Bela, recatada e do lar: relações entre a prática discursiva sobre a mulher e a docilização dos corpos em Foucault

Romário Duarte Sanches*

RESUMO: Este artigo analisa a prática discursiva sobre a mulher “bela, recatada e do lar” com base na categoria foucaultiana de corpos dóceis. O aporte teórico focaliza-se, estritamente, na obra “Vigiar e Punir”, publicada por Michel Foucault em 1975.Para a discussão da categoria corpos dóceis, delimitou-se a terceira parte do livro (disciplina), na qual, Foucault (1987) procura pensar como se dá o processo de fabricação dos corpos dóceis, enfatizando a disciplina como uma nova técnica de poder. Foucault descreve quatro técnicas ou mecanismos disciplinares que envolvem o processo de formação dos corpos dóceis, a saber: 1) arte das distribuições; 2) controle das atividades; 3) organização das gêneses; e 4) composição das forças. Ao lado do acompanhamento dos dados da teoria foucaultiana, foram relacionados a reportagem da revista Veja, publicada em abril de 2016, e fragmentos do jornal do Jornal das Famílias, periódico brasileiro do século XIX. A materialização discursiva, tanto da reportagem, quanto do jornal,centra-se no sujeito mulher. A aproximação aponta que a mesma prática discursiva do poder disciplinar sobre o corpo feminino encontrado no Jornal das Famílias no século XIX, ainda está presente nos dias atuais, sendo propagada pelas mídias como forma de manter o poder de dominação sobre as mulheres. 
PALAVRAS-CHAVE: Corpos dóceis, disciplina, poder, mulher.

Introdução
            Influente no pensamento contemporâneo, Michel Foucault também foi ativista político, teórico social, crítico cultural, historiador criativo e professor. Para leitura de sua obra, recomenda-se que o leitor esteja disposto a indagar a ordem social preestabelecida, bem como, desfazer-sede premissas tidas como verdades absolutas.
Autores como Oksala (2011), esquematizam a obra de Foucault em três fases distintas: a) a arqueologia; b) a genealogia; e c) a ética. Ressalta-se aqui a fase genealógica, termo escolhido por Foucault para analisar o poder. Pois, é na obra “Arqueologia do saber” que Foucault (2004) toma o discurso como uma prática social, historicamente determinada, onde são constituídos os sujeitos e os objetos. Para ele, as relações entre os dizeres e os fazeres, ou seja, as práticas discursivas são formas de materializar as ações dos sujeitos na história. Uma tentativa de compreender a maneira como as “verdades” são produzidas e enunciadas.Tal prática discursiva está explicitada também na obra “Vigiar e Punir”. Nela se discorre sobre conceitos como o de disciplina,de docilização dos corpos, de panoptismo e outros.
O trabalho visa às práticas discursivas sobre a mulher “bela, recatada e do lar” presentes no Jornal das Famílias, veiculado no século XIX, e na contemporaneidade, presente na reportagem da revista Veja, publicada em abril de 2016. O artigo encontra-se dividido em três seções. Na primeira, discute-se o aporte teórico, conceituando a natureza do que Foucault assimila como corpos dóceis; seu processo de formação e suas respectivas técnicas disciplinares. Na segunda, traça-se um breve panorama sobre o papel desempenhado pela mulher na história do Brasil. Por fim, apresentam-se os possíveis vínculos de aproximação do processo de docilização do corpo feminino presente no Jornal das Famílias ena reportagem da revista Veja.

1 Aporte teórico

1.1 Docilização dos corpos
             Antes de se adentrar no conceito de docilização dos corpos, parece prudente se fazer uma breve introdução a respeito da obra na qual se encontra a referida categoria de análise.  “Vigiar e Punir”, publicada pela primeira vez em 1975. Nela, Foucault discorre sobre as práticas disciplinares que se consolidaram no final do século XVII e início do século XVIII; bem como, atenta para a permanência destas práticas nos dias atuais, como veremos nas próximas seções. A obra está dividida em quatro partes, nominadas da seguinte forma: o suplício, punição, disciplina e prisão.
            Para discussão acerca da docilização dos corpos, a presente leitura concentra-se na terceira parte do livro sobre a disciplina, da qual, Foucault (1987) procura pensar como se dá o processo de fabricação dos corpos dóceis. O autor enfatiza a disciplina como uma nova técnica de poder. A ideia remonta à história clássica, quando o corpo passa a ser visto como objeto do poder.Como bem descreve Foucault (1987), foi nesse período que houve um grande enfoque ao corpo, à época, entendido com um objeto fácil de ser manipulado:

Houve, durante a época clássica, uma descoberta do corpo como objeto e alvo de poder. Encontraríamos facilmente sinais dessa grande atenção dedicada então ao corpo — ao corpo que se manipula, se modela, se treina, que obedece, responde, se torna hábil ou cujas forças se multiplicam (FOUCAULT, 1987, p. 163).

            Na intenção de mostrar como se procede ao poder disciplinar, Foucault (1987) cita as fábricas, as escolas, os quartéis e os hospitais como instituições nas quais a relação e a hierarquia de poder se apresentam da forma mais visível.
            No caso dos quartéis, Foucault (1987) descreve a figura ideal de soldado no início do século XVII, podendo este ser reconhecido de longe. Já na segunda metade do século XVII, o soldado tornou-se uma espécie de corpo inútil ou inapto, que precisaria ser fabricado conforme as necessidades da instituição.
            Em torno da discussão sobre uma teoria geral do adestramento, Foucault (1987) menciona o ensaio “O homem-máquina” do médico francês JulienOffray La Mettrie[1],escrito simultaneamente em dois registros. No primeiro, denominado de anátomo-metafísico, as páginas iniciais são escritas por Descartes, em seguida, continuadas por médicos e filósofos. No segundo, considerado técnico-político, Foucault constitui o registro por um “conjunto de regulamentos militares, escolares, hospitalares e por processos empíricos, refletidos para controlar ou corrigir as operações do corpo” (FOUCAULT, 1987, p. 163).
Para Foucault (1987), o ensaio de La Mettrie é, ao mesmo tempo, uma redução materialista da alma e uma teoria geral do adestramento, e no centro disto, destaca-se a noção de docilidade que une ao corpo analisável o corpo manipulável. O autor entende que um corpo só poderá ser dócil desde que seja submetido, utilizado, transformado e aperfeiçoado.
O corpo dócil implica numa coerção contínua que procura explorar ao máximo o tempo, o espaço e os movimentos. Desse modo, o conhecimento dos métodos permite o controle minucioso das operações do corpo, realizando a sujeição constante de suas forças e impondo-o uma relação de docilidade-utilidade. A este processo dá-se o nome de disciplina.
Foucault (1987), explica que vários processos disciplinares já existiam nos espaços dos conventos, dos exércitos, das fabricas, etc. Mas somente no decorrer dos séculos XVII e XVIII foi que as disciplinas se tornaram fórmulas gerais de dominação.

O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente. Forma-se então uma política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. (FOUCAULT, 1987, p. 164).

Como descreve Foucault (1987), o corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe.  Para o autor, o processo remete a uma espécie de “anatomia política” que se iguala a uma “mecânica do poder”. Nesta última etapa se define o domínio sobre o corpo do outro, não simplesmente para que faça o que se quer, mas para que opere do modo como se deseja, impondo com as técnicas da maquinaria de poder a rapidez e a eficácia que se determina. Logo, a disciplina fabrica corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”.
Para o autor, a função do poder disciplinar é de adestrar o corpo,e para este fim, o adestramento só poderá ser garantido com sucesso se os recursos forem bem aplicados. Assim, “o sucesso do poder disciplinar se deve sem dúvida ao uso de instrumentos simples: o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e sua combinação num procedimento que lhe é específico, o exame”.(FOUCAULT, 1987, p. 195). Neste sentido, pode-se afirmar que a disciplina “fabrica” indivíduos, sendo uma técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício.
            Sem dúvida, a manipulação e o adestramento do corpo não parece fruto da casualidade contemporânea. As relações de força e poder sempre agiram de forma velada sobre o corpo. No que tange a modernidade, o corpo continua a ser fabricado como produto, em trânsito nos diferentes espaços sociais de convivência da família, da escola, da igreja, da Universidade, e da inserção no mercado de trabalho.

1.2 Técnicas disciplinares
            Foucault (1987) descreve quatro técnicas ou mecanismos disciplinares que envolvem o processo de formação dos corpos dóceis: 1) arte das distribuições; 2) controle das atividades; 3) organização das gêneses; e por último 4) composição das forças.

1) arte das distribuições

Para Foucault (1987) a disciplina exige uma espécie de cerca, a especificação de um local heterogêneo a todos os outros e fechado em si mesmo. Trata-se de um local protegido da monotonia disciplinar. A produção de um corpo dócil só é possível através de uma repartição do espaço. O espaço disciplinar tende a se dividir proporcionalmente pela quantidade de corpos ou elementos que há para se repartir. Cria-se um quadriculamento onde cada corpo ocupa um lugar em que se possa tirar o máximo dele.
O autor cita as fábricas e as escolas, onde os corpos são distribuídos de maneira a regular seus movimentos e suas relações. As tarefas são delimitadas, pois cada aluno tem seu lugar, cada operário está devidamente posicionado na linha de montagem.A regulação do tempo e do espaço é o meio utilizado pela disciplina para impor uma ordem ao corpo, tornando-o eficiente. “A disciplina organiza um espaço analítico para poder vigiar o comportamento de cada um, apreciá-lo, sancioná-lo, medir as qualidades ou os méritos. Procedimento, portanto, para conhecer, dominar e utilizar” (FOUCAULT, 1987, p. 169).

2) controle das atividades


            Nesta técnica, a disciplina é constituída por meio do controle das atividades, o relógio, ou seja, um dispositivo capaz de conduzir o corpo sem que haja dispersão. Foucault (1987) cita as fábricas, quartéis e as escolas, no sentido que nessas instituições fabricaram uma grade de horários a ser cumpridos, como horário de entrada, saída e intervalo. No caso da escola, o autor mostra que no início do século XIX, foram propostos para a escola horários como: “8,45 entrada do monitor, 8,52 chamada do monitor, 8,56 entrada das crianças e oração, 9 horas entrada nos bancos, 9,04 primeira lousa, 9,08 fim do ditado, 9,12 segunda lousa, etc” (FOUCAULT, 1987, p. 176).
            De forma semelhante, verifica-se esta prática nos quartéis, hospitais, prisões, etc. A ociosidade passa a representar a ideia de perigo. O tempo deve ser bem utilizado. De acordo com Foucault (1987) é no bom emprego do corpo que o tempo será bem empregado, nada deve permanecer ocioso ou inútil, tudo deverá ajudar a formar o suporte do ato requerido.

3) organização das gêneses

Na organização das gêneses, ou seja, no arranjo das instituições em que o corpo disciplinado e dócil se instaura, o espaço e o tempo conduzem à acumulação de saberes, e também, à dominação e sujeição do corpo. O corpo a ser docilizado passa por várias etapas de formação, sendo o processo  de docilização dividido em classes, medido por provas e aprimorado por exercícios. Uma série de estágios deve ser ultrapassada até que a formação esteja concluída, desde os conteúdos mais simples até a estrutura mais complexa.
O poder disciplinar concentra-se nos mínimos gestos (detalhes) e se acumula da repetição; só assim, o homem pode ser considerado útil. Não obstante, o mais importante na organização das gêneses é o exercício, pois, é na repetição que se cria o “bom estudante” e o “funcionário exemplar”, como afirma Foucault (1987, p. 187): “o exercício, transformado em elemento de uma tecnologia política do corpo e da duração, não culmina num mundo do além; mas tende para a uma sujeição que nunca terminou de se completar”.

4) composição das forças

Nesta última técnica de disciplina, constata-se que todo treinamento tende a se concentrar num ponto máximo para a eficiência. Uma massa diversificada de indivíduos se torna, na composição de forças, um único corpo maquinal, preparado para reproduzir esquematicamente conhecimentos e práticas.
No caso da escola, Foucault (1987) afirma que os corpos já disciplinados como o diretor, supervisor, professor e outros sujeitos “superiores” devem fazer com que seus sinais sejam obedecidos pelos alunos. Neste caso, o que importa não é compreendera ordem, mas perceber o sinal, e logo reagir a ele, de acordo com um código mais ou menos estabelecido. Com isso, a máquina articulada não permite refletir, o corpo treinado apenas reproduz.
Em síntese, entende-se que a disciplina produz a partir dos corpos docilizados quatro tipos de individualidade, ou uma individualidade dotada de quatro características: “a celular (pelo jogo da repartição espacial), a orgânica (pela codificação das atividades), a genética (pela acumulação do tempo), e a combinatória (pela composição das forças)”(FOUCAULT, 1987, p. 176).


2 O papel da mulher no Brasil
            Épouco provável se debruçar sobre o papel da mulher na história do Brasil sem relacioná-lo às funcionalidades sociais do âmbito familiar. O papel da mulher, historicamente, sempre esteve atrelado ao da família. Se retomarmos a história das famílias brasileiras, percebemos a institucionalização da chamada família patriarcal, originária do modelo de sociedade fundamentado no patriarcalismo.
            A família é uma microssociedade (PROST, 1992), com organização política, econômica, social e cultural, baseada nas macroestruturas sociais em que cada família se encontra. Cada membro familiar conduz um papel. No que diz respeito à função da mulher na família, percebe-se desde a antiguidade, com a dominação do poder da igreja sob as sociedades ocidentais, forte submissão da mulher à figura do “pai”:

A todo-poderosa Igreja exercia forte pressão sobre o adestramento da sexualidade feminina. O fundamento escolhido para justificar a repressão da mulher era simples: o homem era superior, e portanto cabia a ele exercer a autoridade. São Paulo, na Epistola aos Efésios, não deixa dúvidas quanto a isso: “As mulheres estejam sujeitas aos seus maridos como ao Senhor, porque o homem é a cabeça da mulher, como Cristo é a cabeça da Igreja... Como a Igreja está sujeita a Cristo, estejam as mulheres em tudo sujeitas aos seus maridos” (ARAÚJO, 2015, p. 45-46).

Para Araújo (2015), nessa época, pretendia-se controlar a sexualidade feminina de várias formas e em diversos níveis. Qualquer comportamento “desviante” da mulher deveria ser corrigido com severas punições, como previa a legislação civil do Brasil colonial.
Outros sujeitos que fomentaram a ideia de inferioridade da mulher perante o homem foram os médicos. Conforme Priore (2015), nos tempos da colonização, o médico era um criador de conceitos, e cada conceito elaborado tinha uma função no interior de um sistema que ultrapassava o domínio da medicina propriamente dito.O exemplo de incentivo à submissão feminina pode ser extraído da interpretação do médico mineiro Francisco de Melo Franco, em 1794:

[...] se as mulheres tinham ossos “mais fraca do que o homem”. Suas carnes, “mais moles [...] contendo mais líquidos, seu tecido celular mais esponjoso e cheio de gordura”, em contraste com o aspecto musculoso que se exigia do corpo masculino, expressava igualmente a sua natureza amolengada e frágil, os seus sentimentos “mais suaves e ternos”. Para a maior parte dos médicos, a mulher não se diferenciava do homem apenas por um conjunto de órgãos específico, mas também por sua natureza e por suas características morais. (PRIORE, 2015, p.79).


Durante o século XIX, a sociedade brasileira sofreu uma série de transformações. Presenciou-se o nascimento de uma nova mulher nas relações da chamada família burguesa, ali marcada pela valorização da intimidade e da maternidade, do ambiente familiar acolhedor, dos filhos educados com base na religiosidade da esposa dedicada ao marido, às crianças e à igreja.
D’incao (2015) mostra que as mulheres casadas ganhavam uma nova função, a de contribuir para o projeto familiar de mobilidade social, através de postura feminina nos salões, como anfitriãs, e na vida cotidiana, em geral, como esposas modelares e boas mães. Percebe-se o reforço da ideologia ideal de mulher: ser mãe, dedicada, recatada e atenciosa.
Os cuidados e a supervisão da mãe passam a ser muito valorizados nessa época, ganha força a ideia de que seria importante que as próprias mães cuidassem da primeira educação dos filhos, não deixando suas crias aos cuidados das amas, negras ou “estranhos”, “moleque” de rua. (D’INCAO, 2015, p. 229). Tem-se aqui, o perfil da mulher do lar.
Assim, o sucesso das famílias burguesas no século XIX, passa a depender o desempenho das mulheres no espaço doméstico. Não se pode esquecer que a emergência da família burguesa, ao reforçar no imaginário a importância do amor familiar e do cuidado com o marido e com os filhos, redefine o papel feminino e, ao mesmo tempo, reserva para as mulheres novas e absorventes atividades no interior do espaço doméstico.
D’incao (2015) mostra que algumas instituições médicas, educativas e de impressa, da época, reforçaram esse papel com a propagação de uma série de propostas que visavam “educar” a mulher para o seu papel de guardiã do lar e da família; como exemplos que revelam esta natureza, tem-se o jornal das famílias, que será apresentado na seção 3.1, e a medicina,que também combatia severamente o ócio, sugerindo que as mulheres se ocupassem ao máximo dos afazeres domésticos.
Não muito diferente das mulheres burguesas, Falci (2015) afirma que as mulheres de classe mais abastada não tinham muitas atividades fora do lar. Eram treinadas para desempenhar o papel de mãe e as chamadas “prendas domésticas”, ou seja, suas funções eram orientar os filhos, cozinhar, costurar e bordar. Outras, menos afortunadas, viúvas ou de uma elite empobrecida, faziam doces por encomenda, arranjos de flores, bordados a crivo, davam aulas de piano e solfejo, e assim puderam ajudar no sustento e na educação da numerosa prole.
Como se vê, a mulher do século XIX, independente da classe social ou do grau de instrução, estava restrita à esfera do espaço privado, da casa, do lar. A esfera pública do mundo econômico, político, social e cultural pertencia, exclusivamente, ao homem. Daí afirmar que a mulher dificilmente seria considerada uma cidadã política, pensante, mas sim um corpo a ser domado, controlado, vigiado.


3 Análise das práticas discursivas sobre a mulher “bela, recatada e do lar”
            Para compreensão de um determinado fato histórico é indispensável a análise da prática discursiva, como propõe Foucault (2004), pois é no dizer que se fabrica as noções, os conceitos e as verdades de um dado momento histórico. Gregolin (2007) aponta que a análise dessas práticas é uma forma de mostrar que a relação entre o dizer e a produção de uma “verdade” é um fato histórico.
No que tange aos textos midiáticos, Gregolin (2007) afirma que a criação de uma “unidade” do sentido é um recurso discursivo que fica evidente nesses tipos de textos.

Como o próprio nome parece indicar, as mídias desempenham o papel de mediação entre seus leitores e a realidade. O que os textos da mídia oferecem não é a realidade, mas uma construção que permite ao leitor produzir formas simbólicas de representação da sua relação com a realidade concreta. (GREGOLIN, 2007, p. 16)

Para Gregolin (2007), a mídia é o principal dispositivo discursivo por meio do qual é construída uma “história do presente”, pois é ela que formata a historicidade que nos atravessa e nos constitui, modelando a identidade histórica que nos liga ao passado e ao presente.
            Sabendo da forte influência da mídia na fabricação de sujeitos na sociedade moderna e contemporânea, a análise que será apresentada aqui consistirá, estritamente, no entrecruzamento da categoria de corpos dóceis, encontrado na obra de Michel Foucault, comas práticas discursivas sobre um modelo de mulher, isto é, “bela, recatada e do lar” que se observa em textos midiáticos de dois períodos distintos da história no Brasil. Um deles está no jornal impresso do século XIX e o outro se apresenta nos dias atuais, em reportagens veiculadas por revistas de impacto nacional e internacional.

3. 1 Processo de docilização no Jornal das Famílias
No que concerne ao século XIX, selecionamos o Jornal das famílias[2] produzido durante os anos 1863 a 1878. Conforme Castro (2014) foi um jornal pensado e editado pelo Francês Garnier para atender as necessidades das mulheres, exclusivamente, para o entretenimento. Mas para, além disso, é possível observar o conteúdo moralizante em todo o periódico. Como aponta Falci (2015, p. 241) “a elas certos comportamentos, posturas, atitudes e até pensamentos foram impostos.
Na primeira edição do jornal constata-se que o periódico se consuma como a continuação da Revista Popular (de circulação mais geral), no entanto, voltado para as atividades domésticas: “O Jornal das Famílias, pois, é a mesma Revista Popular d’ora avante mais exclusivamente dedicada aos interesses domésticos das famílias brasileiras.” (Jornal das Famílias, 1863, p. 02).
Conforme Castro (2014) é na leitura do editorial que se percebe como o espaço exclusivo da leitora era destinado a tarefas domésticas, como cozinhar, costurar, cuidar da casa, dos filhos, etc.: “as casadas dedicam-se ao cuidado com a administração do lar, enquanto que as solteiras aprendem a cozinhar, como se estivessem se preparando para o lar que ainda não possuíam”. (CASTRO, 2014, p. 20).
O jornal das Famílias também trazia “dicas” de beleza, de como a mulher bela deveria cuidar de sua saúde, sua pele, traços que marcam a feminilidade: “o fundamento das formas belas é a saúde, e para isso não ha como o movimento e o exercício ao ar livre, alimentação substancial e regularidade de nos hábitos da vida, levantar cedo e não deitar tarde. [...] Que uma pele macia e brilhante seja um predicado da beleza, ninguém o contestará por certo, trata-se, porém, de saber como se conserva e mesmo como se obtém este dote”. (Jornal das Famílias, 1863, p. 03).
Observam-se também, durante a leitura do jornal, receitas de produtos cosméticos caseiros para cuidar da pele, dos cabelos, receitas para cozinhar, instruções para bordar, fazer crochê ou indumentárias da época. Como exemplos, segue abaixo a figura 01 e 02 mostrando uma receita caseira para cuidar da pela e explicações sobre figurinos.
Figura 01 – Receita caseira para cuidar da pele
Fonte: Extraído do Jornal das Famílias (1863). 
            A figura 02 mostra como se apresentavam as instruções para costurar bons trajes no século XIX. Inicialmente, apresentam-se os modelos de trajes elegantes da época e em seguida explicações sobre cada um.

Figura 02 –Figurinos do século XIX
Fonte: Extraído do Jornal das Famílias (1864). 


Figura 03 – Descrição e explicação dos figurinos
Fonte: Extraído do Jornal das Famílias (1864).
Estes exemplos mostram como o poder disciplinar se materializa no discurso, e consequentemente, no corpo que o reproduz, o corpo feminino. Vê-se a existência do regimento disciplinar, do qual, a mulher oitocentista é obrigada a cumprir, isto é, cuidar dos afazeres domésticos e do papel de instrução para uma boa esposa, a fim de que não desfrutasse do ócio, tão condenado pelos médicos da época. Constatam-se inúmeras instruções de como ela deveria agir no âmbito familiar. De fato, a mulher passa por um processo de docilização que tende a esquadrinha-la no discurso da “mulher bela, recatada e do lar”.
Em relação às quatro técnicas disciplinares, mencionadas na seção 1.2, para se chegar ao corpo dócil, percebe-se que a arte das distribuições corresponde ao espaço em que a mulher ocupa: a casa e o lar. É justamente neste espaço que se aproveita da mulher, no controle das atividades, pois, a ela, incumbe-se horário para cuidar dos afazeres domésticos e dos filhos, até mesmo, para se dormir. Segundo as “dicas” do Jornal das Famílias, as mulheres deveriam dormir cedo para preservarem sua beleza. Por ser um jornal que tem extensa periodicidade, as instruções sobre as tarefas domésticas sempre se repetiam, culminando assim na organização das gêneses.
A reprodução das instruções no controle das atividades e na organização das gêneses faria da mulher uma “boa esposa, excelente dona de casa e ótima mãe”. No que tange a composição das forças, é arquitetada a obediência das instruções trazidas pelo referido jornal, não só destinada às mulheres casadas, mas às solteiras, que almejavam ao matrimônio. As mulheres solteiras do século XIX deveriam aprender com as mais experientes, normalmente as mães. Uma tradição de aprendizagem de afazeres domésticos que era transmitida de mãe para filha.

3.2 Processo de docilização na revista Veja
            A revista Veja é um periódico semanal produzido pela Editora Abril. Na edição de número 2474, publicada no dia 18 de abril de 2016, o papel da mulher contemporânea tornou-se o assunto principal das ruas, das casas, dos ambientes de trabalho e das redes sociais.Com a reportagem intitulada: Bela, recatada e “do lar”, a matéria escrita pela jornalista Juliana Linhares parece pautada no objetivo de descrever quem seria a “quase primeira-dama” Marcela Temer, hoje primeira-dama interina, tendo em vista o afastamento da presidenta Dilma Rousseff.
            De antemão, vale ressaltar o contexto referencial desta publicação. A edição de número 2474 da revista foi publicada em meio ao cenário conturbado da politica brasileira (em curso do processo de tramitação do impeachment,imputado à presidenta Dilma Rousseff). A interinidade do presidente em exercício, Michel Temer, reverbera na caracterização de Marcela como “quase primeira-dama”.
Em meio à polarização da cena política brasileira, dividida entre os que apoiam o impeachment,e os que consideraram o processo como golpe de Estado, a revista Veja emplacou a manchete “bela, recatada e do lar”. Em defesa dos interesses econômicos do grupo social que a financia, parte da mídia brasileira parece desinteressada da informação gratuita, e interessada na manipulação da vida política do país. A este critério, pensa-se a reportagem da revista Veja, em face do projeto de adestramento do sujeito analisado por Foucault, como se vê a seguir.

Figura 04 – Matéria da Revista Veja sobre Marcela Temer
Fonte: Extraído da revista Veja (2016). 


A figura 04 mostra a “cabeça” da reportagem, trazendo ao leitor a imagem de Marcela Temer, ilustrada pela sinopse da legenda: “A quase primeira-dama Marcela Temer, 43 anos mais jovem que o marido, aparece pouco, gosta de vestidos na altura dos joelhos e sonha em ter mais filho com o vice”.
Ao longo da reportagem, a jornalista Juliana Linhares apresenta a biografia de Marcela Temer, comentando sobre sua formação acadêmica e a rotina diária da quase primeira-dama. O texto inicia-se com o trecho: “Marcela Temer é uma mulher de sorte”. A jornalista conta ao público que Temer foi o primeiro namorado de Marcela, e que eles se casaram quando ela tinha 20 anos, e ele, 62. Ela é Bacharel em Direito, mas nunca exerceu a profissão de advogada. Gosta das tarefas domésticas e se dedica ao filho e ao marido.
A impressão do leitor ao ler a reportagem é a descrição de uma mulher burguesa do século XIX, como já citado na seção 2. O processo de docilização do corpo da mulher está explicito na pratica discursiva da jornalista, ao apresentar Marcela Temer. Considerando as quatro técnicas disciplinares, destaca-se na primeira delas, a arte das distribuições,a ideia que consiste em fixar o “lugar” que Marcela ocupa: o espaço doméstico.
A dócil presença de Marcela na família Temer é corroborada pelo trecho: “Marcela é uma vice-primeira-dama do lar”. A segunda técnica, o controle das atividades,corresponde ao relógio que controla cada atividade de Marcela Temer. Neste cotidiano, cita-se as tarefas da mãe afetuosa, que busca o filho na escola;da mulher vaidosa, que vai ao salão de beleza para cuidar do cabelo e da pele, e da jovem esposa, mais inteirada do que o setuagenário marido com o gerenciamento das mídias digitais dele. Atrelado ao controle das atividades está a organização das gêneses, ou seja, a repetição das tarefas domésticas e o cuidado com a beleza, conforme se observa-se no fragmento da matéria:

Seus dias consistem em levar e trazer Michelzinho da escola, cuidar da casa, em São Paulo, e um pouco dela mesma também (nas últimas três semanas, foi duas vezes à dermatologista tratar da pele). [...] “Marcela sempre chamou atenção pela beleza, mas sempre foi recatada”, diz sua irmã mais nova, Fernanda Tedeschi. “Ela gosta de vestidos até os joelhos e cores claras”, conta a estilista Martha Medeiros.[...] Marcela é o braço digital do vice. (Revista Veja, abr. 2016)

A última técnica de formação dos corpos dóceis é a composição das forças;trata-se do corpo treinado. A mulher é posicionada de forma docilizada, preparada para ocupar o lar e ser uma “boa esposa e mãe”. Caberá a ela, mulher, reproduzir o processo de docilização à outras mulheres, que por conseguinte, deverão obedecer aos seus sinais, caso queiram obter o sucesso de Marcela Temer, referida na matéria jornalística como “mulher de sorte”, que conseguiu se casar com um “homem de sorte”.

Considerações finais
Os resultados da análise feita sobre as práticas discursivas no Jornal das Famílias e na reportagem da Veja sobre Marcela Temer, mostram que a história do poder disciplinar sobre o corpo feminino é descontínuo. Semelhante processo de docilização encontrado no Jornal das Famílias(século XIX) também reverbera na reportagem da Revista Veja (século XXI), em recortes temporais distintos.
            A luz da docilização do corpo, a mulher “ideal” é aquela que sabe cuidar da casa e dos filhos, é a mulher “prendada”, “bela, recatada e do lar”. Em ambas as práticas discursivas analisadas, tanto no jornal quanto na revista, o papel feminino impõe a total submissão ao homem, instaurando assim o poder disciplinar do corpo da mulher. No século XIX o único espaço da mulher era a esfera privada, a casa. Já no século XXI é possível encontrar o corpo feminino nos espaços públicos, conquista do movimento e da luta feminista.
Na contramão das conquistas emancipatórias da mulher, a reportagem da revista Veja parece perpetuar o “ideal de mulher”, concedendo notoriedade a Marcela Temer, por observar na quase primeira-dama traços da docilidade.
            Desde o surgimento da imprensa, a mídia confirmou-se como forte dispositivo capaz de disciplinar sujeitos e manter a ordem social preestabelecida. Ao lado da mídia, a família como microssociedade, irá reproduzir a ordem social (mulher disciplina e submissa), criando novas forças de poder, novos corpos dóceis. Ciente da maleabilidade do poder, sensível às novas construções e usos sociais, torna-se possível assimilar a força subjetiva que rompe com os processos de docilização.
            Ainda é preciso se aprofundar e acrescentar categorias e reflexões foucaultianas para uma análise mais consistente e aprimorada. Todavia, este trabalho fornece novos resultados,completados pelas categorias da formação discursiva, da história descontínua, das regularidades, das ordens do discurso, e da ideia de dispositivo. Para além da análise do discurso, os resultados também servem ao propósito da análise sociológica, observando questões sociais como o machismo, o papel da mulher contemporânea, a manipulação midiática, a sociedade de controle e a sociedade disciplinada.
           
AUTOR 


Romário Duarte Sanches  é Doutorando em Linguística pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Mestre em Linguística pela mesma universidade (UFPA). Especialização em Estudos Linguísticos e Análise Literária pela Universidade do Estado do Pará (UEPA). Graduado em Letras/Inglês pelo Instituto de Ensino Superior do Amapá (IESAP). Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Amapá (UNIFAP). Atua nas áreas de Letras e Linguística.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 
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JORNAL DAS FAMÍLIAS (Biblioteca Nacional Digital do Brasil). Disponível em: <http://hemerotecadigital.bn.br/acervo-digital/jornal-familias/339776>. Acesso em 27 de Julho de 2016.

MARCELA TEMER: BELA, RECATADA E “DO LAR”. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/brasil/marcela-temer-bela-recatada-e-do-lar/>. Acesso em: 27 de Julho de 2016.




[1] La Mettrie desenvolveu em 1748 o conceito mecanicista do ser humano.
[2] Atualmente quase todas as edições do jornal estão disponíveis na homepage da Biblioteca Nacional Digital do Brasil (http://hemerotecadigital.bn.br/acervo-digital/jornal-familias/339776).

FEIRA DE SANTANA-BA | nº 5 | vol. 1 | Ano 2017

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