Alcances e limites do conceito de sociedade civil em Antônio Gramsci

Valdenésio Aduci Mendes*
RESUMO: O trabalho faz análise dos alcances e limites do conceito de sociedade civil no pensamento político de Antônio Gramsci. O artigo está orientado pela seguinte questão: em que medida as reflexões políticas de Antônio Gramsci sobre a sociedade civil e o Estado projetam alcances teóricos e estratégias para repensar o problema político do presente, ou seja, o problema da disjunção entre economia e sociedade política e entre o Estado e a sociedade civil? No início analisa-se o conceito de Estado amplo, no qual Gramsci localiza a relação entre a força e o consenso, a relação entre sociedade política e sociedade civil. Neste sentido, Gramsci procura assimilar/superar a proposta da tradição hegeliana-marxista, que leva-nos até o centro da crítica de Gramsci perante o liberalismo económico, assim como ao economicismo atuante na tradição marxista. Conclui-se que o pensamento de Antônio Gramsci é atual no sentido de que continua sendo referência para questionar a perspectiva neo-liberal atual, que procura separar a esfera econômica da esfera política.
PALAVRAS-CHAVE: Sociedade civil, Estado, política, hegemonia, Moderno Príncipe.
Introdução
O tema da sociedade civil regressou ao centro do debate cultural e político, influenciado por duas vertentes: em primeiro lugar, a partir da década de 70 do século XX, em função da chamada “revolução” neoconservadora ou neoliberal, que desejava o questionamento do Estado como sujeito 'pleno' para sustentar a vontade de separação e de revanche do não-estatal, do econômico e do mercado sobre a política e sobre o Estado social. Num segundo momento, o conceito de sociedade civil começa a desempenhar, a partir da segunda metade da década de 90, um papel-chave no processo de redefinição de uma parte da esquerda, “convencida da necessidade de abandonar um paradigma interpretativo que implicava o conceito de classe” (LIGUORI, 2001, p. 1). O novo conceito usado pela esquerda é o conceito de cidadania, que reivindica a ideia de autonomia presente na sociedade civil, desvinculada do poder do Estado. No fundo, tanto a vertente liberista, baseada no mercado, assim como a liberal, fundada nos direitos, “guardam em comum, a concepção antropológica de que o indivíduo pode ser concebido para não necessitar da sociedade, viver independente de sua complexa rede de relações econômicas, sociais e políticas” (LIGUORI, 2001, p. 3).
O conceito de sociedade civil que submeteremos à análise tem despertado o interesse de vários estudiosos na atualidade, em diversas áreas, sob os mais variados aspectos e sentidos contrapostos. Assim, a expressão pode ser evocada sob muitos prismas e diferentes atores sociais. Para alguns, sociedade civil é entendida como “esfera autônoma ao lado do Estado e do mercado”; para outros é vista como “um conjunto de entidades de caráter filantrópico, para onde podem ser transferidas responsa-bilidades governamentais”. Há também os que a consideram como o “espaço de manifestações culturais e de relações intersubjetivas”, e os que a idealizam como “utopia de uma sociedade sem Estado” (SEMERARO, 1999, p. 13). E há, ainda, os liberais que pensam a sociedade civil como sinônimo de economia.
O quadro político atual mostra uma complexidade maior do cenário social e aponta para a crise da soberania, a disseminação da cultura individualista e o desaparecimento do WelfareState, o fim das ideologias e também da História. “Resultado deste cenário é uma sociedade civil não só mais complexa e diferenciada” (SEMERARO, 1999, p. 236), assim como mais volátil e contraditória. A ideia liberal de que só é possível pensar economia e política de forma dicotômica, correspondendo à sociedade civil o “lado bom”, e cabendo ao Estado o “lado mau”, é, na realidade, uma visão maniqueísta do político. Em outros termos, evidencia-se a contradição capitalista entre democracia política e autocracia econômica. Aqui, poder-se-á perguntar se o problema da liberdade se resolve tão somente no reino da economia. Na perspectiva do neoliberalismo o mercado parece representar a “harmonia social, o consenso e a liberdade; o Estado - e a política -, a esfera da imposição e do conflito” (BORON, 1994, p. 15). Portanto, duas esferas antagônicas, e, conseqüentemente, irreconciliáveis. Nessa perspectiva, o reino do mercado é visto como “sacrário” da liberdade, ao passo que o Estado é a esfera da dominação, da opressão, do autoritarismo.
Haveria hoje, no centro da ideologia dominante, um mito, segundo o qual, o liberalismo teria gradualmente se transformado, por um impulso puramente interno, em democracia, e em democracia cada vez mais ampla e mais rica: “o mito hoje dominante também quer fazer crer que democracia e livre mercado capitalista se identificam” (LOSURDO, 2004, p. 9). Portanto, por detrás desse mito, a idéia amplamente difundida de que o “público não-estatal” seja escolhido como paradigma para o “bom funcionamento” do mercado, como esfera capacitada para substituir o Estado. De espaço essencialmente político, a sociedade civil parece ter-se configurado em espaço livre de tensões, de conflitos. Ao disseminar-se largamente e colar-se ao senso comum, ao imaginário político das sociedades contemporâneas, à linguagem da mídia, o conceito de sociedade civil perdeu precisão: “empregam-no tanto a esquerda histórica quanto as novas esquerdas, tanto o centro liberal quanto a direita fascista” (NOGUEIRA, 2003a, p. 186).
Neste sentido, o objetivo do trabalho consiste em analisar o conceito de sociedade civil no pensamento político de Antônio Gramsci[1], perguntando-nos por seus alcances e limites no debate político atual. Ao procurarmos entender o que acontece no campo político atual, propomos remeter-nos ao conceito de sociedade civil como lócus de consenso e dissenso, como espaço de tensões e de conflitos para o estabelecimento de hegemonias sociais. Visando atingir o objetivo proposto, o artigo propõe analisar o conceito de sociedade civil relacionado ao conceito de Estado, já que a análise do primeiro conceito requer necessariamente a análise do segundo. Ato seguido, o trabalho procura mostrar que o Moderno Príncipe é um dos elementos essenciais no seio da sociedade civil no sentido de fundar uma vontade coletiva.
Num momento posterior, o artigo procura analisar o conceito de Estado e de sociedade civil em Gramsci na perspectiva dialética entre força e consenso, economia e política, sociedade civil e sociedade política, apontando ao mesmo tempo a crítica que este autor dirige à visão liberal que procura separar a esfera econômica da esfera política. Analisa em que sentido o papel da sociedade civil é estratégico no projeto de uma sociedade socialista no “Ocidente”.
Nas considerações finais retomamos aspectos relevantes do tema relacionando-o, sobretudo ao fenômeno da globalização, da mundializacão da economia, das mudanças, das mudanças ocorridas nos fundamentos políticos dos Estados-nações e da economia. Ou seja, pretende analisar se tais fenômenos estariam ou não produzindo a despolitização da sociedade civil? Se a sociedade civil estaria ou não caminhando de “costas” para o Estado na atualidade? Quer saber se as reflexões políticas de Antonio Gramsci sobre a sociedade civil e o Estado projetam alcances teóricos e estratégias para repensar o problema político do presente, qual seja, o da disjunção entre economia e sociedade política, entre Estado e sociedade civil.

Sociedade política e sociedade civil
Na política, diz Gramsci, “o erro acontece por uma inexata compreensão do que é o Estado (no significado integral: ditadura+hegemonia)” (C.C 13, v. 3, § 155, p. 257)[2]. Ao definir o Estado em termos de coerção e consenso Gramsci procura ampliar o entendimento da ortodoxia marxista sobre o Estado, cuja tradição o define em termos de aparato de repressão e de força. Nesse sentido faz uma alerta aos marxistas de que o campo político constitui-se também de consenso, direção, persuasão e "guerra de posição”. Para Gramsci, o Estado é todo o complexo de atividades práticas e teóricas “com as quais a classe dirigente não só justifica e mantém seu domínio, mas consegue obter o consenso ativo dos governados [...]” (C.C 15, v. 3, § 10, p. 331). Assim, Gramsci opõe-se a duas concepções de Estado: tanto a concepção liberal de Estado, cuja característica é ser guardião da lei e protetor dos proprietários, o qual procura evitar o mal maior, sem promover o bem. A outra concepção é a de que o Estado é mero resultado de uma luta de classes.
Para Gramsci, ao contrário, nenhum Estado desenvolve o conjunto complexo de atividades práticas e teóricas sem ser 'educador', 'civilizador'. Haveria aqui uma evidencia no sentido de que ao ampliar a noção de Estado (força e consenso), Gramsci inclui aí a sociedade civil e sociedade política. Que funções desempenham a sociedade civil e a sociedade política numa sociedade do tipo 'ocidental', de capitalismo avançado? E nas sociedades do Leste e da América Latina, que função tem ambas as esferas?
A concepção gramsciana de Estado procura dar conta, nas palavras de Coutinho, de uma “intensa socialização da política”, que resultou, entre outras coisas, da “conquista do sufrágio universal, da criação de grandes partidos de massa, a ação efetiva de numerosos e potentes sindicatos profissionais e de classe”. A esfera política 'restrita' que era própria dos Estados elitistas – tanto autoritários como liberais – “cede progressivamente lugar a uma nova esfera pública 'ampliada', caracterizada pelo protagonismo político de amplas e crescentes organizações de massa” (COUTINHO, 1985, p. 59).
Metodologicamente, Gramsci sugere que se distinga bem a sociedade civil, no sentido entendido por Hegel, e no sentido em que é muitas vezes usada nas notas, isto é, “no sentido de hegemonia política e cultural de um grupo social sobre toda a sociedade, como conteúdo ético do Estado”. E agrega,

[...] se deve notar que na noção geral de Estado entram elementos que devem ser remetidos à noção de sociedade civil (no sentido, seria possível dizer, de que Estado = sociedade política + sociedade civil, isto é, hegemonia couraçada de coerção). [...] Mas isto significa que por 'Estado' deve-se entender, além do aparelho de governo, também o aparelho 'privado' de hegemonia ou sociedade civil' (C.C 13, v. 3, § 24, p. 225).

Para Gramsci toda ciência e arte políticas baseiam-se num fato primordial e irredutível: “existem efetivamente governantes e governados, dirigentes e dirigidos”. A questão primordial para o pensador político é saber se tal divisão do gênero humano é perpétua, ou é um fato histórico (C.C 15, v. 3, § 4, p. 324-325)[3]. Por isso, ao perguntar-se quando um grupo faz sua visão de mundo prevalecer sobre a dos demais, coloca-se, em certo sentido, o problema das organizações que sustentam essa visão de mundo ou essa hegemonia, que, na perspectiva de Gramsci, não se reduz ao campo nacional-popular [4]. Em outras palavras, há que se perguntar pelo “portador material da função social da hegemonia” (COUTINHO, 1999, p. 69). A hegemonia tem na sociedade civil seu “par lógico e político”, e esta, por sua vez, “não se sustenta fora do campo do Estado e muito menos em oposição dicotômica ao Estado” (NOGUEIRA, 2003b, p. 222-223). Procuraremos pensar essa relação, mais adiante, em termos dialéticos, como sugere o próprio Gramsci.
A presença do tema do Estado nas reflexões políticas de Gramsci e a nova perspectiva que o autor procura imprimir deve-se ao fato de que o tema o obriga a retomar sistematicamente as grandes questões políticas que Gramsci vivenciou e acompanhou: a crise do Estado liberal, a natureza do fascismo e do Estado fascista, a novidade do Estado dos Soviéticos e sua evolução na URSS, a experiência dos Conselhos, os problemas do Estado socialista. Sem esquecer o pivô da análise, segundo Buci-Glucksmann (1980, p. 26-27), que consiste nessa “surpreendente 'resistência do aparelho de Estado', própria às sociedades ocidentais, nos países capitalistas desenvolvidos”.
Portanto, Gramsci estaria enfrentando a questão do Estado desde duas perspectivas: como problema teórico e como problema prático. No fundo, trata-se de um reexame da parte de Gramsci, das relações entre infraestrutura e superestrutura, problema central do materialismo histórico, isto é, incapacidade da classe operária de poder expandir nos momentos de crise as lutas sociais para além do campo econômico-reivindicatório e de transpor a barreira entre ela e o resto da sociedade. Para Gramsci não teria sentido pensar a política sem o protagonismo da sociedade civil e seus conflitos e tensões.
Mas, o que significa o Estado? Só o aparelho estatal ou toda a sociedade civil organizada? Ou a unidade dialética entre o poder governamental e a sociedade civil? Em uma carta escrita no Cárcere de Turi para a cunhada Tatiana em 1931, Gramsci nos dá a ideia dos estudos que está desenvolvendo e dos planos que pretende seguir em termos de pesquisa. A partir do conceito de intelectual, Gramsci revela uma cadeia de conceitos, não tão novos na teoria política, mas portadores de novos significados, os quais farão parte de seu “desinteressado” projeto, denominado Cadernos do cárcere.
A concepção marxista tradicional de Estado manteve, ao longo de décadas, a visão de Estado como aparelho coercitivo de uma classe sobre outra, como forma de salvaguardar unicamente os interesses da classe hegemônica, resultante do processo produtivo, derivando daí uma visão economicista e determinista da política. Nessa perspectiva, o Estado não é ativo, apresenta-se muito mais como efeito do que como protagonista. O que Gramsci escreve à cunhada Tatiana esboça um projeto de prestação de contas com a tradição, no sentido de criticar o economicismo. Contra essa concepção prevalecente na sua época, defende que o âmbito da política é fruto de força e consenso, e não mero reflexo do mundo econômico.
A crítica gramsciana do economicismo na teoria e na prática política diz respeito "principalmente a uma concepção instrumental do Estado como exterior a uma classe ou fração de classe, que a manobra 'de modo diabólico, para perpetuar seu poder e enganar o proletariado'" (BUCI-GLUCKSMANN, 1977, p. 61). A atenção de Gramsci não se esgota na temática tradicional da 'denúncia' da dominação classista coativa do Estado moderno, “mas estende-se a todas aquelas articulações através das quais se exerce sob o resto da sociedade a hegemonia duma classe. [...] do Estado como organização política e jurídica” (CERRONI, 1976, p.160-161). Nas Notas sobre Maquiavel, Gramsci diz que:

Estamos sempre no terreno da identificação de Estado e Governo, identificação que é, precisamente, uma reapresentação da forma corporativo-econômica, isto é, da confusão entre sociedade civil e sociedade política, uma vez que se deve notar que na noção geral de Estado entram elementos que devem ser remetidos à noção de sociedade civil (no sentido, seria possível dizer, de que Estado=sociedade política+sociedade civil, isto é, hegemonia couraçada de coerção). Numa doutrina do Estado que concebe este como tendencialmente capaz de esgotamento e de dissolução na sociedade regulada, o tema é fundamental (C.C 13, v. 3, v. 1, § 88, p. 244-245).

Gramsci distingue duas esferas no interior das superestruturas: "sociedade civil" e "sociedade política". À sociedade civil corresponde o conjunto das instituições encarregadas não só de elaborar, assim como de difundir os valores simbólicos e ideológicos gestados numa sociedade. Dela fazem parte o sistema escolar, os meios de comunicação, os sindicatos, as Igrejas, os partidos políticos, as instituições de caráter científico, etc. À sociedade política corresponde a instância de que o grupo hegemônico lança mão para fazer uso legal da força. Polícia, armas, leis são os recursos ou aparelhos utilizados neste âmbito político.
Para além do elemento força ou do Estado em sentido "restrito", Gramsci acentua o elemento do consenso, embora faça uma distinção metodológica ao ressaltar a unidade orgânica entre sociedade política e sociedade civil, ampliando assim, a noção de Estado. Nas Notas sobre Maquiavel, Gramsci esclarece que, nos Estados mais avançados, a sociedade civil tornou-se uma estrutura muito complexa e resistente às "irrupções" catastróficas do elemento econômico imediato (crises, depressões, etc.): "as superestruturas da sociedade civil são como o sistema das trincheiras da guerra moderna” (C.C 13, v.3, § 24, p. 73), algo que Gramsci enuncia já no artigo A revolução contra o capital, em 1917, onde diz que “as vontades se puseram em uníssimo, primeiro mecanicamente, e, depois da primeira revolução, ativa e espiritualmente” (EP, v. 1, p. 128).
É aqui que Gramsci se utiliza do exemplo das mudanças ocorridas na tática da guerra como parâmetro para entender o campo político na modernidade. Da mesma maneira que o êxito das estratégias militares do mundo moderno depende de posições, manobras e estratégias, antes mesmo de ataques frontais contra o inimigo, de igual maneira, o êxito no campo político ocidental parece fadado ao fracasso se se apóia exclusivamente na 'guerra de movimento'. Ou seja, nos tempos de crises capitalistas no Ocidente, a classe burguesa não se desmoraliza, não abandona suas defesas, nem suas "trincheiras" cravadas no coração da sociedade civil, nem diminui a confiança na própria força. Por outro lado, o proletariado não consegue se organizar de modo fulminante, tal como teria ocorrido na Rússia, por exemplo, que utilizou ataques frontais contra o poder do Estado burguês. Uma possível vitória do proletariado no Ocidente, em termos políticos, pede a mudança de tática, segundo Gramsci. Em outros termos, a partir de 1924, Gramsci deduz que a guerra de ataque frontal funcionou nos anos revolucionários de 1917-1921 na Rússia, onde o "Estado era tudo e a sociedade civil primitiva e gelatinosa". Esta estratégia frontal, porém, "não pode se repetir do mesmo modo nos países capitalistas desenvolvidos" (GLUSCKSMANN, 1977, p. 45).
Trata-se, diz Gramsci, de "estudar com 'profundidade' quais são os elementos da sociedade civil que correspondem aos sistemas de defesa na guerra de posição”.[4] Gramsci sinaliza, dessa maneira, para o fato da burguesia não ter a força como único recurso para a manutenção do status quo e para o fato de não se subestimar o aparelho de Estado em tempos de crise. Ao contrário, o fenômeno político tornou-se mais complexo e seu significado há que se buscar nas complexas e moleculares redes de instituições da sociedade civil, dentre elas, o sufrágio universal, os parlamentos, partidos de massa, sindicatos obreiros, os meios de comunicação, as escolas, igrejas, movimentos sociais, etc., além dos aparelhos repressivos do Estado. Neste sentido, o Estado passa a ser "um projeto de cultura" (FERREIRA, 1986, p. 209), e a base da hegemonia ou a base histórica do Estado se manifesta através da soldagem da sociedade civil com a sociedade política. Gramsci reconhece Lênin como o político que compreendeu a necessidade de uma mudança na “guerra manobrada”, a qual foi aplicada vitoriosamente no Oriente em 1917, para a “guerra de posição”, que poderia ser a única vitoriosamente no Ocidente. Segundo Gramsci, o problema de Lênin[5] é que não teve tempo de aprofundar a sua fórmula,

[...] a tarefa fundamental era nacional, isto é, exigia um reconhecimento do terreno e uma fixação dos elementos de trincheira e de fortaleza representados pelos elementos da sociedade civil, etc. No oriente, o Estado era tudo, a sociedade civil era primitiva e gelatinosa; no Ocidente, havia entre o Estado e a sociedade civil uma justa relação e, ao oscilar o Estado, podia-se imediatamente reconhecer uma robusta estrutura da sociedade civil. O Estado era apenas uma trincheira avançada, por trás da qual se situava uma robusta cadeia de fortalezas e casamatas [...] (C.C7, v. 3, §16, p. 262).

Isto significa que diante dessa nova realidade de complexidade da sociedade civil e de socialização da política no ocidente, as estratégias de lutas por mudanças sociais também deveriam mudar. Para Gramsci, uma estratégia política calcada em ataques frontais ao Estado, tal como aconteceu na Rússia, por exemplo, parece não constituir uma boa estratégia política, uma vez que o "Ocidente" desenvolveu fortes "trincheiras" políticas, as quais os proletários não poderiam ignorar se quisessem propor mudanças sociais significativas.
Ao contrário, a atividade revolucionária, a partir desse novo cenário mundial de crise, consiste, "em um processo penoso de disseminar e infundir, inculcar uma forma mentis alternativa" (BUTTIGIEG, 2001a, p. 53-54), por meio da preparação cultural, do desenvolvimento intelectual e educacional em escala massiva. Tais atividades se concretizam materialmente nas "trincheiras" da sociedade civil e no campo das ideias, para não dizer das 'ideologias'. O que significa dizer, que a operação de construção de uma nova hegemonia é levada a cabo de forma mais lenta e de longo prazo ao invés de mudanças operadas através da força e de ataque frontal ao poder constituído. A base para a afirmação de uma nova autoridade política não poderia se limitar à conquista do aparato governamental, da dominação, pois uma classe em luta pela própria afirmação política “deve ser dirigente antes de ser dominante, deve dirigir para poder governar”. Nesse sentido, “o consenso torna-se o fundamento e garantia de uma dominação duradoura e, acima de tudo, democrática” (NOGUEIRA, 1988, p. 87).
De fato, analisadas as condições em que se encontravam Rússia e Itália após a primeira guerra mundial, percebe-se que em ambos os países havia perspectivas revolucionárias parecidas. Entretanto, as mudanças não ocorreram automaticamente, tal como acreditavam os marxistas mecanicistas da época, ao menos na Itália. As forças políticas progressistas italianas saem derrotadas pelo regime fascista. Gramsci se interroga sobre as causas que produziram este fenômeno político. Diante das novas condições colocadas pelo pós-guerra, a pobreza política desencadeada no seio da sociedade civil poderia evidenciar consequências irreparáveis. Gramsci desdobra a partir daí uma reflexão sobre a possibilidade de uma nova estratégia revolucionária para o "Ocidente”.[6] Entra em cena o conceito de "guerra de posição" como possibilidade de uma nova estratégia na arte política. Gramsci coloca-se, portanto, como antípoda da ideia prevalecente de sociedade civil reduzida à massa e de Estado em sentido estrito.

O Moderno Príncipe e sua posição na sociedade civil contemporânea
Na sociedade civil, campo de elaboração e de consolidação de hegemonias existe uma infinidade de instituições que concorrem para que ocorra a consolidação da hegemonia, e dentre todas aquelas instituições que atuam para isso ocorra, o partido se destaca, o qual é precisamente o mecanismo que realiza na sociedade civil a mesma função desempenhada pelo Estado, de modo mais vasto e mais sintético, na sociedade política, ou seja, “proporciona a soldagem entre intelectuais orgânicos de um dado grupo, o dominante, e intelectuais tradicionais. [...]” (C.C 12, v. 2, § 1, p. 24).
O caráter fundamental do Príncipe de Maquiavel, diz Gramsci, é o de não ser um tratado sistemático, mas um livro 'vivo', no qual a ideologia política e a ciência política fundem-se na forma dramática do 'mito'. Maquiavel deu à sua concepção a forma da fantasia e da arte, pela qual o elemento doutrinário e racional personifica - se em um condottiero, que representa plástica e 'antropomorficamente' o símbolo da 'vontade coletiva'. [...] O Príncipe de Maquiavel poderia ser estudado como uma exemplificação do 'mito' soreliano, isto é, de uma ideologia política que se apresenta não como fria utopia nem como raciocínio doutrinário, mas como uma fantasia concreta que atua sobre um povo disperso e pulverizado para despertar e organizar sua vontade coletiva (C.C 13, v. 3, § 1, p. 13-14)[7].
A política em Maquiavel é uma atividade intelectual e ao mesmo tempo prática. O alvo central a ser combatido, segundo as lições apresentadas por Maquiavel no Príncipe, é o pontificado romano, instituição que deitara suas raízes no corpo social há séculos, constituindo-se em entrave político para a formação do Estado-nação. Na Itália, o Moderno Príncipe, segundo Gramsci, traduz-se em uma vontade coletiva (partido) que “queira ser Estado”, independentemente da moral e da religião - tal como vaticinara Maquiavel - não em nome de um niilismo moral, mas em nome, quiçá, do combate aos corporativismos[7], que tem seu fundamento na própria sociedade civil. O partido constitui, para Gramsci, elemento do "momento catártico”, célula que procura transformar a "necessidade" em "liberdade”, a "individualidade" em "universalidade".
Ao contrário do Príncipe de Maquiavel que reivindica para si próprio o papel do exercício do poder político em nome de uma nação, na perspectiva de Gramsci o Moderno Príncipe constitui a primeira célula na qual sesintetizam germes de vontade coletiva que tendem a se tornar universais e totais, o qual deve e não pode deixar de ser “o anunciador e o organizador de uma reforma intelectual e moral, o que significa, de resto, criar o terreno para um novo desenvolvimento da vontade coletiva nacional-popular no sentido da realização de uma forma superior e total de civilização moderna” (GRAMSCI, C.C 13, v. 3, § 1, p.16-18).
Na realidade, o Moderno Príncipe não é resultado de uma coletividade caótica e indistinta, algo resultante de forças “misteriosas” e metafísicas. Esse corpo associativo deve ser entendido como produto de “uma elaboração de vontade e pensamentos coletivos” (C.C 6, v. 2, §79, p. 230). Nessa perspectiva, a política tende a “desembocar” na moral, segundo Montanari (1997); tende a se tornar o instrumento para que a moral “não seja mais um inoperante e vazio 'dever ser' ou uma grande e autoritária pretensiosa de colocar 'ordem no mundo', mas força ativa e interna à própria vida política”. Existe uma ética interna no agir político, já que para Gramsci, conforme enuncia no Caderno 13, § 16, o político é um “criador”, um “suscitador”. Assim como a ética tende ao “universal” como fim, de igual maneira o Moderno Príncipe tende a esse fim na construção da democracia. É do partido único que Gramsci está falando ao mencionar o Moderno Príncipe? Parece não haver dúvidas. Mas isso significa um presumível integralismo e totalitarismo? Haveria que ter cuidado nessa afirmação, segundo Vacca (1994, p. 151) para não reduzir a concepção de hegemonia de Gramsci a uma "variante 'suavizada' da 'ditadura do proletariado'".
Quando se quer acusar Gramsci de antidemocrático, basta afirmar simploriamente que ele via no Partido Comunista uma tipologia. Evidentemente, se a classe operária é quem toma para si a tarefa da elaboração da vontade nacional-popular, e talvez não pudesse deixar de assim fazer naquele período histórico, com o diferencial de que sua atuação política dependeria de alianças com as frentes populares da época. Para Gramsci está muito claro que o proletariado moderno, ao menos na Itália, não se constituiria como bloco político dominante enquanto não superasse os corporativismos de classe, e isso significava para Gramsci a constituição de alianças políticas com os campesinos, tese já esboçada quando trata da questão meridional.
Que sentido teria para Gramsci o partido se o mesmo não fosse porta voz de uma nova concepção de política, de Estado e de sociedade? O partido não é um programa ideal em busca duma máquina executiva, mas “um organismo funcional que exprime, verifica e adapta o seu próprio programa ideal. É uma máquina integralmente histórica e, por isso mesmo, elástica: uma não máquina” (CERRONI, 1976, p. 166). Numa nota instigante (Maquiavel. Partidos políticos e funções de polícia) que aparece no § 34 do Caderno 14, Gramsci afirma que a vida de um partido político procura, decerta forma, também exercer uma função de polícia, isto é, de defesa de uma determinada ordem política e legal. Mais adiante Gramsci levanta a seguinte questão: essa função que supostamente exercem os partidos é de caráter repressivo ou expansivo?  Um determinado partido exerce sua função de polícia  para conservar uma ordem externa, extrínseca, no sentido de colocar freios às forças vivas da história, ou a exerce no sentido de levar o povo a um novo nível de civilização, da qual a ordem política e legal é uma expressão programática? Ou seja, a função de polícia de um partido pode ser “progressista” ou “reacionária”: é progressiva “quando aspira a manter na órbita da legalidade as forças reacionárias alijadas do poder e a elevar ao nível da nova legalidade as massas atrasadas”. E é reacionária “quando aspira a reprimir as forças vivas da história e a manter uma legalidade ultrapassada, anti-histórica, tornada extrínseca” (C.C 14, § 34, v.3,p. 308). Nesse caso, quando um partido é reacionário, funciona exercendo um centralismo burocrático, e quando é progressista, o centralismo exercido é democrático e deliberante, e no outro caso, ele é meramente executor. No § 6 do C.C 26 Gramsci diz que o Estado "veilleurde nuit" ("Estado guarda-noturno") corresponde em italiano a Estado carabinieri e significa "um Estado cujas funções se limitam à tutela da ordem pública e do respeito às leis [...] a direção do desenvolvimento histórico cabe às forças privadas, à sociedade civil, que também é Estado, aliás, é o próprio Estado". O oposto desse tipo de Estado seria o "Estado ético", de origem filosófica e intelectual. Ao comentar sobre o Estado ético ou de cultura, Gramsci diz que todo Estado é ético “na medida em que uma das suas funções mais importantes é elevar a grande massa da população a um determinado nível cultural e moral, nível (ou tipo) que corresponde às necessidades de desenvolvimento das forças produtivas” (C.C 8, v.3, § 179, p. 284), e, portanto, aos interesses das classes dominantes.
Nesse sentido, a escola como função educativa positiva e os tribunais  como  função  educativa repressiva e negativa são as atividades mais importantes neste sentido: mas, na realidade,  para  este  fim  tende  uma multiplicidade  de  outras  iniciativas  e atividades  chamadas  privadas,  que formam o aparelho da hegemonia política e cultural  das  classes  dominantes.  A concepção de Hegel é própria de um período em que o desenvolvimento extensivo da burguesia poderia parecer ilimitado e, portanto, a eticidade ou universalidade  desta  classe  podia  ser afirmada:  todo  gênero  humano  será burguês. Mas, na realidade, só o grupo social que propõe o fim do Estado e de si mesmo como objetivo a ser alcançado pode criar um Estado ético, tendente a eliminar as divisões internas de dominados, etc., e a criar um organismo social unitário técnico-moral (C.C 8, v. 3, §179, p. 284). A passagem acima resume de certa forma, tudo o que se expôs até aqui sobre o pensamento de Gramsci, referente ao tema da sociedade civil e do Estado. Gramsci coloca em evidência as relações diversas entre Estado e sociedade civil. Define o Estado liberal como "Estado carabiniere", o  qual define arbitrariamente os rumos da política para todo o corpus social.  Nessa perspectiva, o Estado absorve totalmente as manifestações políticas advindas da sociedade civil, reduzindo-a a simples massa.
Por outro lado, o 'Estado ético' é aquele que reflete a configuração de uma nova sociedade, ou seja, da sociedade socialista, “regulada”, ideia essa que reabre, ao mesmo tempo, a antiga discussão marxista sobre a extinção do Estado. Numa sociedade de cunho socialista, a sociedade civil tenderia a absorver os elementos coercitivos do Estado. A ex-URSS é um exemplo de que a promessa da extinção do Estado não pôde ser concretizada, exatamente porque o capitalismo de Estado prevalecente não reconheceu na sociedade civil a possibilidade  de  superação  da  condição  de heteronomia. De qualquer forma, a burocracia partidária reinante dissociou (de uma forma talvez prevista por Gramsci), a sociedade civil do Estado burocrático, os dirigentes dos dirigidos. Na acepção de Gramsci, uma "socieda de regulada" não acontece sem revolução e a mesma dá mostra de sua eficácia política quando feita "por baixo" e não "pelo alto", ou seja, quando esta mesma sociedade é capaz  de  promover gradualmente  a  extinção  dos  elementos  e mecanismos da coerção, quando a sociedade civil reabsorve a sociedade política e seus elementos coercitivos.
Voltamos aqui, novamente à questão central para Gramsci: a de que uma sociedade política, quando democrática, deveria criar as condições nas quais desaparecesse a divisão entre governantes e governados. A socialização do poder não significa cair na utopia de uma sociedade sem governo. O realismo político de Gramsci é resultante das dificuldades que conheceu na prática para organizar uma vontade coletiva. Gramsci parece não se deixar levar pela crença de que uma vontade coletiva se reconstitua tão facilmente assim, depois que ela se desagregou. Procura, ao contrário, não pensar “que as vontades coletivas sejam um dado de fato naturalista, que desabrocham e se desenvolvem por razões inerentes às coisas” (C.C, 15, v. 3, § 35, p. 335-336).

Considerações finais
Quais os alcances e limites que apresenta o conceito de sociedade civil desenvolvido por Gramsci, tendo em vista a nova configuração social e política da atualidade, denominada mundialização? Depois de um longo tempo de ausência no debate teórico político, o conceito de sociedade civil foi recuperado por Gramsci nos alvores do século XX, refletindo, de certa forma, a nova configuração social, econômica e política do período em que viveu: época de duas guerras mundiais, das intensas lutas sociais e políticas travadas pelos trabalhadores de todo o mundo, do surgimento do nazismo e o fascismo na Europa, da revolução Russa propondo alternativas ao sistema capitalista. Nesse contexto, o conceito de sociedade civil e de Estado reflete uma época de guerras, debates e de socialização da política. Está em questão a criação de novas hegemonias no cenário político mundial.
A que tradição estaria ligada o conceito de sociedade civil em Gramsci: a de Hegel ou a de Marx? Pode-se afirmar que suas formulações não estão simplesmente em oposição a um ou a outro. Ao contrário, apresenta aspectos de ambos e os supera ao mesmo tempo, num jogo dialético. A noção de sociedade civil em Gramsci não tem sentido senão vinculada à idéia de Estado e de economia. Procuramos mostrar essa peculiaridade do pensamento gramsciano ao apresentarmos as várias passagens onde o pensador político se contrapõe a vertente liberal. O conceito de bloco histórico, por exemplo, é o que melhor define essa relação dialética, posta em evidência pelos entes sociais na luta pela superação dos interesses particulares e corporativistas, visando interesses universais; luta que não se reduz à “pequena política”, ao contrário, se expande e procura “fundar Estado”, o que nos remete a Maquiavel e a Hegel. A sociedade civil vincula-se, portanto, à economia e à produção material, realizando-se como espaço de hegemonia, como “possibilidade de elevação política” como “possibilidade de imprimir ao conjunto dos homens uma nova forma de consenso e consentimento” (NOGUEIRA, 2000, p. 20).
Ora, um grupo ou uma classe ao colocar para si a tarefa de dirigir a inteira sociedade não poderá fazê-lo se desvinculado da ideia de Estado. Em outros termos, não tem sentido pensar a sociedade civil em Gramsci, lócus de criação de visão de mundo (consenso), desvinculada do Estado (força), daí a noção de hegemonia. Isto é, não há hegemonia que se consolide somente pelo viés do consenso, tampouco só pela força. A figura do centauro descrita por Maquiavel nos dá a noção precisa do que venha a ser hegemonia: paixão e razão, metade homem e metade animal, objetividade e subjetividade. A noção gramsciana de Estado ampliado comporta estes elementos: sociedade civil + sociedade política.
Nesse sentido, Gramsci coloca-se como antípoda dessa visão do Estado que se sustenta somente pela força, daí falar de um Estado ativo, que busca na sociedade civil o consenso e não a repressão. Se assim é, o proletariado enquanto Moderno Príncipe, e enquanto portador de uma nova visão de política e de mundo comporta uma reforma política, moral e intelectual ao mesmo tempo. Assim, a hegemonia é a noção que expressa esse salto qualitativo na forma de conceber a política. E se há uma esfera onde a hegemonia evidencia-se, esse espaço é a sociedade civil. Aqui podemos nos perguntar, então, pelos alcances e limites da noção de sociedade civil em Gramsci.
Gramsci pensou e analisou o conceito de sociedade civil numa época em que a tensão política era evidente, de modo que a relação sociedade política e sociedade civil não escamoteavam seus conflitos. O fascismo, o nazismo, a revolução Russa e os períodos entre guerras são prova disso. Ao mesmo tempo criticou o liberalismo econômico que já ensaiava naquela época a tese de que economia e política são mundos à parte, tese tão em voga na atualidade. O que pensar da ideia neoliberal de que a política interfira o menos possível no campo das liberdades econômicas? Da ideia de que a redenção das mazelas sociais estaria nas mãos da sociedade civil? Para chegar a esse corolário da disjunção entre política e economia o neoliberalismo fez seus ensaios e se lançou na conquista da hegemonia no mundo da cultura e das ideias.
As potencialidades do novo mundo no contexto do oceano da mundialização parecem querer jogar fora a política nas águas, muitas vezes, revoltas e turvas dos mercados. Lidamos com a ideia de que as únicas fronteiras a serem eliminadas são àquelas referentes às fronteiras econômicas. “Lidamos com a ideia de que a economia é boa em si, e a política um mal em si” (ASSMANN, 1996, p. 28), ou de que diante das leis do mercado nada há a fazer senão obedecer, pois o que interessa é apenas ser competente para obedecer ao mercado.
Ante os limites que as condições atuais apresentam para a configuração de novas formas de direção política, a ideia de sociedade civil só faz sentido se for pensada em “termos dialéticos”, uma visão que procure articular todas as dimensões e circunstâncias que são amplas e complexas, que têm a ver com ‘legados históricos, tradições, culturas e também correlações de forças, padrões de desenvolvimento econômico, relações internacionais, equilíbrios políticos, decisões governamentais, marcos jurídicos (NOGUEIRA, 2000, p. 246). Nesse sentido, se ainda resta alguma aposta na luta política, essa aposta não pode se sustentar numa visão fechada ou circunscrita a pequenos grupos que lutam por seus interesses corporativos, que lutam pela elaboração da hegemonia visando o Estado em sentido estrito. Ora, a sociedade civil que pensa a fundação de Estados não se coloca como “o outro lado do Estado, mas como o coração do Estado”. E não há como se lançar nessa batalha sem a batalha de ideias, que é essencialmente “uma batalha pelo poder, pela autoridade, pela direção” (NOGUEIRA, 2000, p. 247-248), e também por maior liberdade, de um número cada vez maior de pessoas.
Não se compreende Maquiavel, diz Gramsci, “se não se leva em conta que ele supera a experiência italiana com a experiência europeia (internacional, naquela época): sua vontade seria o tópico sem experiência européia” (C.C 6, v. 3, § 86: 241). Da mesma forma que Maquiavel não pensara em superar a experiência política italiana deixando de lado a experiência européia, a realidade internacional de sua época - caso contrário permaneceria uma ação política reduzida ao campo do tópico -, da mesma forma não se compreende Gramsci se não se leva em conta que ele procura superar a experiência italiana apontando para uma experiência política mundial. Mesmo que a questão do 'que fazer?' persista, e não se tenha clareza na apresentação de alternativa possível, talvez possamos, ainda assim, analisar rigorosamente “o que existe” (ADORNO, Apud ZIZEK, 2005: 176).
É certo que o Moderno Príncipe nos moldes bolcheviques não parece ser mais desejável do ponto de vista político. Sua existência não deu mostras de que pudesse aglutinar uma vontade coletiva democraticamente. Na Rússia aconteceu exatamente aquilo que Marx e Gramsci não desejariam enquanto defensores do comunismo, ou seja, a separação entre Estado e sociedade civil, economia e política, desenvolvendo naquele sistema todas as características do capitalismo de Estado, ao invés de uma sociedade que aos poucos pudesse absorver as forças opressoras do Estado. Por outro lado, não é equivocado afirmar que a sociedade capitalista também apela para a força em momentos de crises, mesmo que amparada no modelo democrático representativo. Desse lado, a tentativa dos liberais é a de separar Estado e sociedade civil, apoiados nos argumentos de que a sociedade civil é um espaço neutro e não político, espaço de trocas meramente comerciais. Procuram afirmar que a única liberdade é a liberdade negativa, segundo a qual a existência do outro seria necessariamente o inferno para mim.
Nesse caso não seria diferente dizer “que a minha vida exige a morte do outro, ou que o mundo só suporta alguns seres humanos” (ASSMANN, 1996: 35). Se não é isso que desejo para mim e para o outro, parece que a crítica à utopia liberal, mantém-se acesa, consequentemente, a chama do ideal de um mundo para todos, também se mantém acesa, e assim será, quem sabe, enquanto na noite da economia global existir gatos que não são “pardos”. Em outras palavras, se a promessa de uma sociedade humana perfeita, anunciada pela modernidade não se realizou - já que nem a liberdade conduziu à igualdade, nem a igualdade à liberdade, resta-nos, quem sabe, a aposta na solidariedade, “de uma cumplicidade com outra liberdade individual”, a qual não pode ser negociada em qualquer mercado, bolsa ou pregão. Enfim numa solidariedade que seja caminho para um reforma moral e cultural, mas ao mesmo tempo, “contraditória, tensa, sem resultado garantido” (ASSMANN, 1998, p 37).
Não há dúvidas que o conceito de sociedade civil em Gramsci apresenta muitos limites para entendermos o sentido da política na atualidade. Por outro lado, o mesmo conceito continua a lançar luzes e projetar alcances, fomentando uma relação mais equilibrada entre Estado e sociedade civil, já que Gramsci não chega nunca a afirmar: basta de política! Basta de Estado! Que reine o social! Ou vice-versa. Ao contrário, em Gramsci, política é sinônimo de tensão e de resultados não garantidos, tal como afirmado antes. Se tiver sentido redefinir a política na atualidade, então podemos afirmar tranquilamente que Gramsci continua a projetar alcances, já que a separação entre economia e política, tal como a desejam os neoliberais, nunca ocorre sem tensão. O que é atual em Gramsci é exatamente isso: o fato de que política e cultura não são esferas separadas numa sociedade, o que significa dizer que continuamos a disputar no seio da sociedade civil atual e global uma visão de mundo e de sociedade, seja essa visão pautada em princípios de mercado ou da solidariedade.


(O texto é fruto de pesquisa desenvolvida no mestrado em Ética e Filosofia Política na UFSC, sob a orientação do professor Dr. Selvino Assmann. O mesmo foi publicado na revista internacional Reflexión Política do Instituto de Estudos Políticos da UNAB-Colômbia.)


AUTOR
Valdenésio Aduci Mendes é Mestre em Ética e Filosofia Política e Doutor em Sociologia Política (UFSC). Docente no Centro Universitário Municipal de São José/SC-USJ, exercendo atividades laborais nos cursos de Pedagogia e Ciências da Religião. Membro do grupo de Estudos AYA – Laboratório estudos Pós Coloniais e Decoloniais – UDESC.

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[1] Antonio Gramsci nasceu em 22 de janeiro de 1891, em Ales (Ilha da Sardenha), sul da Itália. Era o quarto dos sete filhos de Franscesco Gramsci e Giuseppina Marcias. Em maio de 1928 é levado ao “Tribunal Especial” de Roma, em função de suas atividades políticas. Em 4 de junho foi dada a Gramsci pelo regime fascista, a sentença que o condenou a 20 anos, 4 meses e 5 dias de prisão. Foi na prisão que escreveu os Cadernos do cárcere e as Cartas que o tornariam referencia do marxismo ocidental, falecendo aos 27 de abril de 1937 por hemorragia cerebral.
[2] Para os efeitos de citação das obras de Gramsci, usaremos as seguintes abreviaturas: C.C = Cadernos do Cárcere; C= Cartas do cárcere; E.P= Escritos Políticos.
[3] Para Vacca (1996, p. 108), em linguagem habermasiana, o postulado aqui, é que, diversamente do que ocorrera até então, "as relações entre governantes e governados podem tornar-se plenamente comunicáveis e discursivas. E que se deseja explorar suas condições”.
[4] Esta guerra "mais complexa" de longo prazo, "esta guerra do povo democrático capaz de investir a 'justa relação' do estado e da sociedade civil própria aos países ocidentais e de desenvolver a todos os níveis da sociedade uma dialética permanente entre as massas e o Estado" (BUCI-GLUSCKSMANN, 1977, p. 46).
[5] Ilitch na linguagem dos Cadernos do Cárcere.
[6] COUTINHO (1999, p. 148) observa que a 'ocidentalidade' de uma formação social não é, para Gramsci, um fato puramente geográfico, mas, sobretudo “um fato histórico. [...] não se limita a registrar a presença sincrônica de formações de tipo 'oriental' e 'ocidental', mas indica também os processos histórico-sociais, diacrônicos, que levam uma formação social a se 'ocidentalizar'”.
[7] Nas palavras de Coutinho (1999, p. 169) a tarefa do Moderno Príncipe consistiria em "superar os resíduos corporativistas (os momentos 'egoístico-passionais') da classe operária" e contribuir para a "formação de uma vontade coletiva nacional-popular, ou seja, de um grau de consciência capaz de permitir uma iniciativa política que englobe a totalidade dos estratos sociais de uma nação, capaz de incidir sobre a universalidade diferenciada do conjunto das relações sociais”.

FEIRA DE SANTANA-BA | nº 5 | vol. 1 | Ano 2017

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