificuldade de entendimento, quando assisti a um recital com algumas de suas composições musicais... dentre seus ensaios de crítica literária que mencionam temas psicológicos, ali estava aberto um sobre Aldous Huxley, de quem já havia lido o “Admirável mundo novo”... condensando tudo isso e mais algumas associações que apresentarei mais adiante, cheguei ao título que você leu ali no topo da página.

            Literatura, filosofia, ciência e música se entrelaçam para compor a teia conceitual adorniana. Além de ensaios específicos sobre poetas e romancistas, tais como Hölderlin, Heine, Kafka, Valéry, as teses de um dos principais textos de Horkheimer e Adorno (1985), “Conceito de esclarecimento”, são defendidas com alusões diretas a Homero e Sade, por exemplo, que ganham o mesmo tratamento de Bacon, Kant e Nietzsche. Nosso esforço, no entanto, será voltado para breves análises de temas psicológicos encontrados num ensaio de Adorno sobre Aldous Huxley. Para justificar e preparar tais análises, vamos antes nos demorar em preliminares que, esperamos, proporcionem ao leitor os prazeres que pensar sobre elas proporcionou.

            Toda esta apresentação é para dizer que abordaremos o tema a partir da escolha de alguns aforismos adornianos sobre temas psicológicos em Aldous Huxley. Para justificar a escolha de aforismos em um ensaio, precisamos falar sobre como Adorno escrevia. Para falar sobre sua escrita, por sua vez, foi necessário abordar a forma como ele compôs música. Para entender como a linguagem musical ressoa na crítica literária, abordamos o papel da crítica cultural no pensamento do autor. Falaremos sobre como tudo isso foi construído e articulado, contando um pouco de história...
           
MÚSICA E FILOSOFIA

            Adorno foi um jovem prodígio que, desde muito cedo, dedicou-se à música, filosofia e literatura. Sua mãe era cantora. A tia, irmã da mãe, era uma pianista conhecida na Alemanha. Tais fatos explicam a paixão precoce pelo estudo da música e, como ele mesmo diria, a base musical de sua compreensão do mundo. A filosofia chegou um pouco mais tarde, com o hábito de, aos sábados, estudar a “Crítica da razão pura” de Immanuel Kant junto de seu amigo, catorze anos mais velho, Siegfried Kracauer. Com este também veio o gosto pela teoria literária, principalmente a partir da “Teoria do romance” de György Lukács, publicada no início dos anos vinte. Outra obra influente, que relacionou a estética às possibilidades transformadoras da cultura, e que muito impressionou Adorno, foi “Espírito e utopia” de Ernst Bloch. Apresentamos brevemente, nesta primeira seção, como os pilares da forma ou do estilo de Adorno filosofar, compor, fazer crítica literária e pensar a cultura se entrelaçam com a história de sua formação inicial.

            A vida acadêmica não era o interesse central de Adorno. Quando terminou sua graduação, em torno dos 21 anos, viveu uma crise sobre qual profissão seguir. Foi quando conheceu Alban Berg, um importante compositor influenciado pelo expressionismo romântico e pelo dodecafonismo. Tornou-se aluno de Berg em Viena, também de Schönberg, decidido a ser compositor e pianista. Sua primeira publicação filosófica só veio a aparecer depois de diversos artigos dedicados à crítica musical.  Encontrou na música nova de Schönberg uma síntese da visão de mundo que construiu com Kracauer, Lukács e Bloch. (WIGGERSHAUS, 2002).

            Seu período em Viena, porém, não foi tão promissor quanto esperava. Resolveu voltar para Frankfurt, onde passou a se dedicar à filosofia, pensando em seguir carreira no campo da estética. Pediu ajuda ao professor Hans Cornelius e a seu assistente, Max Horkheimer, para a elaboração de sua tese que, em princípio, foi um estudo sobre o inconsciente na filosofia transcendental. Neste chegou a uma leitura elogiosa de Freud, cuja obra apresentava um potencial crítico ao organicismo e à metafísica dos impulsos. De forma implícita, inseriu na tese alguns motivos marxistas. Apresentou o trabalho em 1927, mas Cornelius não o aceitou e Horkheimer não o teria apoiado por não ser suficientemente marxista. Retirou sua candidatura, voltou a se dedicar à música e estreitou relações com Walter Benjamin, cuja tese sobre o drama barroco também havia sido rejeitada. A retomada do projeto acadêmico se dá no início dos anos trinta, já sob orientação de um teólogo protestante socialista, Paul Tillich. Em 1931 Adorno se doutorou com uma tese sobre estética em Kierkegaard, que veio a ser também sua primeira publicação filosófica.

            Tais notas biográficas foram aqui reunidas como acompanhamento para a voz principal, que se destaca enunciando que o método e a escrita de Adorno são inaugurados muito mais na música que na filosofia:

Foi no final dos anos 20 que surgiram as primeiras aplicações de uma certa amplidão daquilo que Adorno tinha aprendido no contato com Kracauer, Lukács, Schönberg, Bloch e Benjamin. […] A teoria histórico-hegelianizante de Lukács da consciência de classe, a crítica feita por Kracauer da semi-racionalização capitalista e a confrontação por Benjamin da natureza mítica e da luz racional da redenção reuniram-se sob a pena de Adorno para legitimar a revolução musical de Schönberg. (WIGGERSHAUS, 2002, p. 121).

         Se a missão da escrita de Adorno era a de legitimar a revolução do “compositor dialético”, como ele veio a caracterizar Schönberg, uma primeira tarefa que começava a se impor era a da transliteração da composição dialética escrita na pauta musical para a escrita em prosa filosófica. Wiggershaus (2002, p. 124) apresenta os comentários lúcidos de Tillich, que já via em Adorno uma orientação para a “salvação estética” e uma filosofia “cuja verdade reside na interpretação dos mais diminutos detalhes de um instante histórico”; e de Horkheimer, que chamou atenção para a formulação linguística peculiar da tese.

            No mesmo ano do doutorado de Adorno, 1931, Horkheimer assumia a direção do Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt com a proposta de uma filosofia social de inspiração marxista, focada no trabalho interdisciplinar das ciências particulares empíricas. Em 1932 Adorno pronunciou seu discurso de professor assistente, buscando conciliar suas influências filosóficas com a academia e as ciências. “O discurso inaugural de Adorno deu a impressão de ser um passo na direção de Horkheimer, mas permanecia, quanto ao fundo, um programa teológico-materialista no espírito de Benjamin e Kracauer” (WIGGERSHAUS, 2002, p. 125).

            Conhecendo algo da formação inicial de Adorno, podemos entender um pouco de como a música é o eixo central de sua compreensão e expressão do mundo. As relações que estabeleceu entre música e filosofia são bastante profundas, a ponto de entender música como filosofia e filosofia como música. A estética não é apenas a filosofia dos juízos, mas também dos sentidos e emoções. A escrita de textos, tal como das partituras, tem um compromisso social não apenas no conteúdo, mas também na forma. Antes, porém, de nos debruçarmos sobre tal questão, veremos como Adorno relacionou crítica social e literatura.
           
CRÍTICA CULTURAL E LITERATURA

            Vamos, agora, buscar entender como a obra literária se insere no contexto filosófico de Adorno, com status privilegiado em um projeto multidisciplinar de teoria crítica, assumindo seu posto junto à filosofia e às ciências. Veremos que a literatura pode ser um instrumento para a dialética. Não apenas é um campo privilegiado de descrição minuciosa da sociedade, também se constitui em um meio de estudo e crítica da ideologia enquanto falsa consciência, um campo em que a transformação social é um potencial. A obra literária com tal potencial, que cabe ao crítico evidenciar, nem sempre é aquela manifestamente engajada, o que aprenderemos com alguns trechos de Adorno sobre Paul Valéry. Com a ajuda desses excertos começaremos a compreender a importância dada à forma na escrita de Adorno.

            A crítica da cultura não apenas rima com a crítica da razão pura. As contradições desta se fazem presentes naquela. Colocar a cultura no banco dos réus é apontar para seus limites, mas principalmente para suas possibilidades, ainda que limitadas. Uma das primeiras antinomias do crítico cultural é a de que este só se incomoda com o estado da cultura porque assume uma posição privilegiada dada pela própria cultura injusta (ADORNO, 2001b). Outros incômodos do crítico vêm do fato de seu trabalho ser determinado por uma aristocracia que ganha distinção na desordem cultural e de não ter como escapar de ser propagandista, em uma autoritária lógica de mercado, das obras que analisa: “os críticos da cultura ajudam a tecer o véu” (ADORNO, 2001b, p. 9). A crítica, no entanto, mesmo enredada em contradições, apresenta elementos importantes. Não por acaso os nazistas tentaram substituir o termo “crítica” por “contemplação da arte”. “A crítica é um elemento inalienável da cultura, repleta de contradições e, apesar de toda sua inverdade, ainda é tão verdadeira quanto não-verdadeira é a cultura” (ADORNO, 2001b, p. 11).

            A dinâmica da sociedade acaba por atribuir o papel transformador da cultura, com suas contradições, à crítica cultural. É nesse cenário que um pensamento que se propõe dialético, ao contrário de alguns marxismos, precisa lançar mão da crítica cultural:
A teoria dialética […] está obrigada a assumir para si mesma a crítica cultural, que é verdadeira na medida em que traz a inverdade à consciência de si mesma. Se a teoria dialética mostra-se desinteressada pela cultura enquanto um mero epifenômeno, acaba contribuindo para que a confusão cultural continue a se propagar e colabora na reprodução do que é ruim […]. O que distingue a crítica dialética da crítica cultural é o fato de a primeira elevar a crítica até a própria suspensão [Aufhebung] do conceito de cultura. (ADORNO, 2001b, p. 18).
          Em uma manifesta crítica ao materialismo despótico russo, tradicionalista em termos de estética cultural, Adorno menciona a relação mais estreita entre crítica cultural e crítica dialética, enunciando sua proposta. A cultura não é mero epifenômeno ou superestrutura, ela mantém uma relação complexa com a base econômica da sociedade que deve ser “superada”, para usar a polissemia de Aufhebung, tal como a cultura contraditória que condena, mas torna imprescindível, a crítica cultural.

            A tarefa da crítica está em decifrar quais elementos da tendência geral da sociedade  manifestam e efetivam os interesses mais poderosos: “a crítica cultural converte-se em fisiognomia social” (ADORNO, 2001b, p. 21). Ao defender a crítica imanente, Adorno nos apresenta uma ideia de como trabalha as obras culturais. Estas expressam as contradições entre ideia e existência, a negatividade que se contrapõe ao caráter afirmativo da cultura (MARCUSE, 1997), mas não podem ser reduzidas às características psicológicas de seu autor, num psicologismo apegado a imagens encobridoras. As contradições derivam do que há de irreconciliável entre o objeto cultural e a objetividade da cultura:
crítica imanente de formações espirituais significa entender, na análise de sua conformação e de seu sentido, a contradição entre a ideia objetiva dessas formações e aquela pretensão, nomeando aquilo que expressa, em si, a consistência e a inconsistência dessas formações, em face da constituição da existência. […] A compreensão da negatividade da cultura só é concludente quando demonstra ser a prova certeira da verdade ou inverdade de um conhecimento, da coerência ou incoerência de um pensamento, do acerto ou desacerto de uma formação, da substancialidade ou nulidade de uma figura de linguagem. Quando depara com insuficiências, não as atribui precipitadamente ao indivíduo e sua psicologia, ou à mera imagem encobridora do fracasso, mas procura derivá-la da irreconciliabilidade dos momentos do objeto”. (ADORNO, 2001b, p. 23).          
            O autor é representante da complexidade social, o que se pode compreender no belíssimo texto de Adorno (2003) sobre Paul Valéry, “O artista como representante”. O caráter artístico e político é inerente às obras de arte, principalmente às que não se propõem ao engajamento. As engajadas talvez acabem por trair sua própria intenção ao querer transformar o mundo antes mesmo de descrevê-lo e interpretá-lo.
Em tais obras […] pode se manifestar um profundo conhecimento das transformações históricas da essência, mais profundo que o das declarações daqueles que tão ansiosamente se dispõem a modificar o mundo, mas correm o risco de deixar escapar justamente o peso insuportável do mundo que pretendem modificar. (ADORNO, 2003a, p. 153).
            A literatura passa a fazer parte do grupo de gêneros culturais que se correspondem quando o objetivo é compreender e transformar o mundo, tal como a filosofia, a música, a pintura e, até mesmo, a ciência: “toda perfeição em seu gênero aponta para além de seu próprio gênero”, Adorno (2003a, p. 155) nos recorda Göethe. A obra de arte, a obra literária, é aquela que apresenta o negativo do que existe, a possibilidade de superação da cultura em que nos encontramos. É um instrumento da dialética que não se resigna.
Um homem que não é possuído por uma presença dessa intensidade é um homem desabitado: um terreno baldio. O amor, sem dúvida, e a ambição, assim como a sede de lucro, povoam poderosamente uma vida. Mas a existência de um objetivo positivo, a certeza de estar próximo ou distante, de alcançá-lo ou não, faz com que estas paixões se tornem paixões finitas. Inversamente, o desejo de criar alguma obra em que apareça mais potência ou perfeição do que encontramos em nós mesmos afasta indefinidamente de nós esse objeto que escapa e se opõe a cada um de nossos instantes. Cada um de nossos progressos o embeleza e o afasta. A ideia de dominar inteiramente a prática de uma arte, de conquistar a liberdade de fazer uso de seus meios com tanta segurança e leveza quanto de nossos sentidos e membros em seus usos comuns, é daquelas ideias que extraem de certos homens uma constância, um dispêndio, exercícios e tormentos infinitos. (VALÉRY apud ADORNO, 2003a, p. 157).
             A obra supera o artista que, como no caso de Valéry, apresenta uma intuição mais profunda da essência social da arte que a dos autores engajados. Adorno (2003a, p. 158) afirmou que “Valéry é atual […] porque contrapõe ao espírito pragmático e de fôlego curto as exigências das coisas desumanas, por amor ao humano”. A coisa se impõe ao artista, a obra de arte é mais resultado do objeto inspirador que da criatividade. A obrigação objetiva é semelhante em Valéry, em Schönberg, em Leonardo da Vinci e na ciência (ADORNO, 2003a).

            Começamos a encontrar importantes pistas para elucidar o estilo da escrita filosófica de Adorno, que se aproxima da música de Berg, da poesia de Hölderlin, ou mesmo da prosa de Valéry, à qual confessa invejar, a partir do seguinte trecho:


A arte que ele oferece como contrapartida aos homens, tais como eles são, significa fidelidade à imagem possível do homem. A obra de arte que exige o máximo de sua própria lógica e coerência, assim como o máximo de concentração de seus receptores, é para ele uma analogia do sujeito consciente e mestre de si mesmo, que não capitula. […] Toda sua obra é um protesto único contra tornar as coisas mais fáceis, renunciando à felicidade plena e a toda verdade. É melhor perecer buscando o impossível […] ele encarna a resistência contra a pressão indizível exercida sobre o que é humano pelo que meramente existe. Ela representa o que nós poderíamos ser um dia. Não se tornar estúpido, não se deixar enganar, não ser cúmplice: estes são os modos de comportamento social sedimentados na obra de Valéry, uma obra que recusa o jogo da falsa humanidade, da aprovação social à humilhação do homem. (ADORNO, 2003a, p. 163).

FORMA

            Para alguém que apreendeu o mundo com os ouvidos, melodia, ritmo e harmonia ganham as mais variadas formas. Uma delas, e a que mais nos interessa, é a forma do texto. A música se torna texto na partitura, mas sua transliteração, mais evidente no verso, também se faz na prosa. O alfabeto de breves e semifusas pode ser inferido em afirmações como esta em que Adorno compara a palavra isolada, que se esquiva do chavão literário, à evitação do clichê musical: “Uma palavra isolada é raramente banal: na música também, o som isolado resiste ao desgaste”. (ADORNO, 1993, p. 73). Mais explícito e sedutor é o seguinte trecho sobre sinais de pontuação:
Em nenhum de seus elementos a linguagem é tão semelhante à música quanto nos sinais de pontuação. A vírgula e o ponto correspondem à cadência interrompida e à cadência autêntica. Pontos de exclamação são como silenciosos golpes de pratos, pontos de interrogação são acentuações de frases musicais no contratempo, dois pontos são acordes de sétima da dominante; e a diferença entre vírgula e ponto-e-vírgula só será sentida corretamente por quem percebe o diferente peso de um fraseado forte e fraco na forma musical. (ADORNO, 2003c, p. 142).
          Se formos de alguma forma capazes de ouvir a musicalidade da escrita adorniana, arriscaremos a tese de que tal semelhança não se faz apenas entre certos elementos dos textos literários ou musicais, tais como notas, silêncios, acordes e sinais de pontuação, mas na própria estrutura textual.

            Defendo esta tese com base em um insight ocorrido lá pelos idos de 2003, quando, imerso nas peças textuais de Adorno, fui envolvido por algumas de suas obras sonoras em um recital que integrou o evento “Adorno Hoje”, em homenagem ao centenário de seu nascimento. Freud talvez pudesse compreender, mais que explicar, porque, por acaso, guardei o programa do recital entre as páginas do livro “Notas de literatura I”, de onde extraí a citação acima. Pois bem, em primeira instância, apresento a defesa de que a sensação mais direta que as peças musicais de Adorno me causaram foi muito semelhante à da primeira leitura de algum de seus ensaios: isto me diz coisas muito importantes e bem elaboradas, mas fiquei perdido, com uma certa vertigem, sobre o que realmente ele quis expressar. Em segunda instância, preciso de um argumento mais convincente que meus sentimentos. Lembrei-me de minhas anotações feitas e refeitas, abandonadas em momentos desesperançosos ou retomadas em arroubos de humilde otimismo interpretativo, sobre o “Conceito de esclarecimento” (HORKHEIMER; ADORNO, 1985). Lembro-me de haver identificado que os primeiros nove parágrafos do texto eram separados do décimo por um espaço. Mais interessante ainda: que esses nove parágrafos apresentavam os principais temas a serem ainda mais elaborados no segundo movimento do texto. Desde aquele dia do recital passei a acreditar que o escrito a quatro mãos, que soava num estilo muito diferente dos textos escritos apenas por Horkheimer, tivesse o toque do compositor Adorno, que expõe temas musicais, em sua música ou em seu texto, no primeiro movimento da sinfonia, passando a desenvolvê-los no segundo movimento.

            Comentei o fato com um professor que lia, e ainda lê, Adorno muito melhor que eu. Ele não se preocupou muito com o fato, mas, prudente, recomendou que eu conferisse se não era uma idiossincrasia da edição nacional, se aquele sinal de silêncio no texto era um elemento da obra original. Ansioso, fui à biblioteca e encontrei a versão em alemão do texto, lá estava o silêncio na forma de um pular de linha! Hoje tenho meu próprio exemplar alemão do livro (HORKHEIMER; ADORNO, 1988), que apresenta na página 23 o mesmo espaço entre os parágrafos 9 e 10, presente na página 30 do exemplar brasileiro. Convém mencionar que a edição alemã apresenta ainda um espaço entre os parágrafos 15 e 16, que nossa edição não levou em conta...

            Não é de qualquer forma musical, porém, que estamos falando. Recordemos que Adorno se inspirou na música de Schönberg. O atonalismo de seus textos foi elucidado em seu “Ensaio como forma”, no qual destaca a preocupação que o conteúdo exige da forma:
a exposição é, por isso, mais importante para o ensaio do que para os procedimentos que, separando o método do objeto, são indiferentes à exposição de seus conteúdos objetivados. O “como” da expressão deve salvar a precisão sacrificada pela renúncia à delimitação do objeto, sem todavia abandonar a coisa ao arbítrio de significados conceituais decretados de maneira definitiva. (ADORNO, 2003b, p. 29).
             Aos que separam o método do objeto, ou impõem o método ao objeto, a exposição é de menor importância. Para eles serve a exposição totalitária e totalizante, sistemática, com começo, meio e fim, orbitando em torno de um tema único. Em oposição à subordinação da exposição a um sistema de pensamento, Adorno desenvolve sua expressão dialética por meio de fragmentos avessos à imposição de um sistema de pensamento sobre os objetos. Apresenta temas diversos em um mesmo ensaio, ou melhor, em um mesmo parágrafo, fazendo uso predominante de períodos compostos por coordenação. Com isso, deixa intencionalmente um espaço criativo entre o leitor e o texto, conexões em aberto que fazem do leitor um agente no ato de ler; desfaz a ilusão de conhecimento absoluto por parte de um sujeito fora do espaço e do tempo que lê sobre um objeto bem definido: sujeito e objeto são fragmentados e dinâmicos na construção histórica do conhecimento.

AFORISMOS, PARATAXE E INTEPRETAÇÃO

            A opção pelos aforismos como forma de expressão é algo bastante peculiar à escrita de Adorno. Leitor e crítico do Novum Organum de Francis Bacon, tal como da obra de Nietzsche, encontrou nos aforismos uma forma fragmentária de expressão, que respeita o objeto e o sujeito, não apreensíveis em suas totalidades ou por um sistema totalitário. Para além de sua crítica da técnica, levada às últimas consequências no aforismo que ressoa Bacon, “Novissimum organum” (ADORNO, 1993), podemos reconhecer em Adorno aquilo que Nietzsche, outro que vê semelhanças entre literatura e música, descreve tão bem no prólogo da “Genealogia da moral”, ao falar da incompreensibilidade, ou da dissonância, de seu texto:
a forma aforística traz dificuldade: isto porque atualmente não lhe é dada suficiente importância. Bem cunhado e moldado, um aforismo não foi ainda “decifrado”, ao ser apenas lido: deve ter início, então, a sua interpretação, para a qual se requer uma arte da interpretação. […] É certo que, a praticar desse modo a leitura como arte, faz-se preciso algo que precisamente em nossos dias está bem esquecido […], para o qual é imprescindível ser quase uma vaca, e não um “homem moderno”: o ruminar... (NIETZSCHE, 2009, p. 14).
            O aforismo não pode ser apenas lido, precisa ser decifrado. Tal como uma música, que não se ouve quando apenas escrita, precisa ser interpretada. O intérprete, instrumentista ou cantor, é também um artista, portanto, ler aforismos é fazer arte. A leitura é uma arte que se tornou alheia ao “homem moderno”, que aprende a ler manuais operacionais, que na dinâmica busca velocidade, mas não musicalidade e sutilezas interpretativas. Nietzsche nos convida à arte de ruminar... Cabe, no entanto, lembrar que Adorno desconfiava da relação entre a “afirmação” e a felicidade em Nietzsche, propondo, por sua vez, relacionar o fragmento e o instante com a “negatividade”, única imagem possível da felicidade em nossos tempos (ADORNO, 2003b).

            Adorno chama atenção para uma imagem que nos ajuda a compreender como um texto bem escrito convida à arte interpretativa, atrai as metáforas e ideias do leitor, tal como insetos, à sutil e fascinante estrutura da teia de aranha.
Os textos bem elaborados são como teias de aranha: densos, concêntricos, transparentes, bem estruturados e sólidos. Eles atraem para dentro tudo o que voa e rasteja. As metáforas que os atravessam apressadas e descuidadas, tornam-se para eles presas nutritivas. Os materiais afluem facilmente para eles. A plausibilidade de uma concepção pode ser julgada vendo se ela evoca citando outras citações. Tendo descerrado uma célula da realidade, é necessário que o pensamento penetre sem violência do sujeito a câmara seguinte. Ele confirma sua relação com o objeto tão logo outros se cristalizem a seu redor. Na luz que ele irradia sobre o seu objeto determinado outros começam a cintilar. (ADORNO, 1993, p. 75).
       O aforismo nos conduz a outras citações, abre portas para novos ambientes de pensamento. Cristaliza novos objetos ou temas. Ilumina seu próprio objeto, mas empresta algo de sua luz cintilante para outros objetos. A luz que Adorno colocou sobre o texto de Huxley, de uma forma geral, chamou nossa atenção para um objeto desses que estava ali do lado: a psicologia.

            Precisamos, ainda, elucidar nosso método de ler Adorno com base no próprio escritor. Nem todos os textos de Adorno são aforismos, tal como o texto sobre Huxley. No entanto, a prosa adorniana é rica em justaposição de temas que, muitas vezes, são expressos como densas melodias coordenadas entre si, temas aparentemente independentes que rompem com a tonalidade dos textos convencionais em um atonalismo literário. Ele próprio nos ajuda a compreender sua forma de composição, musical e textual, em um texto sobre o poeta Hölderlin. Adorno defende Hölderlin de interpretações idealistas e dos que o consideraram um poeta secundário destacando a seriedade da forma de escrita do poeta que, em suas células linguísticas, “manifesta ao espectador segregação, separação de sujeito e objeto” (ADORNO, 1991, p. 97).
Enquanto o proceder hölderliniano […] não prescinde do método das construções hipotáticas audaciosas, treinado naquele dos gregos, apresenta-se com parataxes funcionando como desordens artísticas, que se esquivam à hierarquia lógica da sintaxe subordinativa. […] É à maneira da música que se sucede a transformação da linguagem num alinhamento cujos elementos se conectam de outro modo que no raciocínio. (ADORNO, 1991, p. 100).
              O esforço de Hölderlin em não sucumbir ao todo harmônico ou à identidade entre sujeito e objeto se expressa não apenas no conteúdo, mas também na forma. Tal como a escrita de Adorno, combate a ordem vigente e sua hierarquia por meio do uso da parataxe e de suas desordens atonais, possibilitando experiências de leitura que buscam escapar à racionalidade instrumental. “A renúncia à afirmação predicativa tanto aproxima o ritmo de um processo musical” (ADORNO, 1991, p. 101) quanto a forma de Hölderlin lembra a do estilo tardio de Beethoven. “Dirigiu-se sintaticamente contra a sintaxe, usando um artifício tradicional: a inversão do período” (ADORNO, 1991, p. 106):
Tem-se inversão das palavras no período. Maior e mais eficiente, porém, deve, pois, ser a inversão dos próprios períodos. A colocação lógica dos períodos, onde à base segue o devir, o objetivo e ao objetivo o fim, sendo que as frases subordinadas sempre seguem atrás das principais, as quais se referem imediatamente, com extrema raridade podem ser empregadas pelo poeta. (HÖLDERLIN apud ADORNO, 1991, P. 105).
            É ainda importante ressaltar que além das parataxes existem em Hölderlin as correspondências alegóricas, a aproximação de temas ou nomes distantes que possibilitam toda uma riqueza interpretativa. Talvez seja ainda possível mencionar mais uma vez a influência do compositor Alban Berg: “Adorno observa que a escrita de Berg, por sua coesa articulação, constitui uma intensa reflexão sobre a linguagem, uma reflexão prática no plano da matéria sonora, que não é diferente da maneira pela qual Adorno entrevê a escrita filosófica” (OLIVE, 2010, p. 18).

            Em síntese: mesmo quando Adorno não escreve aforismos, escreve ensaios com períodos coordenados que se apresentam como autênticos aforismos. Graças a isso, podemos analisar alguns fragmentos de seu texto, interpretando-os, aproveitando a forma aberta de seus ensaios, tal como ele fez com peças musicais ou com o livro de Huxley. O diálogo com toda a obra, no entanto, foi aqui sacrificado pela delimitação de nosso tema, que pode ser caracterizado como um daqueles objetos secundários que cintilam, iluminado pela insubstituível análise adorniana de Huxley: a psicologia.
           
ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO (OU RUMINAÇÃO) DE AFORISMOS SOBRE HUXLEY

            Quem já estudou um pouco de harmonia sabe que as composições musicais se fazem em movimentos de tensão e resolução, tal como na escrita regular. No entanto, a forma defendida por Adorno é fragmentária, atonal. Sobre a forma do ensaio, afirma:
ele precisa se estruturar como se pudesse, a qualquer momento, ser interrompido. O ensaio pensa em fragmentos, uma vez que a própria realidade é fragmentada; ele encontra sua unidade ao buscá-la através dessas fraturas, e não ao aplainar a realidade fraturada. A harmonia uníssona da ordem lógica dissimula a essência antagônica daquilo sobre o que se impõe. A descontinuidade é essencial ao ensaio; seu assunto é sempre um conflito em suspenso. (ADORNO, 2003b, p. 35).
           E ainda, confirmando a noção da parataxe: “O ensaio coordena os elementos, em vez de subordiná-los”. (ADORNO, 2003b, p. 43). Nossa proposta, nesse momento, é realizar uma análise de alguns desses momentos não subordinados, como se interrompêssemos o ensaio de Adorno sobre Huxley, isolando alguns de seus fragmentos para interpretá-los. Mais imprecisamente, não temos a pretensão de uma leitura artística à la Nietzsche, mas de destacar alguns aforismos adornianos sobre o Admirável Mundo Novo em que temos ilustrações sobre seu estilo de fazer crítica cultural por meio da literatura e da psicologia.

            Aldous Huxley (1894-1963) era de uma família nobre da Inglaterra. Escreveu o Admirável Mundo Novo no início dos anos trinta e foi morar nos Estados Unidos em 1937. Viveu boa parte dos anos vinte na Itália, o que lhe possibilitou acompanhar de perto o fascismo de Mussolini. O primeiro aforismo que destacamos de Adorno coloca Huxley em uma posição semelhante à sua, que também teve que sair da Alemanha nazista para viver no novo mundo. O espanto do intelectual europeu com a cultura estadunidense é o primeiro tema que destacamos desse outro exemplo de artista como representante.

        Aforismo 1
Brave New World de Huxley é o sedimento desse pânico, ou melhor, sua racionalização. O romance, uma fantasia futurista com enredo rudimentar, procura apreender o choque a partir do princípio de desencantamento do mundo, elevar esse princípio ao extremo do absurdo e derivar da compreensão da desumanidade a ideia de dignidade humana. (ADORNO, 2001a, p. 92)

            O primeiro destaque deste trecho é a própria noção de Novo Mundo que Adorno coloca nas entrelinhas de seu texto, mesmo que Huxley não o tenha sugerido: o admirável mundo novo se concretiza na feliz cultura dos Estados Unidos, o novo mundo em relação ao velho continente europeu. O pânico a que Adorno se refere é aquele do intelectual que não chegou aos Estados Unidos no século XIX para viver o sonho de enriquecer, mas daquele que chegou aos Estados Unidos para sobreviver no século XX. Alguns conceitos freudianos aparecem como notas centrais na partitura a ser interpretada: racionalização, fantasia, choque, pânico. O romance de Huxley fala sobre a condição objetiva não apenas de Huxley, mas dos intelectuais que entraram em pânico com a nova cultura. O pânico descreve uma situação em que os laços libidinais entre pares que possuem um ideal comum se desfazem. A energia psíquica que se voltava para um ideal externo agora é reinvestida no Eu, a percepção da realidade se torna crua e o pânico se instaura (FREUD, 2011). As camadas inconscientes da história, daquilo que acontece mas não temos como simbolizar, são como rochas sedimentares: o livro de Huxley é uma amostra do pânico sedimentado. Adorno, porém, encontrou uma imagem mais precisa que “sedimentação”, a de “racionalização”. Na verdade, o astuto escritor soma os significados dos dois termos. “Racionalização” não apenas fala da teoria freudiana: sobrepõe-se ao tema freudiano a melodia weberiana. Racionalização, aqui, é, ao mesmo tempo, uma sistematização defensiva aceitável de conteúdos inconscientes e o processo de instrumentalização ou desencantamento do mundo. O choque a que Adorno se refere, derivado de tal desencantamento, ganhou uma teorização complexa quando Benjamin (1994a) se dedicou a expandir o tema da memória em Freud com o auxílio de Proust, Baudelaire e Valéry. Para eles, o sonho e a lembrança são formas de atenuar os choques. O choque diante da padronização que a cultura estadunidense impõe aparece como a fantasia utópica negativa da reprodução de pessoas iguais, como a eliminação da espontaneidade, como um pesadelo diurno: “o Brave New World é um campo de concentração único, que, livre de seu oposto, toma a si mesmo por paraíso” (ADORNO, 2001a, p. 93). Os pesadelos diurnos também têm seu potencial premonitório: “Os vinte e cinco anos transcorridos desde a publicação do livro providenciaram confirmações suficientes: pequenos horrores como o exame de aptidão para ascensoristas, que seleciona os menos inteligentes, e outras visões apavorantes como o aproveitamento de cadáveres humanos”. (ADORNO, 2001a, p. 93). A “desumanidade” ainda merece algum desenvolvimento interpretativo. A dignidade humana, que se pode tomar como o elemento objetivo negativo a ser extraído do livro de Huxley em uma crítica dialética, lembra um tempo em que se propôs uma revolução humanista. O século XVIII conheceu a proposta do filósofo Herder de cunhar um novo termo para falar da humanidade que faria sua própria história: humanidade [Humanität] deveria substituir o termo alemão Menschheit que designa apenas seres humanos reunidos. Também no século XVIII se propôs uma organização social baseada na igualdade, na liberdade e na fraternidade. A desumanização, no entanto, levou Lukács, no século XX, a falar da coisificação do ser humano e Huxley a imaginar o lema do admirável mundo novo como o reverso da Revolução Francesa: “comunidade, identidade e estabilidade”.

        Aforismo 2
A panaceia que garante a imobilidade social é o conditioning, um termo de difícil tradução que entrou na linguagem coloquial norte-americana a partir da biologia e da psicologia behaviorista, nas quais designava o ato de provocar determinados reflexos ou modos de comportamento por modificações arbitrárias do meio ambiente e pelo controle das “condições”. […] No livro de Huxley o termo conditioning significa a perfeita pré-formação do ser humano por meio da intervenção social, desde a procriação artificial e o controle técnico do consciente e do inconsciente nos primeiros estágios da vida até o death conditioning, um training que retira das crianças o horror diante da morte, colocando-as diante de moribundos ao mesmo tempo que são distribuídas guloseimas, para que a partir desse momento as crianças associem a morte a algo doce. O efeito final do conditioning, a adaptação perfeita, é um grau de interiorização e apropriação das pressões e coerções sociais que supera em muito toda ética protestante: os homens se resignam a amar aquilo que devem fazer, sem nem mesmo saber que isso é um ato de resignação. (ADORNO, 2001a, p. 94).
            Desta vez a psicologia aparece de forma mais explícita, como a panaceia que garante a imobilidade e a estabilidade social. O termo “panaceia” nos remete diretamente a um texto que Horkheimer escreveu na mesma época em que ele e Adorno preparavam a “Dialética do Esclarecimento”, intitulado “Panaceias em Conflito” (HORKHEIMER, 2002). Uma das afirmações iniciais do texto nos será útil: “Já foi dito com frequência que todos os problemas que a filosofia tentou resolver, ou não têm sentido, ou podem ser resolvidos pelos modernos métodos experimentais”. (HORKHEIMER, 2002, p. 63). Sendo assim, nada melhor para resolver a questão da ordem social do que a proposta de ampliar o condicionamento a todos os ambientes e temas: do ar condicionado à morte condicionada. Uma característica bastante peculiar a Adorno é o uso irônico dos termos originais em inglês quando se refere ao exacerbado pragmatismo da cultura estadunidense. O conditioning que se estendia da inseminação artificial, passando pela gestação em máquinas até o momento da morte, lançando mão de sugestões hipnopédicas desde a primeira infância, ensinava a cada um o seu lugar no grande sistema social:
As crianças Alfas vestem roupas cinzentas. Elas trabalham muito mais do que nós porque são formidavelmente inteligentes. Francamente, estou contentíssimo de ser um Beta, porque não trabalho tanto. E, além disso, nós somos muito superiores aos Gamas e aos Deltas. Os Gamas são broncos. Eles se vestem de verde e as crianças Deltas se vestem de cáqui. Oh, não, não quero brincar com crianças Deltas. E os Ípsilons são ainda piores. São demasiado broncos para saberem... (HUXLEY, 1999, p. 30).
          O próprio Huxley destacou “o segredo da felicidade e da virtude: amar o que se é obrigado a fazer. Tal é a finalidade de todo o condicionamento: fazer as pessoas amarem o destino social a que não podem escapar” (HUXLEY, 1999, p. 19). A ordem social dependia do amor ao consumo e à tecnologia, mas também do ódio pelas emoções, pelas ligações com outros seres humanos e com a natureza. Adorno o enunciou descrevendo um novo tabu: “Eles vivem em aviões, mas obedecem ao mandamento: 'não voarás'” (ADORNO, 2001a, p. 96). Ao que poderíamos complementar com o trecho do romance: “elas crescerão com o que os psicólogos chamavam um ódio 'instintivo' aos livros e às flores”. (HUXLEY, 1999, p. 24). De certa forma, Huxley e Adorno teriam antecipado Foucault quando mencionaram o sufocamento científico como um meio totalitário de docilizar corpos e mentes. A semelhança se torna maior quando Adorno descreve Huxley como um liberal inspirado em Bentham (ADORNO, 2001a), o que não é difícil perceber no regresso de Huxley ao Admirável Mundo Novo (HUXLEY, [19-??]). Não por acaso, um dos personagens do livro interessado em escrever algo além de fórmulas hipnopédicas condicionadoras, o Dr. Helmholtz Watson, tinha dificuldades em escrever literatura: por um lado era proibido, por outro, as emoções eram raras. Shakespeare era proibido, mas também não poderia ser compreendido. As narrativas eram pobres porque já não fazia mais sentido a arte de narrar: a vida perde o sentido quando a morte também perde seu significado (BENAJMIN, 1994b). Tal como a literatura, a psicologia perde sentido quando torna sua linguagem simplificada e técnica. Ou pior, quando limita a linguagem às suas fórmulas prontas. Não por acaso Adorno invocou o nome de Thoureau para mencionar a sublevação contra o americanismo já no século XIX. O autor de “Walden” foi muito mais crítico que aquele escritor ingênuo que, não apenas planejou simplificar a linguagem, mas decidiu escrever uma segunda versão de Thoureau, cujo resultado deve tê-lo deixado envergonhado ao descobrir que Huxley foi mais preciso na descrição e melhor escritor que ele.

        Aforismo 3
Uma frase atribuída a Ford, “history is bunk”, joga na lata de lixo tudo que não corresponde aos mais recentes métodos industriais de produção, e finalmente tudo que se refere à continuidade da vida. […] O culto da ferramenta enquanto tal, dissociada de qualquer finalidade objetiva – no Brave New World domina literalmente a hoje ainda implícita religião do automóvel, com a substituição de Lord por Ford e da cruz pela marca do modelo T. (ADORNO, 2001a, p. 98).
            Oh Lord! Oh Ford! Oh Freud! Uma das mais perspicazes construções de Huxley foi tornar Ford o Deus (Lord) do admirável mundo novo. Mas, Sua Fordeza, gostava de algumas vezes ser chamado de Freud. Não apenas a psicologia behaviorista, mas também a psicanalítica, foi alvo da crítica de Huxley e, por consequência, de Adorno. “Entre as figuras da modernidade sobre as quais recai o anátema encontra-se também Freud, que em certa passagem é equiparado a Ford e transformado em mero efficiency expert da vida interior”. (ADORNO, 2001a, p. 99). Se Huxley foi explícito na substituição de Lord por Freud  e da cruz pelo T do modelo automotivo, Horkheimer e Adorno já falavam sobre a substituição da metafísica pelo Volkswagen no prefácio da Dialética do Esclarecimento. O culto da ferramenta, da racionalidade instrumental, é a expressão máxima do fetiche que vê nas coisas algo com valor muito maior ao daquele atribuído à vida. O valor de troca supera o valor de uso. A realidade não é mais aquela da história, das narrativas que dizem quem somos e quais os sentidos de nossas vidas. A realidade é efficiency. O princípio de realidade é princípio de desempenho (MARCUSE, [199-?]). Saúde, portanto, é amar e trabalhar. Isso não apenas para Freud e o freudismo, mas também para Ford e os habitantes do admirável mundo novo. A estrutura do homem como Id, Eu e Supereu, que possibilita compreender a semelhança entre neuróticos do século XX e selvagens dos primórdios da civilização, ou pensar o homem normal, não reconhece aquilo de histórico que há na subjetivação. “O conceito patético de 'homem eterno' resigna-se ao conceito, indigno do homem, de 'homem normal', o mesmo de ontem, hoje, amanhã. […] ele não inclui em sua reflexão o momento de uma práxis que poderia romper com essa infame continuidade”. (ADORNO, 2001a, p. 115). Não por acaso, um historiador da psicanálise recorreu ao trocadilho “fordismo”/“freudismo” (ZARETSKI, 2006). Adorno foi bastante explícito em seu texto sobre a relação entre psicologia e sociologia:
Segundo sua ideologia de ainda reivindicar a cura das neuroses, a psicanálise, em acordo com a práxis dominante e sua tradição, desacostuma os seres humanos do amor e da felicidade, em favor da capacidade de trabalho e da healthy sex life [vida sexual saudável]. A felicidade se torna infantilidade e o método catártico em algo mau, hostil, inumano. (ADORNO, 2015, p. 94).

        Aforismo 4
A espontaneidade individual é eliminada do processo histórico, mas em compensação o conceito de indivíduo é destacado da história e incorporado à philosophia perennis. A individuação, algo essencialmente social, torna-se novamente natureza imutável. O envolvimento do indivíduo na rede de culpa foi percebido pela filosofia burguesa em seu apogeu, mas essa compreensão deu lugar ao nivelamento empírico do indivíduo por meio do psicologismo. (ADORNO, 2001a, p. 112).
            O espontâneo, o singular, é aquilo que demonstra que o processo de massificação ainda não atingiu plenamente seu objetivo (ADORNO, 1993). O sistema, por sua vez, vinga-se reduzindo o conceito de indivíduo ao sempre igual, perene e natural. Nos anos quarenta, Huxley publicou um livro sobre a filosofia perene, que fala sobre a religião eterna ou sanáthana dharma. A metafísica de Huxley, que se faz presente também nas ciências naturais que recaem na mitologia (HORKHEIMER; ADORNO, 1985), torna o processo histórico de individuação uma constante biológica, seja na teoria dos impulsos, seja na noção de organismo adaptado ao meio. “O seu ponto de partida é um conceito invariante e biológico de necessidade. Toda necessidade humana, porém, é mediada historicamente em sua configuração concreta”. (ADORNO, 2001a, p. 106). O movimento de pensamento que imobiliza os indivíduos em categorias naturais, estende seu efeito aos grupos de indivíduos com características semelhantes, tal como no racismo. O admirável mundo novo apresenta o extremo dessa situação, que nos lembra, em boa medida, projeto genoma ou transgenia: “a relação de classes eternizada é transferida para a biologia, na medida em que os diretores responsáveis pela reprodução decidem ainda no estado embrionário sobre o pertencimento a esta ou aquela casta designada com uma letra do alfabeto grego”. (ADORNO, 2001a, p. 95). O apogeu da filosofia burguesa, que Adorno atribui à virada do século XVIII para o século XIX em alguns de seus textos, tratou de forma contraditória a individuação.
Com o crescente individualismo burguês, aquele conceito kantiano de personalidade foi rebaixado e atribuído a pessoas singulares que se definem, segundo seu próprio critério, mais pelo preço do que pela dignidade. Gradativamente, em virtude de quaisquer qualidades externas ou internas, o indivíduo será, de imediato, o que em Kant ele só era mediatamente pelo princípio de humanidade nele. […] Ao invés de se ter uma personalidade, como estava subjacente ao sentido kantiano, se é uma; em lugar do caráter inteligível, da melhor possibilidade em cada homem, põe-se o caráter empírico, o homem tal como está cunhado, tornando-o um fetiche. (ADORNO, 1995a, p. 64).
              Este trecho da “Glosa sobre personalidade” demonstra algo da estrutura do psicologismo pelo qual boa parte da ciência psicológica é responsável. O nivelamento empírico do indivíduo diz mais sobre preço do que dignidade, mais sobre a imediatez do fetiche do que sobre as mediações e potenciais do vir a ser da humanidade. O psicologismo sufoca a alteridade histórica, a diferença e o gesto espontâneo.

            Para terminar, cabe lembrar que à crítica social corresponde a consciência crítica dos indivíduos. Também não se deve esquecer, como fazem aqueles que veem nos textos de Adorno um beco sem saída ou um réquiem para nossos sonhos culturais, que nosso autor sempre mencionou espaços de liberdade nos quais nos individuamos, ainda que de forma distorcida. “Que o tempo livre [Freizeit] se transforme em liberdade [Freiheit]” (ADORNO, 1995b, p. 82) é um dos acordes finais de Adorno. Um mundo novo inteiramente outro é possível, ainda que no presente não seja admirável, a não ser de forma negativa. Sobre a consciência crítica, que mediaria as possibilidades de resistência e transformação emancipatória, Adorno não encontra notas consonantes, mas tensão melódica que descreve as contradições da noção de “pessoa correta” em versos de Hölderlin:
Pelo menos algo negativo pode ser dito sobre o conceito de pessoa correta. Ele não seria nem mera função de um todo que o afetasse tão profundamente que já não poderia distinguir-se dele, nem consolidação em sua ipseidade; essa, precisamente, é a estrutura do mau naturalismo que ainda perdura. Se fosse uma pessoa correta, já não seria uma personalidade; não seria um mero feixe de reflexos, senão algo distinto de ambos. É o que resplandece na visão hölderliniana do poeta: “Prossegue, pois, desarmado / Avante pela vida e nada temas!” (ADORNO, 1995a, p. 69).


AUTOR
*Carlos César Barros é psicólogo, mestre em educação e doutor em psicologia pela Universidade de São Paulo (USP), professor adjunto na Área de Psicologia do Departamento de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS).


REFERÊNCIAS

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FEIRA DE SANTANA-BA | nº 3 | vol. 1 | Ano 2016

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