Filósofas: invisibilidade e silenciamento

Joana Tolentino*


RESUMO
A filosofia identifica-se com um saber crítico de superação do senso comum. Assim, podem causar estranhamento os inúmeros silenciamentos e invisibilizações operados pela tradição filosófica ocidental e disseminados por seu ensino. A filosofia segue uma longa trajetória histórica de exclusões de gênero, grupos étnicos, localidades geográficas. Estas práticas são produto da colonialidade de saberes e poderes, imbricados com a colonialidade do ser, que nega existência às subjetividades historicamente objetificadas sob eixos de opressão como raça, gênero, classe, sexualidade. O objetivo deste escrito é propor o reconhecimento desta violência do cânone filosófico como prática epistemicida, em especial no que se refere ao recorte de gênero e sua relação com a colonialidade. A história dessa exclusão, ao negar existência epistêmica a outras matrizes de produção filosófica, retirando seus lugares de fala, deslegitima saberes e ratifica um padrão hegemônico eurocentrado. Adota-se aqui a interlocução com algumas filósofas, em especial latino-americanas, a fim de evidenciar a violência com que opera o cânone filosófico, responsável pelo epistemicídio de mulheres, africanos, lationamericanos, indígenas. Este escrito valoriza práticas educativas descolonizadoras, que tensionem o cânone filosófico, como potentes para abrir fissuras e inscrever reexistências, no campo das micro-resistências localizadas.

PALAVRAS-CHAVE: filósofas, feminismo, cânone filosófico, epistemicídio.


FILOSOFIA E COLONIALIDADE

A filosofia constitui muito de sua identidade em contraposição aos preconceitos e ao senso comum, apresentando-se associada a uma atitude filosófica de espanto e admiração, enquanto atitudes de desnaturalização do que é histórico e construído. Ao colocar-se em busca do saber, superando a ignorância, não aceitando passivamente que as coisas simplesmente sejam como são, a filosofia instaura a dúvida, questiona, nos propõe olhar sob outras perspectivas. Esse corolário que fundamenta o fazer e o saber filosóficos poderia constituir-se como uma rara unanimidade no âmbito dos que praticam a filosofia, seja na academia ou em espaços alternativos: quem haveria de duvidar do caráter investigador e questionador da filosofia?

Em contradição a esse corolário questionador que poderia sugerir liberdade de pensamento, o que identificamos na instauração da tradição filosófica e seus saberes legitimados e canonizados, tal como denunciam teóricas e teóricos da descolonização, são práticas que corroboram com o senso comum de um projeto de poder que tem a Europa como centro radial e o mundo norte-ocidental como seu modelo a ser expandido. A já conhecida imbricação entre poderes e saberes. Porém parece que absorvemos esse conhecimento somente enquanto teoria, pois concordamos com as evidências e os argumentos que o fundamentam, mas simplesmente o catalogamos em alguma pasta de ‘verdades’ em nossa mente, já tão cheia de informações. Dificilmente nos preocupamos em identificar as promiscuidades dessa imbricação na prática, esse conhecimento teórico da imbricação entre saberes e poderes não se transforma em conhecimento prático, raramente se torna alvo de nossas lutas efetivas – ação, denúncia, resistência. Isso apenas se acentua quando essa prática ocorre em nossa área de trabalho, talvez pela ausência do mínimo de distanciamento, que borra e distorce a própria visão das coisas.

O que até aqui foi dito em nada destoa da produção epistêmica eurocentrada e excludente em outras áreas de saber, como a astronomia, a antropologia, a medicina, a física, a geografia. Mas aqui nos interessa perguntar sobre nosso campo de atuação: coaduna com o fazer filosófico e sua atitude filosófica crítica essa prática epistemicida, via silenciamentos e invisibilizações? Qualquer área do saber pode arrogar-se uma pseudo neutralidade ao compor seus recortes curriculares e de pesquisa, ao eleger certos autores, geralmente em detrimento das autoras, mas sabemos que essa neutralidade não existe e que somos perpassadas a todo instante por linhas de força e jogos de poder que silenciam ou excluem certas vozes e conteúdos, na mesma medida em que reificam ou canonizam outras.

O que vemos na filosofia, sua tradição e ensino é a hipervalorização da produção filosófica oriunda do continente europeu, vocacionado para a filosofia mais especificamente em sua porção central e ao norte, com foco na Alemanha, França e Inglaterra - não surpreende o quanto isso reforça o eixo dos países europeus dominantes desde a alta modernidade. Foi no projeto da modernidade que se consolidou a produção filosófica européia do conhecimento, após seu desenvolvimento europeu na Grécia antiga, posterior polo cultural fomentador e nutridor da sociedade judaico-cristã, alguns séculos antes do advento do cristianismo. Foi na esteira desse projeto de modernidade, baseado na expansão colonial, pilhagem, domínio de territórios e extermínio de seus povos originários, que a filosofia (aliada a outras ciências que neste momento se especializavam e demarcavam seus limites no interior da cultura européia), passa a integrar todo um simbólico que sustenta, legitima e justifica as práticas de colonialidade. Este simbólico é voltado para a expansão de um padrão hegemônico que até hoje coloca à margem formas distintas de ser e de viver, para além do modelo europeu exportado e globalizado em distintos momentos dos processos de colonialidade – urbanizado, industrial, branco, capitalista, patriarcal, judaico-cristão, heteronormativo (monogâmico, monoteísta, monocromático, em suma, monótono).

Sabemos que [n]o colonialismo europeu (...) o racismo se constituía como a ‘ciência’ da superioridade eurocristã (branca e patriarcal), na medida em que se estruturava o modelo ariano que viria a ser não só o referencial das classificações triádicas do evolucionismo positivista das nascentes ciências do homem, como ainda hoje direciona o olhar da produção acadêmica ocidental. Vale notar que tal processo se desenvolveu no terreno fértil de toda uma tradição etnocêntrica pré-colonialista (séc.XV–séc.XIX) que considerava absurdas, supersticiosas ou exóticas as manifestações culturais dos povos ‘selvagens’. Daí a ‘naturalidade’ com que a violência etnocida e destruidora da força do pré-colonialismo europeu se fez abater sobre esses povos. No decurso da segunda metade do séc. XIX, a Europa transformaria tudo isso numa tarefa de explicação racional dos (a partir de então) ‘costumes primitivos’, numa questão de racionalidade administrativa de suas colônias. Agora, em face à resistência dos colonizados, a violência assumirá novos contornos, mais sofisticados; chegando, às vezes, a não parecer violência, mas ‘verdadeira superioridade’. Os textos de um Fanon ou de um Memmi demonstram os efeitos de alienação que a eficácia da dominação colonial exerceria sobre os colonizados. (GONZALEZ, Lélia, 1988, p.71)

É travestido da ‘verdadeira superioridade’ proveniente de sua gênese européia, branca e heteropatriarcal (matriz, metrópole, centro do poder colonial) que os discursos filosóficos europeus modernos atingem sua máxima eficácia de dominação, via alienação, sua legitimidade e validade universais. Isso ocorre via mitificação, com dois aspectos relevantes: i) o aspecto religioso-cristão: com uma representação e a força, pela primeira vez na Europa, de uma divindade monoteísta, branca, masculina e antropomórfica, excluindo natureza, contradizendo toda a tradição anterior politeísta que relacionava a natureza às deusas, ao feminino, tanto na tradição grega antiga, pagã, como as tradições celtas e vikings, entre outras (isso sem falar na grande pacha mama que, como gaia, se confunde com a terra, comum às tradições dos territórios americanos indígenas pre-colombianos); ii) o aspecto racionalista universal: a racionalidade era atributo associado especificamente ao homem branco europeu ‘civilizado’, ‘desenvolvido’ e constituía o cerne da legitimação de sua percepção de si mesmo enquanto superior – à natureza e aos demais seres, às mulheres, aos seres de outras culturas, a outras tradições (que até questionavam se eram realmente humanos) – até mesmo superiores aos povos do oriente que haviam dominado o território europeu por séculos no medievo, após a queda do Império Romano.

Esse aspecto de mitificação da racionalidade logofalocentrada, enquanto única racionalidade possível, excluindo saberes e epistemologias diversas como ‘outras’, míticas, estranhas, “absurdas, supersticiosas ou exóticas as manifestações culturais dos povos ‘selvagens’”, para usar as palavras, destacadas acima, da filósofa brasileira negra Lélia Gonzalez. Todas essas estratégias interligadas remetem à valorização da suposta universalidade desses juízos de valor travestidos em conceitos, sistemas, verdades. Em última instância, valorizam e legitimam a universalidade do próprio ser, baseada em uma suposta neutralidade mitificada dos saberes (no princípio era o verbo – entendido como linguagem, logos, razão – assim começa a bíblia, o livro sagrado dessa tradição). O que essa mitificação escamoteia, via universalismos, é o apagamento do lugar de fala e das particularidades do como, onde e por quem são proferidos esses saberes que se pretendem universais e absolutos - sem tempo nem espaço, sem lugar nem sujeito, sem geografia ou política, produzidos de maneira ‘desinteressada’.

Não se trata de uma descrição de ‘como as coisas realmente eram’ ou de privilegiar a narrativa da história como imperialismo como a melhor versão da história. Trata-se, ao contrário, de oferecer um relato de como uma explicação e uma narrativa da realidade foram estabelecidas como normativas. (SPIVAK, Gayatri, 2014, p.61-62).

É nessa máscara de neutralidade e universalidade, associadas à racionalidade tal como limitada por esse projeto colonizador de poder (e saber), que identifico a maior perversidade do cânone filosófico, na tentativa de construir saberes não-situados, discursos proferidos por sujeitos abstratos - logo, desinteressados, neutros, sem sotaque. No privilégio de processos des-historicizantes dos saberes, posto que universais, atemporais, acima do bem e do mal, processos que perversamente os desligam dos poderes que lhes são inerentes. Ou então no esforço por historicizá-los em termos progressivos de uma história única e ascendente, tal como o projeto hegeliano de evolução e progresso do ocidente, tendo à frente o norte da Europa (quanta coincidência!) - o que garantiria atingir os mesmos objetivos hegemônicos, reducionistas da diversidade.

Já de há muito sabemos o quanto isso é fruto de um constructo social e histórico. Mas é justamente porque somos seres humanos, intrinsecamente espaço-temporais, culturais e históricos, que esses traços construídos socialmente nos constituem em tamanha radicalidade. “(...) a humanidade é coisa diferente de uma espécie: é um devir histórico; define-se pela maneira pela qual assume a facticidade natural.” (BEAUVOIR, Simone, 2009, p.919). Assim, os traços culturais são internalizados tão profundamente que instauram-se em nós como hábitos e o hábito funciona tal qual uma segunda natureza, já nos afirmava Aristóteles. Justamente por isso faz-se ainda mais indispensável não só o reconhecimento da violência dos processos de colonialidade do cânone filosófico, como também sua desconstrução, além de ações de reparação, bem como o fomento de filosofias e intelectuais militantes na construção de discursos contra-hegemônicos. A negligência quanto a essas ações é ressaltada pela filósofa indiana Gayatri Spivak ao afirmar que “essa exclusão da necessidade da difícil tarefa de realizar uma produção ideológica contra-hegemônica não tem sido salutar.” (2014, p.36).

Essas ações se somariam no sentido de abrir caminho para o esgarçamento e a implosão da tradição excludente da filosofia e seus silenciamentos – assim também em outros saberes, por reverberação e afecção mútua - cujos efeitos são verdadeiros epistemicídios de etnia, cultura, gênero. Essas ações se somariam, ainda, no sentido da superação, por cada subjetividade, de tais hábitos. Com essa afirmação objetivo destacar e ressaltar em relação ao hábito dois elementos conjugados: i) primeiramente a insistência na necessidade de desnaturalização desses processos e sua identificação como históricos, algo que pode parecer para lá de óbvio – mas vivemos em tempos em que têm sido necessário, se não indispensável, dizer o óbvio.

Aliás, a ideia de um ‘instinto’ criador deve ser abandonada, como a do ‘eterno feminino’, no velho armário das generalizações. (...) Quanto ao argumento que se tira do exame da história, acabamos de ver o que se deve pensar. O fato histórico não pode ser considerado como definindo uma verdade eterna; traduz apenas uma situação, que se manifesta precisamente como histórica porque está mudando. (BEAUVOIR, Simone, 2009, p.916)

ii) em segundo lugar, mas não menos importante, recupero a noção de hábito também para ressaltar sua dimensão pessoal. Este último elemento com a finalidade de sublinhar que, a despeito das características sistêmicas e estruturais, também está na esfera de cada subjetividade sua parcela de responsabilidade sobre a reprodução e a perpetuação dessas estruturas históricas e seus lugares de privilégio.

Nessa perspectiva, o racismo não é problema de negros, indígenas ou ‘chincanos’, ao contrário, é um crime da branquitude, com o qual todos os brancos e brancas, de diferentes períodos históricos e lugares geográficos, em algum momento tiveram ou terão que fazer seu ajuste de contas. Ainda que esse ajuste seja sempre precário e insuficiente, posto que a escravização dos povos não-brancos, especialmente dos africanos, foi um projeto e uma política global e com consequências nefastas até os dias de hoje, portanto, requer ações macropolíticas globais. Ainda assim, enfoco a importância das ações singulares, nas esferas micropolíticas, por serem capazes de operar reparações localizadas que muito influenciam na vida cotidiana das pessoas. Reparações capazes de, na perspectiva das mutualidades, inscrever re-existências – outros modos de existir, resistindo às opressões, criando outras formas de se relacionar consigo mesmo e com o outro no mundo.

As sociedades que vieram a constituir a chamada América Latina foram as herdeiras históricas das ideologias de classificação social (racial e sexual) e das técnicas jurídico-administrativas das metrópoles ibéricas. Racialmente estratificadas, dispensaram formas abertas de segregação, uma vez que as hierarquias garantem a superioridade dos brancos enquanto grupo dominante. (GONZALEZ, Lélia, 1988, p.73)

No mesmo sentido, o patriarcalismo e a misoginia não são ‘problema de mulher’, mas sim um conjunto de símbolos, significados e práticas criminosas perpetrado por alguns, mas perpetuados por todos aqueles que, de algum modo, ontem e hoje, reproduzem essas estruturas e delas se beneficiam – seja obtendo mais reconhecimento social e tendo mais acesso a oportunidades, seja recebendo maiores remunerações salariais para realizar os mesmos trabalhos, seja em sua maior liberdade de ser e de viver. Os efeitos nocivos dessas práticas criminosas são evidentes, como podemos identificar na histórica e reincidente opressão de determinados grupos sociais até os dias de hoje – como é o caso de mulheres, negros, indígenas, dentre inúmeros outros.


COLONIALIDADE E GÊNERO: INVISIBILIZAÇÃO DA PRODUÇÃO FILOSÓFICA DAS MULHERES

Adoto neste texto um pequeno recorte no interior da temática de gênero, bastante ampla, propondo a afirmação e a valorização da presença das mulheres na filosofia, tanto na produção atual quanto em seu reconhecimento e inserção na tradição histórica da filosofia. Assim, proponho ampliar o lugar de fala das mulheres na filosofia através do ensino e difusão do pensamento das filósofas – e aqui, em especial, de filósofas latino-americanas e a dupla opressão e silenciamento sofridos, tanto no eixo de gênero quanto na exclusão geográfica/racial/colonial.

Com esse intuito, proponho apontarmos as clássicas questões críticas filosóficas também para a própria filosofia e nos perguntarmos: por que muito pouco ou quase nada estudamos das mulheres que filosofam ou filosofaram ao longo da história canonizada da filosofia? Por que nós, filósofas e filósofos da América-Latina, pretensamente esclarecidos, em pleno séc. XXI, aprendemos, pesquisamos e ensinamos um saber filosófico quase que totalmente falo-euro-branco-centrado (lembrando aqui que as exceções, raras que são, apenas confirmam a regra)? O quanto temos de nos alienar de nós mesmas – enquanto mulheres e latino-americanas, muitas de nós ‘mujeres de color’[1] (mulheres historicamente oprimidas como mulheres não-brancas), nos desidentificando com o que somos, para conseguirmos nos identificar com esse saber hegemônico, branco, heteronormativo, patriarcal, que é o cânone filosófico? O que há de opressor nisso – e de auto-opressor posto que reproduzimos as opressões contra nós mesmas? Ainda mais se pensarmos que, ao reproduzirmos essa perspectiva da filosofia colonial-patriarcal como hegemônica em nossos escritos e em nossas aulas, somos agentes importantes para sua transmissão, enraizamento e perpetuação. O quanto, dessa maneira, contribuímos, nós, professoras e professores de filosofia, para a manutenção de um senso comum de desvalorização da mulher, de sua capacidade e de seus feitos, ao longo da história pública comum? Podemos facilmente constatar como e quanto essa tradição filosófica contribui (e nós também enquanto seus agentes), em última instância, para a misoginia entranhada nas nossas sociedades, evidenciada pela cultura do estupro sob a qual vivemos, alicerçada no assédio sexual e moral das mulheres, culminando na violência e na objetificação de seus corpos e de suas vidas.

Ainda que, enquanto professoras e professores de filosofia jamais tenhamos desqualificado a capacidade das alunas para a aprendizagem filosófica, seja na educação básica ou na formação superior, o quanto alimentamos as opressões de gênero ao transmitirmos um saber que parece interditado às mulheres, posto que não as escutamos, totalmente identificado com o sucesso de mais de vinte séculos de misoginia epistêmica. Isto é, do genocídio epistêmico das mulheres, operado ao longo de toda a história norte-ocidental unívoca heteropatriarcal hegemônica, através do apagamento e da total desqualificação da capacidade das mulheres de produzir conhecimento. Elas foram assim restringidas e reduzidas ao nível do privado, do familiar, excluídas do âmbito público, político e epistêmico, aprisionadas na doxa, reduzidas ao senso comum. Ainda que possamos, enquanto filósofas e filósofos, ao estudar e ensinar o pensamento dos filósofos homens clássicos da tradição nos atenhamos a alguns possíveis aspectos mais libertários de suas teorias, se sequer mencionamos o patriarcalismo inerente a muitos de seus escritos, estamos contribuindo para a naturalização das opressões de gênero – a manutenção da hegemonia de um binarismo predeterminado, heteronormativo, falocêntrico. Afinal, em algum momento a/o estudante que está lendo Kant, Nietzsche, Platão poderá acessar suas falas patriarcais e até mesmo misóginas, ainda que o estudo esteja voltado, por exemplo, para o conceito de liberdade ou de maioridade, em Kant – algo que o filósofo alemão, com esforço, concede ser passível de acontecer (pasme!) até mesmo às mulheres.

    É impossível precisar e delimitar o quanto xs alunes se aprofundam em suas leituras a partir de seu interesse pessoal – mesmo que se esteja focando no valor da natureza ou da experiência, para Aristóteles, ou ainda na crítica da desigualdade entre os homens, em Rousseau. É impossível prever quando se terá acesso, por exemplo, às partes do Emílio em que Rousseau descreve a educação das mulheres sob uma perspectiva bastante misógina, que o filósofo iluminista defende neste livro largamente utilizado nas disciplinas de filosofia da educação, porém raramente questionado em sua misoginia. Não defendo aqui que se exclua esses autores da tradição filosófica, mas que capacitemos as novas gerações, através de práticas educativas decoloniais, para que, inserindo os filósofos em seus contextos, possam analisar, entender, discutir e criticar seus discursos. Não se pode manter a invisibilização das filósofas no interior do cânone filosófico, na história da filosofia, na mesma medida em que não é mais possível ‘jogar para debaixo do tapete’ toda a enorme sujeira de séculos e mais séculos de misoginia epistêmica, patriarcalismo, opressões binárias de gênero. É também através de nossas ações que corremos o risco de manter, sendo cúmplices, a opressão histórica de gênero contra as mulheres, cujo efeito são os elevados e crescentes índices de sofrimento de seus corpos, com elevadíssimas estatísticas que configuram o feminicídio em nossas sociedades, na contemporaneidade, em pleno séc.XXI, no interior de um modelo de capitalismo que se diz ‘avançado’.  

É bem verdade que a invisibilização da produção das mulheres não é algo que se possa datar e circunscrever ao projeto eurocentrado capitalista colonial, urbano-industrial da modernidade. Porém, o que muitas teóricas feministas têm demonstrado em seus estudos é que a intensidade da exclusão política, econômica e epistêmica da mulher das sociedades, bem como a padronização unívoca, hierárquica e opressora da relação binária de gênero entre homens e mulheres são elementos identificados em práticas que remontam ao longo período de acumulação primitiva de capital, coadunando-se com o projeto científico-tecnológico-filosófico-colonial. É nessa época que se registra a caça às ‘bruxas’ – perseguição sem antecedentes das mulheres que viviam livres, sem famílias tradicionais nucleares, em especial aquelas que possuíam terras, fato social que ocorreu principalmente no interior dos limites geográficos da Europa. Isso aconteceu na mesma época dos enclousers que, com sua política de cercamentos, pôs fim às terras comunais e expulsou muitos camponeses livres do campo, estabelecendo definitivamente o modelo de família nuclear burguesa[2].

É nessa esteira que pesquisadoras dos estudos da mulher, de diferentes áreas, como também da filosofia, vão defender a relação intrínseca entre gênero e colonialidade, interseccionando os eixos de opressão de gênero, raça, classe e sexualidade. Objetivam, dessa forma, instrumentar-se para melhor compreender e interpretar o modelo de opressões de gênero que vivenciamos nos últimos séculos, no qual estamos inseridas desde o advento do projeto colonial europeu moderno, cuja faceta atual majoritária se mostra no modo do imperialismo capitalista da globalização.

Por um lado a consideração de gênero como imposição colonial – a colonialidade de gênero em sentido complexo (...). Por outro lado, (...) chegar a entender a profundidade e o alcance da imposição colonial. Mas não podemos fazer um sem o outro. E, no entanto, é importante entender até que ponto a imposição deste sistema de gênero foi tanto constitutiva da colonialidade do poder como a colonialidade do poder foi constitutiva deste sistema de gênero. A relação entre eles segue uma lógica de constituição mútua. (...) Penso que o que é novo aqui é minha abordagem da lógica da interseccionalidade e meu entendimento da mutualidade na construção da colonialidade do poder e do sistema de gênero colonial/moderno. Creio que ambos os modelos epistêmicos são necessários, mas só a lógica da construção mútua é a que dá lugar para a inseparabilidade da raça e do gênero. (LUGONES, María, 2008, p.93).

Assim como evidencia a citação acima destacada, a filósofa argentina María Lugones nos desafia a compreender as relações entre colonialidade e gênero em um sentido mais complexo, propondo a lógica da construção mútua para entendermos a inseparabilidade das opressões de raça e gênero no projeto colonial e nas práticas de colonialidade enraizadas, com pequenas variações, até a atualidade.

Esta filósofa trabalha, no texto Colonialidad y género, com narrativas sobre diversos grupos de povos originários das Américas e com pesquisas da cultura africana Yorubá (fazendo menção aos estudos, respectivamente, de Paula Gunn Allen e Oyéronké Oyewùmi), a fim de provar a diversidade de relações de gênero que havia nesta pluralidade de matrizes culturais. Desse modo, corrobora com Gayatri, Spivak, quando ela  afirma que “deve-se, não obstante, insistir que o sujeito subalterno colonizado é irremediavelmente heterogêneo.” (2014, p.73). María Lugones salienta que a maioria desses grupos culturais adotava relações de gênero horizontais, não hierarquizadas, diferenciadas em suas atividades, sim, mas não pré-determinadas biologicamente (poderiam até mesmo ser escolhidas através de desejos, sensações, sonhos). Tampouco tinham suas atividades desqualificadas ao serem identificadas com um dos gêneros – evidenciando a não-hierarquização. Assim, cozinhar, limpar a casa ou o conjunto dos trabalhos domésticos era, em geral, atribuição das mulheres nestas culturas. A diferença é que tais atividades não eram consideradas desprezíveis a ponto de sequer terem a sua mais-valia remunerada, em um mundo capitalista cuja estrutura se baseia – ainda que só para alguns – na remuneração, via salário, pela venda da força de trabalho, configurando não mais trabalho escravo ou servil, porém assalariado.  María Lugones relata, ainda, que muitos desses grupos culturais trabalhavam com a ideia de ‘terceiro gênero’, que significaria não mais um gênero definido, mas sim gênero indefinido, isto é, diferentes possibilidades de configurações de gênero baseadas na indefinição. Desse modo, pareciam contar com a abertura para múltiplas possibilidades de vivenciar a identificação de gênero, impensadas até então. Toda essa gama de possibilidades alternativas de conceber e se inserir no mundo, de outras formas de existência, se romperam com o projeto hegemônico e excludente da modernidade. Assim podemos dimensionar

(...) o alcance das mudanças na estrutura social que foram impostas pelos processos constitutivos do capitalismo   eurocentrado/colonial/moderno. Essas transformações introduziram, através de processos heterogêneos, descontínuos, lentos, totalmente permeados pela colonialidade do poder, que violentamente inferiorizaram as mulheres colonizadas. Entender o lugar do gênero nas sociedades pré-colombianas nos muda o eixo de compreensão da importância e da magnitude do gênero na desintegração das relações comuns e igualitárias, do pensamento ritual, da autoridade e de um processo coletivo de tomada de decisões e da economia. (LUGONES, María, 2008, p.92-93)

No percurso que faz, a filósofa argentina nos mostra o quanto as práticas coloniais instauraram as categorias binárias estratificadas e hierarquizadas de gênero masculino e feminino – que nem faziam sentido serem adotadas anteriormente – em muito como estratégia de dominação colonial. Assim, via fragmentação social, cindiam os grupos comunitários, enfraqueciam a força cosmopolítica das mulheres e suas importantes vozes nos conselhos, assim como das deusas a elas identificadas (da caça, da fertilidade, da terra, da abundância), o que possibilitou a aliança com os homens e o genocídio real e/ou epistêmico desses povos, numa clássica prática de guerra baseada no ‘fragmentar para dominar’.


ALINHAVANDO CONSIDERAÇÕES FINAIS: VOZ E VISIBILIDADE DAS FILÓSOFAS LATINO-AMERICANAS EM PRÁTICAS DECOLONIAIS NO ENSINO DE FILOSOFIA

Este texto, em seu viés teórico-crítico, objetivou denunciar as práticas epistemicidas e em especial a misoginia epistêmica da tradição filosófica patriarcal, heteronormativa, branca, europeia. Em um viés mais prático, em parceria com algumas filósofas e adotando a perspectiva dos estudos decoloniais, esse escrito visa o empoderamento das mulheres que atuam tanto na filosofia e seu ensino, como também na filosofia da educação, a partir da proposição de ações práticas de descolonização simbólica no campo educativo. Assim, adotamos como perspectiva para as aulas de filosofia, seja na educação básica ou no ensino superior, a valorização de práticas de educação descolonizadoras que atuam no sentido da desconstrução do cânone filosófico excludente, dando voz e visibilidade, no interior do recorte de gênero, às mulheres filósofas, em sua diversidade cultural, histórica e geográfica. Nesse sentido, incluímos também – naquilo que se convencionou considerar tradição filosófica – as filosofias orientais, indígenas, africanas, entre outras tradições historicamente marginalizadas. Desse modo, intenta-se retirar da esfera da colonialidade tais produções de saberes historicamente oprimidas e desqualificadas, recuperando e legitimando através de pesquisas, publicações, organização de eventos a existência desses saberes, nomeando-os e ratificando-os como filosóficos.

(...) se sustenta a necessária inclusão no polífono filosófico das variáveis do poder e a dominação que nos países da América, Ásia e África se determinaram como ‘condição colonial e pós-colonial’ desde um logos étnico - y androcêntrico, como tem ocorrido com Elas - devem impregnar hoje a filosofia e as ciências sociais, incluída toda a teoria sobre a cidadania, para evitar que as teorias sejam novamente vítimas da 'violência epistemológica’ exercida por um saber pretensamente hegemônico que trata de impor seu paradigma. (BONILLA, Alcira, 2010, p.19).

Assim, faz-se necessário e urgente o tensionamento em recortes curriculares e programas de curso, planejamentos de aulas, publicações e suas temáticas, pela inclusão definitiva da produção das filósofas, ao longo da história da filosofia, bem como da difusão e ensino das filosofias consideradas pelo crivo colonial como ‘marginais’ (leia-se, de matriz africana, oriental, dos povos originários – relegados a serem ‘outros’ saberes, ‘outras’ epistemologias). Essa é uma atitude de resistência aos processos de colonialidade e seus silenciamentos. Mas é também uma ação no sentido do fortalecimento de reexistências, de contribuições para uma educação libertária que possa inserir na existência e no simbólico das subjetividades presentes nas novas gerações, olhares e interpretações de mundo plurais, baseadas na diversidade, no diálogo intercultural, para além das bordas da moldura da colonialidade. “(...) as alternativas à epistemologia dominante partem, em geral, do princípio [de] que o mundo é epistemologicamente diverso e que essa diversidade, longe de ser algo negativo, representa um enorme enriquecimento das capacidades humanas” (SANTOS, B. e MENESES, Maria Paula, 2010, p.18).

Ressalta-se aqui a importância do compartilhamento de saberes baseados no diálogo e na troca horizontal, no modo da interculturalidade, de conhecimentos, cuja potência está reconhecida na própria diversidade sobre a qual se baseiam e na busca por uma universalidade aberta, horizontal.

Este modelo de filosofia intercultural concebe a filosofia segundo a metáfora da ‘tradução’, talvez a operação humana que maiores trocas tenha gerado. Com esta metáfora grávida se representa a filosofia, mais que como diálogo às vezes dissimétrico entre mestres e discípulo, como polífono de razões possíveis entre discursos situados e contextuais de diversa índole que, pretendendo cada um deles universalidade, aspiram deste modo a uma universalidade aberta, a que a autora deste texto denomina ‘universalidade de horizonte’. Desde esta perspectiva, os critérios de verdade não estão dados a priori pela filosofia europeia no continente primeiro y depois nos países coloniais. (BONILLA, Alcira, 2010, p.19).

É o que nos propõe a filósofa argentina Alcira Bonilla, lançando outra acepção possível para o termo ‘universal’, tão caro à tradição filosófica. Em sua criação conceitual, a filósofa latino-americana o resgata num sentido intercultural que reconhece seu valor enquanto universal, mas um universal situado, alargado, ampliado a ponto de ser capaz de comportar a existência de outros universais, configurando-se, portanto, em um universal aberto ou em uma ‘universalidade de horizonte’, valendo-me das palavras da filósofa supra-citada.

Nessa mesma seara, ousamos propor a reinvenção de práticas de ensino de filosofia que a façam ir além da leitura, explicação e repetição de argumentos dos mesmos textos já canonizados, focando na valorização de discursos e epistemologias alternativas, diversas e potencializadoras. Propondo-nos também a travar diálogos horizontais, plurais e instigantes entre discípulos e mestres, flertando com a arte, criando relações entre ciência, filosofia e arte, sem hierarquizações, implodindo os limites entre os saberes, fora das gavetas e suas binárias dicotomias, ampliando linguagens e interseções.


REFERÊNCIAS: 
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DUSSELL, Enrique. Política da libertação: história mundial e crítica (vol.1). Passo Fundo: IFIBE, 2014.
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SANTOS, Boaventura de Souza e MENESES, Maria Paula (org.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010. 
SPIVAK, Gayatri. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.      


AUTORA
*Joana Tolentino - Docente-pesquisadora do departamento de filosofia do Colégio Pedro II (instituto da rede federal da educação básica técnica e tecnológica). Graduada em filosofia pela UFRJ, mestre e doutora em filosofia pelo PPGF-UFRJ. Defendeu tese de doutorado sobre filosofia e ensino, focada na crítica à colonialidade do cânone filosófico. Coordenadora adjunta do Grupo de Pesquisa Filosofias Decoloniais (CP2-CNPq), é também membro do GT Filosofar e ensinar a filosofar, da ANPOF. É mãe de Teo e Morgana e militante do coletivo feminista de educadoras Escola sem machismo. Tem atuado no campo dos estudos decoloniais, com o compromisso das pesquisas ativistas, na interface entre gênero e colonialidade.



[1] Se houver interesse no aprofundamento deste conceito ver: LUGONES, María. Colonialidad y gênero. Tabula Rasa. Bogotá - Colombia, n.9, julio-diciembre 2008.
[2] A esse respeito ver FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017.

FEIRA DE SANTANA-BA | nº 6 | vol. 1 | Ano 2017

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