A redescoberta do mito, ou a poesia como desvelamento do Ser, na obra de Vicente Ferreira da Silva


Gabriela Fehr
Graduada em Psicologia (CRP: 06/145393). Membro-filiada da Sociedade Brasileira de Platonistas



A poesia é o real absoluto. Isto é o cerne da minha filosofia. Quanto mais poético, mais verdadeiro.
Novalis


É às noites que minha alma se confia.
Rainer Maria Rilke




RESUMO


Na esteira do pensar filosófico provindo do século XX que questiona a essência e insistência da Metafísica enquanto constituição da mentalidade ocidental, está o paulista Vicente Ferreira da Silva, cuja obra, embora o reflexo impactante e luminoso inicial, não demorou a se ocultar do âmbito acadêmico-científico. Mais do que um necessário resgate do pensamento de Vicente intenta este artigo, pois compreende que os temas discutidos e investigados pelo filósofo prosseguem atuais, a começar pela encruzilhada posta a que a humanidade caminhe ainda e junto à inautenticidade niilista, que privilegia a condição negativa da subjetividade e o controle dos fenômenos da Natureza a partir da técnica, ou retorne ao caminhar mítico, à abertura fundante da clareira do Ser. Isso se dá a partir da poesia, ou do nomear poético projetado pelos deuses que funda a verdade de um povo histórico, e lhe destina uma essência, enquanto doação meta-histórica que fundamenta os acontecimentos da história humana. A poesia é, dessa forma, fundação de um mundo, verdade esta que Vicente, até seu precoce falecimento, não deixou de vislumbrar e ter como guia em seu caminhar.

Palavras-chave: Mitologia; Mitopoética; Metafísica; Filosofia da Religião; Poesia.

O homem Vicente: trajetória e fases do pensamento

Ele ama a distância além do inverno,
onde não declinam a luz radiosa e os cantos.
Apolo hiperbóreo, Dora Ferreira da Silva

Uma vocação filosófica. Foram estas as palavras proferidas pelo filósofo espanhol JulíanMarías (1972) para definir Vicente Ferreira da Silva. Nas palavras do próprio: “vocação é mais do que se interessar; é não poder fazer outra coisa, não poder viver de outra maneira; nada mais importa, exceto o objeto da vocação” (p.671). Para Rodrigo Petronio (2010), que gestou a Introdução e síntese do ideário vicentinoda edição em três tomos das Obras Completas de Vicente Ferreira da Silva [dividida em Lógica Simbólica, Dialética das Consciências e Transcendência do Mundo, anteriormente publicada em dois tomos pelo Instituto Brasileiro de Filosofia, 1964-66], foi este um filósofo cujo pensamento, além de estar ancorado na efervescência filosófica do século XX (no digladiar entre idealismo neohegeliano, neopositivismo, neotomismo, pragmatismo e existencialismo), comporta uma unidade significativa, já que atenta à apresentação dos fenômenos. Segundo Petronio, no pensamento ferreirianoa apreciação e compreensão dos temas e problemas partiam da própria vivência do filósofo, e, só então, tomavam forma a partir da escrita. Isso pode ser facilmente compreendido pela trajetória intelectual de Ferreira da Silva, que, nas palavras de Per Johns (2006), foi um desmentido à noção corrente (quiçá, positivista, de uma evolução da humanidade que, do solo mítico, atravessa o metafísico e desemboca no científico, seu desfecho reluzente) de que é próprio da inteligência madura atravessar do mito para a razão, ou se desmitificar. Todavia, antes de adentrar nos meandros do pensamento de Ferreira de Silva, convém contar sua breve, mas rica, biografia.

Nascido ao dia 10 de janeiro de 1916, na cidade de São Paulo, o jovem Ferreira da Silva realizou os estudos iniciais e secundários no Colégio São Bento, e logo depois ingressou no curso de Direito, na Universidade de São Paulo. Dessa época, é sua aproximação com o também filósofo Miguel Reale, que, diferentemente de Ferreira da Silva, prosseguiu na carreira jurídica. Vicente, por sua vez, adentrou o universo da lógica matemática, a partir de Bertrand Russell e Alfred North Whitehead e também do Círculo de Viena, sendo o primeiro a introduzir tal escola de pensamento no país, a partir da publicação de seu primeiro livro, Elementos da Lógica Simbólica, em 1940. Já em 1942, é convidado a ser assistente do lógico Orman Quine, da Universidade de Harvard, com a vinda deste para o Brasil, em 1942. Nessa primeira fase de seu pensamento a ênfase é posta na relação entre linguagem e realidade (relação esta que emerge na terceira fase de pensamento de Vicente, mas renovada noutros rios), em especial no que tange ao valor apodítico dos enunciados, em que a lógica é aí tomada como instrumento de refinamento para uma posterior investigação filosófica, capaz de deduzir formas de validez universal. Posteriormente, o próprio Vicente (2010) vai apontar as limitações da lógica, pensando-a em termos de um ideal matematizante e de redução da realidade em mero cálculo, passível de ser instrumentalizada como manipulação do real, e não como descrição de fenômenos. 

Seu pensamento e busca filosófica, todavia, sofrem uma reviravolta a partir do contato com a filosofia alemã, em particular autores da Fenomenologia e do Existencialismo. Vicente toma a base de Edmund Husserl, com seu método fenomenológico de entendimento da consciência como intencionalidade em contato com os fenômenos do real, mas parte da filosofia do reconhecimento de fundo hegeliano, em que a consciência é compreendida negativamente como contraste relacional com a do outro, numa vivência afetiva que é condição e via primária de apreensão que conduz ao encontro entre consciências. É desta época a publicação de seu segundo livro, Ensaios Filosóficos (1948), assim como da criação do Colégio Livre de Estudos Superiores, em São Paulo, que futuramente dará lugar ao Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB). No ano seguinte, funda, junto a Miguel Reale e outros intelectuais, o Instituto Brasileiro de Filosofia e, conjunto a isso, a Revista Brasileira de Filosofia. Já nesta época, ademais, Vicente é reconhecido nacional e internacionalmente, sendo eleito membro da AllgemeineGesellschaftfürPhilosophie in Deutschland, fora o cargo de diretor da Divisão de Difusão Cultural da Reitoria da USP e de organizador dos Seminários de Filosofia do Museu de Arte Moderna (MAM).

Em paralelo à produção filosófica, Vicente segue a atividade jornalística, inicialmente (1945), nos suplementos Letras e Artes e no jornal A Manhã, e, logo após, com artigos na Folha da Manhã, Diário de São Paulo, Jornal do Commercio e Jornal de Letras.

Em 1950, lança seu terceiro livro, Exegese da Ação e, em conjunto, termina um de seus mais importantes (e conhecidos) trabalhos, Dialética das Consciências, em que alcança o ápice de sua fenomenologia da existência, marcando, ademais, sua ruptura com o pensamento de cunho existencial. Ainda sobre Dialética das Consciências, é a tese apresentada para concurso de professor, na Universidade de São Paulo, a que é impedido do exercício do cargo, pelo pretexto de sua formação ter sido em Direito, não Filosofia.

O ano seguinte a este, por sua vez, marca a terceira fase do pensamento de Vicente, próxima à Filosofia do Mito e da Religião (fase esta que será o foco do presente artigo), simbolizandoa passagem (ou reviravolta) para o pensamento anti-humanismo, nas trilhas de Martin Heidegger, que propõe o resgate da humanitas do homem, entendendo-o como ser-no-mundo cuja essência é estar em proximidade ao aberto do Ser (tais definições serão aclaradas ao longo do texto). Também se caracteriza pela aproximação com a filosofia de Friedrich Schelling e de Friedrich Nietzsche, assim como em relação aos místicos e poetas do Romantismo alemão. É dessa época a publicação de seus dois últimos livros Ideias para um novo conceito do homem (1950), e Teologia e anti-humanismo (1953). A produção de artigos de Vicente, porém, prossegue a partir das revistas Diálogo, fundada em conjunto à esposa e poetisa, Dora Ferreira da Silva, cuja obra também é reevocação do mítico e sagrado, e Milton Vargas, assim como nas revistas Convivium, Revista Brasileira de Filosofia e Cavalo Azul, fundada por Dora. Em 1954, já com a guinada filosófica, cujo vértice é a publicação do ensaio Introdução à Filosofia da Mitologia, Vicente colabora com a organização do primeiro Congresso Internacional de Filosofia, em que se reuniram Paci, o já citado JulíanMarías e Leopoldo Zea, e, por fim, Vicente é escolhido para tomar parte no Conselho Científico da coleção Rowohlts Deutsche Enzyklopaedie, junto a mitólogos e filósofos da religião como Mircea Eliade e Walter Otto.

Finalmente, em 1963 é vítima de um acidente automobilístico, que lhe tolhe a vida. Segundo as palavras de Reale (2009), a trajetória interrompida de Vicente, demasiado prematura, deu-lhe a “impressão de uma árvore derrubada pelo raio, com seus ramos já delineados, prestes a proporcionar a sua densa forma à força desveladora das raízes” (p.16). Uma perda grandiosa, então. Mas, por quê? Qual teria sido a importância do pensamento de Vicente? E hoje, o brilho de sua obra ainda nos é necessário?

Ocultamento do Ser, ofuscamento da pensar:

A Natureza [Physis] ama esconder-se [φύσιςκρύπτεσθαι φιλει].
Fragmento 123, Heráclito

Uma rápida busca de artigos e produções acadêmico-científicas a respeito de Vicente Ferreira da Silva resvala em resultados praticamente pífios. O grosso de publicações relacionadas ou inspiradas na filosofia vicentina deu-se entre as décadas de 1950 a 1970, com já poucos artigos a partir da década seguinte (de Constança Marcondes César, reconhecida como a maior especialista do pensamento de Vicente no país, Adolpho Crippa, Gilberto de Mello Kujawski e Ricardo Vélez-Rodriguez).[2] Ou seja, durante o período de vida e produção filosófica do autor, e alguns anos após sua morte. Depois disso, esquecimento e ocaso. A que se deve tal coisa? Petronio (2010), ao discorrer a respeito da unidade de pensamento da obra de Vicente, diz que ela foge da formulação de conceitos e trama de definições, se afastando, ademais, da mera exposição de ideias ou da sucessão de filosofias que forram uma história do filosofar ocidental. Isso teve consequências, inclusive, na posição tomada por Vicente no cenário filosófico e intelectual da capital paulista, dividido em três grupos, ainda segundo Petronio (2003): de um lado, o encabeçado por Miguel Reale, a partir do Instituto Brasileiro de Filosofia, cujo objetivo era a divulgação das principais correntes filosóficas europeias, assim possibilitando a adentrada do Brasil no cenário internacional. Do outro, o grupo concentrado na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Rua Maria Antonia, que antecedeu a Universidade de São Paulo, contando com o nome de Cruz Costa como um dos fundadores, assim como a presença de José Arthur Gianotti e Bento Prado Jr. Os estudos ali realizados, por sua vez, seguiam a vertente ortodoxa do marxismo e do existencialismo francês. Por fim, mas não menos importante e contando com um impacto acadêmico (e institucional) circunscrito, o grupo formado por Vicente e Dora Ferreira da Silva, tendo como localização o lar do casal, âmbito da autonomia e liberdade interrogadora que tanto prezava o filósofo. Era um espaço aberto a todos que tivessem algum interesse no debate de ideias, contando com a presença não apenas de intelectuais, como Vilém Flusser (um crítico cuja obra chegou a ser uma contrapartida a de Vicente, mas manifestada como um diálogo aos moldes da disputatio medieval) e Adolpho Crippa, assim como artistas, como Cláudio Willer, Roberto Piva e Wesley Duke Lee.

Não apenas essa preferência pela autonomia intelectual pode explicar o destino de mais de meio século de ocultamento da obra de Vicente, mas, para Per Johns (2006), seu aparente apartidarismo (considerado, assim como Nietzsche, um anarquista aristocrático), presente, incluso, na crítica (incompleta) à retórica das posições político-partidárias do binômio esquerda-direita, em Os intelectuais de direita e de esquerda (1963). Ainda segundo Johns (idem), tal dicotomia, em terreno acadêmico, tende a reduzir o debate e diálogo filosóficos a um “antagonismo verboso que, no fundo, confluía para um desiderato comum, fruto de uma velha maneira de pensar” (p.681). A “rebeldia universitária” de Vicente, de não tomar parte na querela ideológica entre ser reacionário ou progressista, teve como resultante a negativa de exercer o cargo de professor na Universidade de São Paulo, o que, no dizer de Johns, foi um conluio dos dois lados do binômio, uns em defesa de princípios utilitários (direita), outros para preservar a pureza doutrina atravessada de maniqueísmo (esquerda).

Mais do que isso, talvez, tenha pesado a reviravolta do pensamento de Vicente, que, partindo do aceitável formalismo da Lógica Matemática, atravessa a também (ainda) aceitável Fenomenologia existencial, e desemboca no terreno pantanoso e (considerado) irracional do Mito; incluso, transfilosófico. O Mito, dessa forma, se opõe ao Logos, ao racional, fazendo alusão ao infantil, imaturo e ingênuo, próximo aos povos primitivos, aos contos de fadas e à Natureza, “contrafigura finita do movimento infinito do Espírito em busca de sua autorrealização” (PETRONIO, 2010, p.56). O racional é emblema cultural e denota o que é próprio da civilização, em contraposição ao caos da animalidade, além de representar o que é propriamente humano no âmbito da liberdade, da criação e do trabalho, este enquanto controle e manipulação da Natureza. A razão, ademais, se relaciona com o Logos, o cognoscível que comporta o discurso compreensível e razoável da realidade, de coleta sucessiva e evolutiva dos dados e conhecimentos, enquanto o Mito é o território do excêntrico, do repetível e cíclico que sempre se renova, e que, em termos científicos, nada agrega, por se pautar na identidade do Mesmo. O projeto civilizacional representa um contínuo e afirmativo afastamento do âmbito sagrado pela escolha dos valores profanos, em que a mediação com as coisas do mundo se dá apenas no âmbito da técnica. O resgate proposto por Ferreira da Silva, de re-ligar a ruptura entre o homem e a realidade vivenciável, é o que Reale (2009) considera ser uma imperiosa necessidade, capaz de “fundir a realidade e a palavra, na fusão cálida e irradiante dos mitos mais do que na estática cristalização dos conceitos” (p.18).

Neste sentido, Vicente repudiou o reducionismo que prescreve a realidade como circunstância resultante do encontro de um sujeito em relação a um objeto, o que, além de transformar qualquer troca entre duas consciências como uma modalidade de apreensão racional ou gnosiológica (de conhecimento), secundariza a tensão que se manifesta já no contato entre os seres, que se funda e é instituído pelo Ser, o plano de fundo da realidade que ultrapassa e abarca as consciências viventes. Já em seu período de Fenomenologia existencial, Vicente dizia que é só a partir do reconhecimento da alteridade do outro que o encontro entre consciências pode ocorrer (em termos de amor ou de ódio), algo que se funda na liberdade de permitir que o outro seja o que lhe é possível e cabível.

A retomada mítica, ao se aproximar do pensamento de Heidegger da segunda fase (Vicente cita as obras A Essência da Verdade [1930], Carta sobre o Humanismo [1973] e Caminhos de Floresta [1950]), compreende a Abertura do Ser como possibilidade instituidora e fundante do mundo, se afastando da índole racional (e metafísica) de categorizar e escrutinar os homens e as coisas. Segundo Johns (2006), o empreendimento filosófico de Vicente tinha como mote a restituição do assunto e do sabor em relação à vida, dado o esquecimento habitual presente na rotina massificante do homem moderno, provindo de uma visão de centralidade da existência humana, que se aparta do organismo vivente e dotado de alma que é o solo da Terra. Tal restituição é, além do mais, recordação da comunhão dos entes com a plenitude do Mundo, da retomada de compreensão do mistério que nos circunda. O Mundo, morada dos homens e animais, é horizonte de sentido desvelado a partir do Mito, fundando os acontecimentos históricos enquanto doação divina, “um pôr-se em face de e em Deus” (PETRONIO, 2010, p.42), originando a protopoesia divina das mitologias.

Ao discorrer a respeito da vocação filosófica de Vicente, Marías (1972) a denomina, ademais de ‘segunda navegação’, de um resgate da emergência criadora da realidade, um abrir de olhos em relação ao fundamento religioso e sagrado que é a dádiva do Ser aos mortais, de alegria pela participação no drama cósmico e divino. Daí ser teofórico(ϑεοϕόρος, de theos= Deus, ϑεο e fórico=carregar/portar, -ϕόρος, portanto, é o que carrega e/ou faz referência ao Divino), afirma Petronio (2010), em que o homem é pensado “sempre como uma ultrapassagem e como um intermediário, como manifestação adventícia de potências meta-humanas que, ao retirá-los de si, o inauguram em sua humanidade” (p.67). 

Se, segundo Heidegger, o pensar filosófico do Ocidental, na forma da Metafísica, se baseia em um esquecimento da diferenciação entre ente e Ser, a ironia reside no fato de a obra de Vicente Ferreira da Silva, que brotou do seio do formalismo matemático e abstrato para alcançar as regiões numinosas do Mito, também decaiu no olvidamento. Se a empreitada do filósofo da Floresta Negra foi a do reconhecimento do Ser como Abertura fundante e doadora de sentido ao ente, também é válido o resgate, acima de tudo, do pensamento ferreiriano, como possibilidade de compreensão da claridade provinda da clareira do Ser, nosso fundamento e proveniência. 

Transcendência do Mundo:

O verbo?
Embebê-lo de denso                          
                       vinho.
A vida?
Dissolvê-la no intenso                        
                        júbilo.
Odes, Orides Fontela

Na alvorada, foi o mito. No iniciar diurno, resplandecia o sol de Apolo, sol nascente maior e acima do homem, em que este não se reconhecia como tal. A delicadeza da ordenação harmônica, a glória dos heróis, a presença do Olimpo, o encanto da natureza em proximidade e indistinção com o homem, pois seu modelo e morada, e o doce alento aos feitos trágicos e heroicos, tal como os dos Deuses das narrações homéricas. Era “o apanágio de uma classe aristocrática e guerreira que colimava em sua existência a realização de ‘virtudes’ aparatosas e monumentais” (FERREIRA DA SILVA, 2010, p.488), o mundo enquanto Intuição. Ao entardecer, pois escancarada a existência distante e excêntrica da divindade quanto à inquietude passional do homem, apareceu a divindade da alegria embriagada e ensandecida, o jovem semideus e semibode, Dionísio, “o mistério da união de Deus com a consciência humana” (pp.488-9) anunciando o crepúsculo dos deuses, a encarnação do Deus-Homem, o nascimento da subjetividade e a divinização do humano, pelo sacrifício da recordação do Divino.[3] A era deste mundo está suspensa no abismo, por carecer do fundamento divino: “não só se foram os deuses e Deus, como também se apagou na história do mundo o fulgor da divindade” (HEIDEGGER, 1946, p.309).

O mito era/foi/é a conexão visível e luminosa entre os deuses e os homens. O mito é o que estrutura e confirma a existência histórico-humana, sendo aquele que “condiciona e constitui todos os laços possíveis e todos os comportamentos que ligam os homens entre si” (FERREIRA DA SILVA, 2010, p.239), sendo, por si, doação de sentido. Um ato de amor emanado do Divino. Assim é definida a experiência do divino nos povos aurorais, aqueles cuja realidade foi e/ou ainda é fundada no mítico:


Nessa fase da História não se recortou ainda uma Natureza, como sistema legal de fatos físicos, diante de uma esfera sobrenatural e imaterial, refúgio dos valores sagrados. (...) Não existindo ainda, portanto, uma experiência da natureza que, como um anteparo, possa proteger ou resguardar a consciência da gravitação candente da experiência religiosa, todas as manifestações da vida transmitem a exuberância da lei mítica. A presença obsecante do divino transforma toda ação ou modo de ser em rito e teofania e, em geral, todo comportamento, em testemunho de uma realidade monovalente [constituída de um só argumento] e omnímoda [abrangente, ilimitada] (2010, p.87).



A partir do mito, a existência das coisas e do mundo se apresenta como ato dramático, em que é a vida “uma eclosão de cenas, uma abertura de mundos fantásticos e não qualquer produtividade intramundana, que reduza a vida a um mero episódio da série natural (idem, p.90). A vida, em si, é transbordamento em que os objetos intramundanos são compreendidos como partícipes da essência vital, do “testemunho de uma epocalidade do divino, (...) uma epifania, um debruçar-se sobre a realidade dos deuses sem rosto da floresta” (p.94). Uma relação de intimidade, constituindo uma “abertura de uma esfera de orientações e de atuações que trazem em si mesmas a presença dos poderes numinosos” (ibidem), em que cada universo manifestado é ele próprio uma Offenbarung, uma revelação do ser e de um aspecto do mundo. Ferreira da Silva cita o filósofo da religião, Walter Otto (1956, pp.21-2), que sobre o fenômeno religioso diz: “em todo mito original revela-se um Deus com seu mundo vivo. Pois Deus, como quer que se distinga de seus pares ou seja denominado, nunca é uma potência singular, mas sempre O inteiro ser do mundo numa revelação que lhe é própria” (p.170).

O mito constitui e fundamenta o edifício cultural, no que é ancorado pelo culto enquanto manifestação e representação mítica: “o culto é desfechado pela proximidade e incidência do Divino e constitui uma representação de cenas e incidentes sobre-humanos, (...) é a superação do tempo profano e a instauração de um tempo de criação ou tempo das origens” (2010, p.143). Sem tal base simbólica e mítica que emana do modelo arquetípico e divino, de um desvelamento [Entbergung] mítico-religioso, não há cultura ou povo, muito menos História. A História, portanto, manifesta o condicionamento oferecido pela presença permanente do divino, já que não há criação, descobrimento ou invenção que provenha do homem, pois o solo para a constituição histórico-cultural humana é o fenômeno religioso: “as coisas desceram do céu para a terra, nasceram de uma Fascinatio [fascinação] divina e de maneira alguma foram geradas pela mente humana” (p.145). As coisas existem enquanto dádiva que compõe “o universo sagrado do homem que vive in der Nähe, na proximidade do divino, que, na “cooperação primordial de onde emergem as coisas”, recebe e aceita o doado como possibilidade, cabendo ao homem ser receptor e “simples destinatário” (pp.149-150) no viver próximo ao Absoluto.

Ferreira da Silva, que muito encontrou e se apoiou no pensamento de Heidegger (mas sem, necessariamente, se considerar um discípulo do filósofo alemão)[4], toma como pressuposto, igualmente, o co-pertencimento, ou comum-pertença, entre Fundamento e Ser. Ou, melhor dizendo, o que Heidegger denomina de Ontologia fundamental, a compreensão da ek-istência/ex-sistência como um estar exposto à verdade do Ser, e não à categorização do ente, ou apenas do humano.[5] O homem, afirma Heidegger, é o ente[6] cuja morada é a proximidade com o Ser, proximidade que é também (a maior) distância, no que é próprio do desvelar-velar do Fundamento. No ensaio O princípio do fundamento (1971), diz o filósofo que o Ser, por ser o mesmo que o fundamento (mas não lhe sendo igual), permanece sem fundamentação; tal comum-pertença reluz o não-fundamento do Ser, o Abismo (Ab-grund)[7], recusa ou ausência que fundamenta e possibilita que o ente seja ente. A respeito da essência do Ser, é o que se demora, perdura e se perpetua, e que, ao negar toda fundamentação que lhe seja externa e/ou causal, como encontrado nas ontologias ocidentais[8], é simplicidade pura, pelo qual tudo depende e se encontra. Cito-o:


Ser e fundamento soam, agora, o uníssono. Nisso, se dá que ser e fundamento se co-pertencem juntamente e ‘têm seu pertencimento mútuo dentro do Uno’. O princípio do fundamento, que de aqui em diante soa de modo diferente, agora diz: ao ser lhe pertence o fundamento. O princípio do fundamento já não fala como princípio fundamental supremo de todo representar referido ao ente, já não diz que toda coisa tem um fundamento. O princípio do fundamento fala agora como uma palavra acerca do ser. A palavra é a uma resposta à pergunta: que significa, pois, ser? Resposta: ser significa fundamento. Contudo, o princípio do fundamento, enquanto palavra acerca do ser, já não pode querer dizer: ser tem um fundamento. Se compreendêssemos a palavra acerca do ser nesse sentido, então representaríamos o ser como um ente. Apenas ele tem um fundamento e, ademais, necessariamente. Ele [ente] é apenas enquanto fundado (p.11).


A ek-istência/ex-sistência, por sua vez, não se confunde, segundo Heidegger (1973), com a noção de existentia (existência, ou, do latim actualitas, potencialidade que se manifesta em ato), mas faz referência ao estar exposto à verdade do ser, enquanto existentia está “em oposição com a pura possibilidade da ideia. Ex-sistência nomeia a determinação daquilo que o homem é no destino da verdade” (p.28), cujo iniciar desvelante se dá a partir do momento em que o primeiro filósofo pergunta o que o ente é (1930).Já para Ferreira da Silva (2010), a ek-istência/ex-sistência é o projetar-se fora de si do ente para estar na proximidade do Ser, projeto este que não se relaciona nem provém com e da subjetividade humana, mas é a moradia do ente.


Assim como o Ente não tem qualquer independência em relação às suas condições constitutivas transcendentais, do mesmo modo o homem não possui qualquer fundamento próprio além da história de sua constituição transcendental, [...] a prévia investidura e articulação de significados nas quais já nos encontramos (pp.236-7).


O Ser é Abertura, ou o Aberto, clareira iluminante e iluminadora que desvela o manancial de possibilidades de uma dada época histórica, enquanto vela possíveis que ainda não estão para acontecer, ou já foram. O Ser, identificado com aquele Aberto fundante e fundador, é o que possibilita a História, a partir do âmbito que Ferreira da Silva chama de Meta-história, a transcendência que contém e da qual provém todos os acontecimentos. Diga-se de passagem, História se distancia da noção antropocêntrica e subjetiva, como chama Ferreira da Silva, de ser ela linear, evolutiva e progressiva, entendimento este que caracteriza, particularmente, a Modernidade, ou o Ocidente a partir da Reforma Protestante e da afirmação do Homem em detrimento de Deus, do Logos em detrimento do Mito, ou da “precedência da Abertura do Ser sobre a esfera total do inteligível, do cognoscível sobre o conhecer. O Logos nos ata ao já-oferecido, o Mito nos transporta para o domínio desvelante primordial” (FERREIRA DA SILVA, 2010, p.188). Comporta, igualmente, a desdivinização do mundo que estava já contida na encarnação do Homem-Deus, o Cristo, aquele que se esvaziou de sua condição divina para dar abertura à subjetividade da alma individual, a negatividade da condição humana apartada da iluminação desvelante do Ser, constituindo a doação que nos coube.[9]

Segundo Ferreira da Silva (2010), a História (ou a historicidade, ou o próprio dos acontecimentos humanos) não pode ser reduzida a esquemas ou abstrações, já que elas implicam na limitação da realidade, ou numa concepção imagética, a partir tão somente de imagens: “imagem é a representação apriorística que desde sempre já concebeu, definiu e reduziu toda novidade a um já sabido e concebido” (DRUCKER, 2009, p.185). A partir, então, de uma perspectiva, ou na defesa de uma dada verdade, o porta-voz de uma doutrina afirma conter ali todas as explicações e respostas quanto aos questionamentos e dúvidas, e daí suavizar e inviabilizar a experiência da angústia, ou o contato com o Nada.[10] Sendo, como dito anteriormente, o sentido da ek-istência não uma construção ou hipótese humanas (uma verdade hominista, dirá Ferreira da Silva), o que se relaciona com a existência concebida filosoficamente e em termos de senso comum, mas uma dádiva e doação do Fundamento, que é o Ser,cabe ao costumeiro e habitual do homem a modalidade da insistência errante, já que, na segurança das representações imagéticas repousa e insiste a humanidade: na habitação do quantificável e mensurável, na particularização do ente e tão somente dele, “numa completa obnubilação do desvendamento fundador, (...) [em que] a abertura proto-histórica do oferecer se oculta em favor das oportunidades e possibilidades particulares de um dado âmbito histórico-cultural” (FERREIRA DA SILVA, 2010, p.243).

O errar constitui, ademais, a particularidade de Filosofia Ocidental, ou do pensar rigoroso da Metafísica, pautado na “exatidão artificial, isto é, técnico-teórica dos conceitos” (HEIDEGGER, 1973, p.11), que é o Esquecimento do Ser[Seinsvergessenheit] e de sua diferenciação quanto ao ente. Essa diferenciação simboliza um pensar meditativo,alheio às formulações representativas (e metafísicas), repousando ele “no fato de o dizer permanecer, de modo puro, no elemento do ser, deixando imperar o simples das múltiplas dimensões” (ibidem).[11] A Metafísica, todavia, é ela uma dádiva ofertada pelo Ser que fundamenta o Ocidente e que marca e caracteriza a época histórica daí constituída e, menos do que um esforço ou tentativa [errantes] do humano de compreender a realidade, no insistir da categorização e do controle da linguagem entendida como mero instrumento de representação dos fenômenos, faz referência ao crepúsculo do transcendente e meta-humano, da noite dos Deuses [Gottesnacht] aludida pelo poeta alemão Friedrich Hölderlin na obra Pão e Vinho, noite esta que, segundo o poeta, antecede a aurora de novos deuses, ainda por nascer e ter vigência, o (res)surgir do sagrado:


Mas amigo! Viemos demasiado tarde.
Na verdade vivem os deuses
mas sobre nossa cabeça, acima em outro mundo
trabalham eternamente e parecem preocupar-se pouco
se vivemos. Tanto se cuidam os celestes de não ferir-nos.
(...)
A vida é um sonho dos deuses.
Mas o erro nos ajuda como um adormecimento.
E nos fazem fortes a necessidade e a noite.
(...)
Me parece às vezes melhor dormir, que estar sem companheiro.
A esperar assim, o que fazer ou dizer eu não sei.
E para que poetas em tempos de carência?
Mas, são, dizes tu, como os sacerdotes sagrados do Deus do
vinho,
que erravam de terra em terra, na noite sagrada.



Mais do que isso: é a partir da compreensão de sua condição de errância, que se diferencia da segurança insistente do já-dado, no encobertamento dissimulado do ente em que a aparência torna-se dominante, e vigora a não-essência da verdade (em co-pertencimento com o essenciar da verdade [HEIDEGGER, 1930]), que o homem pode transcender tal estado, como ato de liberdade, “um desembaraçar-se, um permitir que o ente seja, einSein-lassendesSeienden” (FERREIRA DA SILVA, 2010, p.317). Errar (também) manifesta a dádiva do divino, é o que canta, agora, Orides Fontela, em Errância:

Só porque
erro
encontro
o que não se
procura

só porque
erro
invento
o labirinto

a busca
a coisa
a causa da
procura

só porque
erro
acerto: me
construo.

Margem de
erro: margem
de liberdade.

Constituindo esta margem de erro, liberdade, ou “a autodeterminação da consciência” (2010, p.176), diz Ferreira da Silva, é a aceitação amorosa da verdade ofertada pelo Ser, “um poder transcendente a todo o ente, inclusive ao ente que somos, como centro de alternativas (...) [que] nos intimiza com a Fonte prodigalizadora de todos os possíveis e de todo o ente” (p.100).Ademais, liberdade se relaciona com a faculdade imaginativa, o território das opções oferecidos para o aprofundar-se numa escolha, um “ir-além-de-si-mesmo” que se dá na abertura das “virtualidades de conhecimentos e ação, na prospecção imaginativa das ações possíveis que se estampam e delineiam no perfil do percebido“ (pp.176-7). O oferecido pela imaginação é o que alimenta a cultura. É a partir daí que a Imagem se coloca à disposição histórica e se dá o desocultar-se dos arquetípicos divinos, na forma de pensamentos e possibilidades mentais que manifestam o que é ditado pelo Ser, e que o homem se consagra a viver em proximidade receptiva.

Se a vida é o âmbito onírico do Divino, é só a partir do sono que pode o homem adentrar o morar divino, e vislumbrar o Ser. O sono é o campo da miríade de possibilidades, e onde a imaginação criativa encontra seu sustento, e, mais do que isso, o habitar que possibilita a linguagem: a linguagem é desvelamento do Ser, é revelação fundadora, é a presença iluminante que se desoculta, “a soberana do homem, (...) a que fala. O homem fala apenas e somente à medida que co-responde à linguagem, à medida que escuta e pertence ao apelo da linguagem” (HEIDEGGER, 1951, p.167). Afirma Ferreira da Silva (2010): “a palavra, no sentido aqui tomado, não é instrumento, mas promoção e descobertura do Ente. No templo da palavra é que se desenham todos os possíveis comportamentos dos homens entre si” (p.238), já que é próprio do homem habitar na palavra.A Palavra, ao nomear o Ser, o revela e instaura.

EmCarta sobre o Humanismo (1973), diz Heidegger que a linguagem não representa apenas uma coletânea normativa de regras gramaticais e morfológicas (no abandonar-se ao “nosso puro querer e à nossa atividade, como um instrumento de dominação sobre o ente” [p.16]), mas desvelamento divino, sendo, ademais, “casa do ser. Nesta habitação do ser mora o homem. Os pensadores e os poetas são os guardas desta habitação. A guarda que exercem é o ato de consumar a manifestação do ser, na medida em que a levam à linguagem e nela a conservam” (p.08). O poeta (e também o filósofo, já que aquele nomeia o sagrado, e este diz o ser) é o mensageiro dos deuses entre os homens, o intermediário entre os Imortais e os Mortais, entre a Terra e o Céu, perfazendo o Quadrante e/ou Quaternário da existência, o quarteto luminante que reflete cada qual a harmonia do Fundamento. Esses quatros fatores, afirma Ferreira da Silva (2010) são o Quadrar, o acontecer que possibilita que as coisas aconteçam. Constituem o desvelar do Jogo de Reflexos [Spiegel-Spiel] como “forças desocultantes primordiais”, e que “põem a descoberto o Mundo”, que, ao se refletirem mutuamente, colocam e fazem emergir a realidade do Quadrar: “nas coisas se expressa e se traduz o quadrar dos Quatro, [em que] as coisas ‘coisam’ o Mundo, desde que o ocorrer do Mundo se confunde com o ocorrer do quadrar. (...) Só no domínio, na Proximidade dessa ronda, podem ocorrer as coisas” (pp.149-150).[12]

Ao discorrer sobre o poetizar, Heidegger (1944) evoca três afirmativas de Hölderlin, considerado aqui como poeta em tempo de carência, ou aquele que, ao invés de se utilizar do poetizar como ferramenta de expressão subjetiva e/ou coletiva, ou a negatividade hominista, por olvidar do polo positivo do transcendente, coloca em questão o próprio poetizar, ou o sentido da poesia: de criação humana a mensagem ofertada pelo Absoluto.São essas as cinco afirmativas, ou palavras-chave: (1) que o poetizar é a mais inocente das ocupações; (2) que a linguagem é o mais perigoso dos bens, embora seja ela a mostrar o que o homem é; (3) que o homem é diálogo, e a partir daí pode ouvir outro homem; (4) que a linguagem é instaurada pelo poeta e (5) que é no poetizar que o homem habita esta Terra. O poetizar é ocupação cuja morada e domínio é o imaginário, daí seu caráter de inocência, pois aparentada à modéstia do jogo, e não aos empenhos racionais-lógicos (1). O homem é aquele que, diferentemente dos animais e outros entes, que são nomeados, é capaz de nomear; mas, e pergunta Heidegger, que vem a ser o homem? Aquele capaz de manifestar sua existência, que é o pertencimento a Terra, a qual é herdeiro e aprendiz, numa intimidade que é ocasião criativa (poética) e histórica (mundana, de Mundo).

Todavia, o nomear, que é igualmente revelação do Ser, carrega em si o perigo de se ocultar e tornar-se desconhecido aos mortais, vindo a se tornar linguagem inusitada, estranha e incompreendida, ou quiçá esquecida (2). Chegado a isso, a linguagem, de acontecimento que coloca à disposição a mais alta possibilidade do homem, torna-se instrumento de erro e meio para o representar lógico e racional, na esteira da Metafísica. A linguagem é, mais do que estruturação de normas e preceitos, fala que origina o diálogo entre os entes, aquilo que é possibilidade de existência, além de temporalidade fincada na atualidade da permanência do Fundamento. O diálogo se solidifica a partir da atemporalidade do Ser, ofertando o tempo histórico, cuja explicação e fundamentação é a invocação dos deuses que constituem o Fundamento, invocar este que é apelo e convite a uma resposta, que é o nomear (por meio) da linguagem (3). A linguagem, na palavra poética, simboliza[13] a responsabilidade humana em se prometer ao diálogo com o divinoe se destinar ao que lhe é doado historicamente, quando ao permitir o fundar e instaurar do que permanece, a medida que se antepõe à desmedida, e que suporta o ente em sua totalidade, no descobrir-se (ocultante) do Ser. O poeta, ao nomear aos deuses, colocando-os em evidência e claridade, nomeia, ademais, o que é e se conhece do e como ente, sendo livre doação do Ser a que aquele seja, em sua diferenciação e fundamentação de ser (4).  Por fim, o habitar poético do homem, que é nomear que instaura os deuses e a essência das coisas, a começar pelo próprio ente do homem, é estar e permanecer na presença do Divino.

Dessa maneira, a poesia não é adorno ou entretenimento, e muito menos manifestação cultural ou expressão subjetiva, mas o que torna possível o acontecer da linguagem de um povo. A essência da linguagem se identifica com a essência da poesia. Para Ferreira da Silva (2010), todo poetizar é proto-poesia, já que manifesta o Ser e dispõe ao ente sua particular realidade histórico-cultural. A palavra encontrada e anunciada pelo poeta instaura e inaugura uma Abertura (Offenheit) que manifesta o manifestável, o Ser, que, por sua vez, é fundado pela palavra. Embora a aparência de irrealidade e sonho, contrária ao habitual e rotineiro, é o nomear poético que funda a realidade: “buscas a vida, buscas, e eis te brota e brilha/ Um fogo divino do fundo da terra”, diz Hölderlin em Empédocles, e é na doação receptiva que os homens vislumbram os signos dos deuses, os fundadores da linguagem. E é graças ao poeta que a lei dos signos divinos é transmitida aos povos, especialmente nos atuais tempos de indigência que conformam a essência histórica da Modernidade, em que a vigência mútua na pertença da tríade da essência da dor, da morte e do amor falta e é desconhecida, como vislumbrado na XIX canção da primeira parte de Sonetos a Orfeu, de Rilke: “Não se conhecem as dores, Não se aprendeu o amor, E o que na morte nos afasta não está desvelado”. O poetizar é, além de (nova) instauração, pois recordação, da essência da poesia, determinação de novo tempo histórico: o intermezzo [interlúdio, intervalo] entre os deuses que já foram, e dos que, todavia, ainda não vieram (5). Termina Rilke: “só a canção sobre a terra consagra e celebra”, erigida e inaugurada como poesia.

Diz Ferreira da Silva (2010) que o Mito é a poesia dos Deuses, a presença manifestada do divino que fundamenta e estrutura a humanidade em sua diurnidade. No crepuscular do Divino e do ocultar-se do Ser em tempos de carência, a poesia se apresenta na forma da obra de arte, do fenômeno artístico. Heidegger (1935/36), ao falar do objeto artístico no ensaio A Origem da Obra de Arte (2010),afirma que, embora obrar humano (ou criar poético), é a partir dele que é fundado um Mundo, a partir da Terra. Mundo é o desenrolar dos acontecimentos humanos, pelos quais (co)participa a humanidade enquanto receptora da dádiva desvelada pelos e dos Deuses, também sendo “a abertura do ser. (...) A clareira do ser na qual o homem penetrou a partir da condição de ser projetado de sua essência” (p.64), a abertura do Ser (die OffenheitdesSeins). Terra é o doado pelo Ser, o solo [physis] de possibilidades reveladas (e ocultadas), a clareira que se abre (enquanto se fecha) para iluminar o próprio de um povo ou comunidade, a especificidade de uma época destinada a tornar-se História; mais especificamente,Physis “é o manifestar-se do Ser nos entes que emergem, como des-velamento de si mesmo” (ROCHA, 2004, p.15). O homem, como dito, co-participa da produção do Mundo sendo poeta, o mensageiro dos deuses, iluminação de poiesis.[14]

A linguagem, sendo manifestação e presentificação vívida do divino no habitar dos entes, se manifesta enquanto poetizante a partir da imaginação criativa, o sonhar humano que antevê o sonhar divino, que se deixa penetrar e ser perfurado pelas súplicas e apelos do transcendente. A partir dela, pode o homem, ou, segundo Ferreira da Silva (2010), a consciência humana, que é epifenômeno da consciência divina, dizer aquele ‘Sim’ à dádiva doada, pois é a partir do arrebatamento que o divino se sintoniza com o humano, demasiado humano, aquelachama (sempre) viva provinda do que é meta-humano e carrega e dota de sentido transcendental (Sinngebung) a ek-istência humana (FERREIRA DA SILVA, 2010). Na figura do poeta, tal arrebatamento se aproxima do que Platão, em seu diálogo de juventude Íon, afirma sobre o poetizar: é uma possessão divina, em que apenas ao ser habitado pelo Deus o homem é capaz de criar, em leveza alada e santa. “A fantasia poética é o ditado de uma profunda necessidade, de uma liberdade humana, que a cinge e ao mesmo tempo a liberta” (FERREIRA DA SILVA, 2010, p.505). É o ser tocado e falar a partir do “absolutamente outro, à alteridade” (ibidem), predizendo o divino, como acontecimento poetizado em Prêmio na Academia, de Dora Ferreira da Silva:


Que dizes, Poeta?
Predisseram deuses
esta jornada única?
As pedras que pisamos são póstumas estrelas
e nossa invenção, ser deuses?
Ai, que fomos inventados, as pedras
nos pisaram. Futuras estrelas vimos
e predissemos deuses.


 O desvelar iluminante do Fundamento possibilita um (novo) Mundo, em que outra Verdade se desoculta; no ensaio A Essência da Verdade [1930], afirma Heidegger que, longe de ser mera concordância predicativa ou conformidade linguística, nos ditames da noção de linguagem como ferramenta de adequação gramatical, é a Verdade desocultamento, daí sua origem do termo grego Aleteia (ἀλήθεια): o estar-aí-presente do Aberto se presentifica na revelação do que vai especificar e caracterizar a História de uma população humana, enquanto olvida (Léthê, λήθη, esquecimento) do que já foi e do que ainda virá. Na tradição platônica, em particular nos diálogos Fedro e República, Platão (1988a, 1988b) utiliza da mensagem mítica para evocar aquele olvidamento do divino: no Fedro, é dito que é próprio do homem a nostalgia pelas asas perdidas quando vem a decair na matéria e na esfera dos fenômenos sensíveis, nostalgia que anseia o retornoà morada dos deuses. As asas simbolizam a imortalidade da alma distante e esquecida da presença do divino, e que, no mito de Er, da República, é o antevisto na passagem da antiga para a nova vida, em que as reminiscências do estar com o divino são, mais uma vez, perdidas quando do beber das águas do Esquecimento, e se recomeça a vida terrestre. Na filosofia platônica, por sua vez, a possibilidade de reaproximação e retomada das asas imortais se dá a partir do âmbito moral, quando do fazer-se da alma em pureza, ou seja, bondade e beleza, tal como o Divino ansiado, que é Belo e Bom[15].

Mas, afinal, como acontece tal desvelamento da Abertura do Ser, a partir do Mito, da poesia dos deuses que prenuncia a poesia dos mortais? Ferreira da Silva (2010) diz que o Divino possui e apresenta três facetas, complementares e conjuntas: Fascinator, Dispensatore Sugestor, que manifestam o Ser como dinâmico, imprevisível e móvel.[16] Fascinação é o regime ofertado e revelado pelos deuses, se configurando como o pano de fundo que é o mundo, e cujo desvelar implica “uma sintonização emocional com a totalidade do ente descoberto”, descoberta esta que é irrupção emocional e uma afinação junto ao Ser. “A experiência do Ser dar-se-ia no adentrar-se, no intimizar-se com a força trópica do fascinatio”, a partir da manifestação imediata e fulgurante dos Deuses, “enquanto vida produtiva em si e por si” e que se apresenta como experiência estranha e espantosa, que “nos remete ao Poder selvagem e incalculável que comanda a instrução dos mundos. (...) O apelo do sagrado faz-nos romper com as possibilidades dadas, com o ente assegurado, através do vir a nós de novas possibilidades e do sortilégio de uma singular epifania” (p.103). É a partir do regime de Fascinação que são doadas as características e particularidades de uma época histórica, o tema proposto que determina e comanda dado modo de ser, “um tempo passional. O tempo é o tempo de uma dominação” (p.107), em que o variável e mutável são ofertados pelo Imutável. A iluminação, enquanto descoberta, também é ocultamento: “o oculto é negado e suplantado pelo poder ciumento dessa luz, dessa Fascinação que alça um determinado mundo sobre os escombros de uma iluminação anterior. O mundo é a vitória de um princípio com a exclusão de todos os demais” (p.124).

Diz-se, então, que o/um mundo nasce, ou melhor, começa, a partir de uma luta, ou de guerra entre os deuses (teomaquia, do grego Θεομαχία, theomakhia, de theos = deus e makhia = luta ou batalha), pois “quando uma forma do divino toma posse da consciência do homem, vencendo e superando as representações religiosas anteriores, inicia-se uma nova etapa histórica, com uma nova medida hierarquizadora das coisas” (FERREIRA DA SILVA, 2010, p.223). A cada começo, em que um povo se identifica “com os grandes modelos e exemplos de um dado círculo de possibilidades históricas”, torna-se patente o colapso da cultura que a precedeu, o fim de um mundo, a agonia que se apresenta na figura do debilitar e extinguir dos valores que guarneciam e mantinham tal cultura. É a “irrupção do nada, triunfando sobre as determinações e formas de existência até então vigentes. (...) O fim de uma cultura dignifica o afastamento das forças divinas da conexão histórico-cultural” (pp.225-6), constituindo o fenômeno niilista. Em tal condição, de ocaso e noite dos deuses, apenas a vontade de superação e transformação, de fundo dionisíaco, pode vislumbrar o transbordamento poético do renascer dos deuses. É a crença que provem do âmbito noturno, que canta Rilke em Tu, Obscuridade de onde emana, escolhida, não por acaso, como epígrafe do artigo:


Tu, Obscuridade de onde emana
meu ser, amo-te mais do que à chama
que o mundo reduz
ao círculo da sua luz:
ali dentro, resplandece;
fora dali, ser nenhum a reconhece.

Mas na Obscuridade tudo se contém:
as formas e as chamas, os animais e eu também,
nela que consorcia
existências e energias —
Pode bem ser que uma força sombria
se mova em minhas cercanias.
É às noites que minha alma se confia.


 A própria doação do divino é série e processo teogônico[projetado pelo divino, do grego: Θεογονία, theos = deus e gonia = nascimento], ciclo de metamorfoses do mesmo Deus, desconhecidos pela consciência humana, constituindo apenas um dos capítulos consecutivos da teoria do divino, portando, dessa maneira, uma vida autóctone que transcende a condição humana (FERREIRA DA SILVA, 2010). O reencontro com o sinalizar divino, por sua vez, se dá a partir do sacrifício e perda do ente, abismado no permanecer da insistência do compreensível e “desempenhável hominídeo”, em que a fascinação é reconquistada, assim como a alteridade do fenômeno religioso, não mais enquanto fantástico em oposição (e negação) ao real, mas na superação do fenômeno humano para a liberdade que confirma a independência divina, e coloca o “próprio homem, como imagem e paixão, entre as alternativas metahistóricas do vir a ser da sequência divina”, libertação igualmente do abismar-se-em-si-mesmo do homem na autoconsciência alienante da antropogênese: “a descoberta da pleonaxia [vontade de tudo possuir] mítica corresponde a um emergir da caverna da subjetividade, em cujas sombras estivemos imersos através dos séculos” (p.111), em que ao fundo se realizava a ocultação do Absoluto. O retorno do fascinante, no mais, pode ser considerado um “pensar intempestivo ou extemporâneo, uma superação do passado em vista de um passado muito mais atual do que qualquer presente” (p.115).

O dispensado do Dispensator é o que transcende a esfera dos conhecimentos e pensamentos humanos a que fomos lançados e jazemos. A oferta posta a partir da faceta do Dispensator é o que origina o apetecer quanto ao conhecimento, e, como se manifesta em termos cognoscíveis, é o que possibilita o conhecimento do Ser. O que é revelado e, portanto, conhecido, no dizer poético é projetado como pensamento e verdade fundante pelo Dispensator, não sendo, portanto, como proposto na história da filosofia ocidental, incognoscível: o Ser se dispõe e se dispensa a conhecer a partir da esfera mítica. É a partir do Mito que, para Ferreira da Silva, o Ser se relaciona com o homem, quando das ofertas e sugestões dispensadas que simbolizam as possibilidades de escolha que caracterizam a Verdade de um povo. O conhecimento, ou o pensamento que é revelado (já que pensado) pelo Ser, é o projetado que instaura e funda a liberdade humana.Enquanto o Ser é o Todo que abarca, detêm e ao qual provêm todos os possíveis, o homem é aquele que porta a livre iniciativa na escolha do caminho a seguir: nas sombras ou na luz referentes ao Mito, na opção das sugestões oferecidas e pensadas pela fascinação do Ser, constituindo, ademais, a pré-figura da Verdade histórico-cultural, pré-figura que representa uma restrição na liberdade humana, a partir das circunstâncias que o rodeiam (já que apenas o Ser é total liberdade). Circunstância, todavia, não é determinismo: é ilimitada a dádiva de possíveis e sugeríveis desocultados pelo Ser, revelando o homem como ente sempre voltado para a busca de seu ser, devir e constituição. O transcendente do Dispensator é a iluminação da liberdade do Ser, que, conhecida e pensada pelo homem, fundamenta a liberdade que lhe compete.

A faceta sugestiva, por sua vez, faz referência ao próprio ente como sugestão projetada pela magia do Ser, “o Sugestor da sugestão do sugerido”, a que o ente é receptor em sua essência ek-stática, vindo a fluir “na imaginação prototípica do Sugestor”: apenas o homem é capaz de realizar as sugestões dispensadas e fascinantes do Ser. Dessa forma, “o sugerido é o que é proposto, isto é, posto como imagem a cumprir, ou como imagem antecipadamente esboçada” (p.101), servindo como modelo a que as coisas do mundo possam existir. O originado provindo de sua origem, a que provém “todas as possibilidades e valores encarnados ou encarnáveis na História” (p.168), a “Fonte fundante [que] manifesta-se como uma origem eterna de toda a propopeia intramundana” (p.134), é pensamento sugestivo e de dominação mítica: “o pensamento pensa o pensável. Mas o pensável é um já franqueado por um ditado (...) do Sugestor, do Ser” (p.132). Sugestão é igualmente sedução, que, em sua especificidade de doação, não é mudança que seja empreendimento humano, mas uma alteração cuja proveniência é divina, a que o ente aparece como dádiva e empréstimo, estando “à mercê da força do Sugestor. Estar à mercê é não ter nada de próprio, é ter uma realidade adventícia e desamparada, como é de fato a realidade do ente” (idem, p.297), realidade esta que é doação provinda do processo mitológico.

Portanto, em relação ao Mito, ou o período resplandecente dos Deuses, não é (nem pode) ser ele uma criação e/ou empreendimento humanos, mas sim uma revelação transcendente e meta-humana, o acontecer de uma metanoia(μετανοεῖν, metanoein: μετά, metá = além, depois; νοῦς, nous = pensamento, intelecto), de uma mudança do pensar e de uma transformação dos entes e das coisas, por meio de uma mensagem que é simbolizada e transmitida pela linguagem poética, ou mítica, daí mito-poética. O Mito, segundo Mircea Eliade (1992a, 1992b), não é apenas um modelo arquetípico a que os homens dão seu assentimento a partir da imitação, mas o que diviniza o ordinário e corriqueiro, revelando o in illo tempore [naquela época] que transmite a atemporalidade dos deuses, o sempre presente que enche de significado cada ato motivado pelo clamor linguístico do que os ultrapassa e dignifica. Se dá, então, uma hierofania(do grego hieros, ἱερός = sagrado e faneia, φαίνειν = manifesto, manifestação divina)[17], o sintonizar entre o agora e o eterno, em que o homem se percebe como constituinte da realidade, e não um ser a parte, observador e/ou técnico, origem daquela cisão dicotômica entre sujeito e objeto, ou entre consciência/mundo interno e natureza/mundo externo.

Traduz, ademais, segundo Ferreira da Silva (2010), a insistência negativa do Ocidente[18], que, fundada na compreensão de uma alma imortal cuja materialidade é apenas instrumental e acessória, logo passageira e secundária, tem a natureza como contrapartida, a qual o único intuito e finalidade é servir e ser fiel aos homens, a partir do controle técnico.[19] Diz Ferreira da Silva (idem) que as representações técnico-científicas em vigor caracterizam “um aniquilamento das coisas, (...) uma eliminação do Bildwelt [mundo visual, das imagens poetizantes] em proveito de uma pura armação mecânico-mundial” (p.146), que é o mundo entendido e tomado como mera e extrema objetividade, ou pura representação.

Se o mito é poiesis, ou seja, fundação de um Mundo e doação divina, enquanto período iluminante dos deuses na presença sugestiva, fascinadora e dispensadora de dons e oferendas amorosas, a partir daquele sintonizar que é arrebatamento passional, pode-se, em relação ao Ocidente e ao ocultar-se (possível e também dadivoso) do Absoluto, antever a mensagem poética que intermedia divindade e humanidade a partir da obra de arte, do obrar que desvela uma Verdade histórica. Desse modo, o poetizar se identifica não apenas com o Mito, ou o que Ferreira da Silva (2010), a partir de Hölderlin, chamará de território do aórgico (inorgânico), do não-feito pelo homem[20], por transcender (englobando) os fenômenos materiais e orgânicos (a negatividade hominista e subjetiva), mas também com a arte, a possibilidade doada aos homens a que seja (novamente) ofertada a presença significativa da iluminação do Ser. ...poeticamente o homem habita entoa Hölderlin, e diz Heidegger (1954), em ensaio a respeito, que o poeta é aquele que traz o homem para o habitar na Terra, habitar em sua essência de homem, de medida ofertada pelos deuses: “somente porque o homem faz, desse modo, o levantamento da medida de seu habitar é que ele consegue ser na medida de sua essência” (p.172). O poeta, ao falar em imagens a partir do sonhar e da fantasia, possibilita o “habitar em sentido originário” (p.178), deixando que a Terra seja Terra, assim como o Céu ser Céu e, no habitar originário do Quaternário, que também o sejam os Imortais e os Mortais, os humanos enquanto capazes de morrer, “enquanto se demora[m] sobre esta terra, enquanto habita[m]” (p.173). O poeta é aquele que pressente os vestígios dos “deuses foragidos”, e que, “no tempo da noite do mundo, (...) diz o sagrado” (1946, p.312).

A arte/poesia, portanto, tem, tanto em Heidegger quanto em Vicente Ferreira da Silva, a função preponderante de revelar o porvir do Divino, e de ser o luzeiro que a humanidade carregará até o retorno dos novos deuses, a aurora que ainda está por vir. É “Encontro e Anunciação” da mensagem dos deuses, o despontar da “magia divina. É ela o ir-além-de-si-mesmo do homem, na realização de uma obra que é a Festa Sacral, em honra do hóspede divino” (FERREIRA DA SILVA, 2010, p.507).

Ferreira da Silva (2010) retoma as duas noções de Hölderlin de mudança/conversão, uma relacionada ao elemento humano, no entrechoque de reformas, revoluções e contrarrevoluções, que é a conversão categórica [KategorischeUmkehr], “uma nova combinação das possibilidades existentes, uma aplicação mais rigorosa de uma verdade já dada, uma galvanização utópica de um conceito da vida e das coisas” (p.293), enquanto a legítima conversão, a que se relaciona com a doação desvelante da clareira do Aberto, é a conversão pátrica [VaterlandischeUmkehr], ou infinita, por implicar o ilimitado subversivo de todas as formas e ordenamentos, além da compreensão humana, já que provinda de uma esfera meta-histórica. A partir de um poder desconhecido [UnbekannteMacht], é“uma mudança do próprio imutável que presidia as antigas mudanças. (...) Uma terrível comoção (...) que diz respeito ao aniquilamento e formação dos mundos” (ibidem). Numa linguagem platônica, é periagoge, um giro de toda a alma (em arrebatamento) para o Divino, quase como se fosse uma conversão. Diz Heidegger em Carta sobre o Humanismo (1973): “a morada do homem contém e conserva o advento daquilo a que o homem pertence em sua essência. Isto é, segundo a palavra de Heráclito, o δαίμων, o Deus. A sentença diz: o homem habita, na medida em que é homem, na proximidade de Deus” (p.71). O que, em linguagem poética, é posto em iluminura por Hölderlin no hino tardio, Tal como num dia de festa...:


Os pensamentos do espírito a todos comum encontram-se,
Em acalmia final, na alma do poeta,
De tal modo que ela, subitamente atingida, do Infinito
Há muito conhecida, estremece ao recordar-se,
E é-lhe dada a ventura de, inflamada pelo raio sagrado,
Dar à luz o fruto do amor, obra dos deuses e dos homens,
O canto, para que de ambos dê testemunho.
(...)
Porém a nós compete-nos, ó poetas, permanecer
De cabeça descoberta enquanto passam as trovoadas de Deus,
Segurar nas próprias mãos o próprio raio vindo do Pai
E entregar ao povo, oculta no canto,
A dádiva divina.



Considerações possíveis: esperança do despontar de nova aurora

Quem sabe se a Vida não se originou numa Noite que ultrapassa as nossas Noites? A Natureza seria uma versão para a consciência diurna de um plexo de realidades que emergiam de um abismo de potência superior em relação à noite de nossos olhos. (...) As nossas noites seriam símbolos mitigados dessa Matriz abissal, assim como o dia seria simulacro do grande dia. (...) O caráter dessas trevas seria a da generatio espontânea em todos os sentidos. A imagem de um caos fervilhante aproximar-nos-ia por enigma desse Divino zoogônico. No profundo desse Oceano germinal estariam continuamente surgindo os zigotos da vida.
Fragmentos, Vicente Ferreira da Silva


A poetisa Dora Ferreira da Silva (1972) faz alusão a duas frases, aparentemente contraditórias, proferidas pelo marido, Vicente Ferreira da Silva, um pouco antes de seu falecimento prematuro: “eu disse tudo o que tinha a dizer” e “agora vou começar a escrever”. Dora, ao meditar sobre tais ditos e tendo como base os últimos escritos e anotações do filósofo, enxerga-os como prenunciar do que poderia ter sido a continuidade do trabalho de Vicente. Tendo se dito tudo o que fora possível a partir do nomear conhecido, a partir da doação da Fonte, dali em diante haveria um refluxo do Ser, a partir do apocalipse do ente, este alumiar ilusório do Aberto que se manifesta na crença da supremacia da subjetividade. O fim, entendia Ferreira da Silva, era o pré-requisito para um novo Começo, em que a destruição do velho implica a criação do novo, tal como na renovação cíclica dos mitos. 

A segunda frase de Vicente, por sua vez, pressupõe esse movimento de liberdade criativa, talvez vagamente posta nos quatro Diálogos (Do Mar, Da Montanha, Do Espanto e Do Rio, que merecem um apreciar investigativo maior do que o escopo permitido neste artigo), trazendo como personagens cinco jovens, que representam: a personalidade socrática e inquisidora do filósofo, outro possuindo alguns traços da personalidade de Vilém Flusser, em oposição ao alterego do primeiro, a personagem feminina representando a sensibilidade poética de Dora e, por fim, outro personagem a representar a esperança de renovação mítica, baseado na personalidade de Agostinho da Silva. Com ironia, este sinal indicativo do que poderia ter escrito ainda Ferreira da Silva, se chegasse a tanto, reevoca os primórdios da Filosofia, justamente nos diálogos platônicos: não a tenacidade prolixa das tergiversações dos conceitos, mas aquele encontro entre consciências, em linguagem simples mas capaz de permitir o nomear das coisas, tendo o Ser como plano de fundo fundante. Assim projetada, a filosofia retorna a ser aquele saber sobre o não-saber que discursa a respeito do mito, em uma comunhão cujo único e impreterível objetivo é a permanente recordação da proximidade do ente em relação ao Ser.

Mas, lastimável perda. Não cabe a nós, prossegue Dora, tomar tal expediente como pretexto para voos de imaginação a respeito do que poderia ter vindo a se tornar o pensamento de Vicente, já que não nos compete o inconcebível, mas prosseguir no caminhar trilhado pelo filósofo paulista, nas pegadas cuja busca é o pensar junto à sua nascente e destinação. Flusser (2002), em pequeno texto escrito em homenagem à memória de Ferreira da Silva, dispõe do que considera representar o pensamento vicentino: uma esperança para o país, já que síntese do substrato de elementos étnico-culturais que compõem o Brasil (o europeu, o africano e o indígena), fora a importância existente na proximidade, entre omitida e esquecida, com a Natureza, sem o apanágio da manipulação técnica, pois tendo o homem como participante na viva presença do mítico, como nas festas carnavalescas e nos rituais do candomblé. É, ainda segundo Flusser, possibilidade a que a Natureza volte a ser aceita como presença simbólica, e a Terra a ser a maternidade de Gaia, e não dificuldade imposta ao domínio quantificador da subjetividade. O resgate da obra de Vicente é o colocar-se em risco para a renovação do pensar filosófico, deste pensar que é pensar sobre o Ser, por ora seguro nas determinações racionais, e de implicar o ente em sua relação com a doação de sua essência. É, como dirá e projeta Reale (2009), o brotar do processo de autoconsciência nacional, um convite ao pôr-se-obra da verdade histórica brasileira, daquela promessa de ser ‘país do futuro’ que fatalmente desemboca no ocultar-se do seu devir.

País do futuro, ou do devir da aurora mítica, é o que dá abertura a um ciclo histórico diverso deste em que impera o divórcio entre o natural e o divino, para o retornar ao fundante em que brotam e são ofertadas as possibilidades de ser. Johns (2006) diz que o homem Ocidental chegou, enfim, a um impasse em forma de uma encruzilhada pelo deus Janus, no dilema entre uma estrada que leva aos mistérios exóticos e perigosos do mito, e entre uma autoestrada de concreto que leva a um deserto de palácios de mármore. Tal encruzilhada evoca a verdade da clareira do ser, que ora se revela, enquanto tempo sagrado, ora se projeta enquanto inautenticidade niilista, os tempos de carência que proclamam o nomear do divino a partir dos poetas. Os poetas cantam - pois, segundo Rilke, cantar é existir - os mitos do porvir, o nascer de um novo homem, companheiro autêntico e consciente dos deuses.

Dessa maneira, também a obra filosófica de Ferreira da Silva foi um poetizar mítico: nascido póstumo para a noite dos deuses que perdemos, pensador adiantado em relação aos tempos diurnos, lhe sendo mensageiro em espera e entrega amorosa, erótica. Foi também poeta o filósofo paulista, e cabe a nós, como pastores do Ser, como chama Heidegger (1973), gestar e cuidar a que o nomear poetizante do Divino seja prenúncio de sua época diurna, antevisto em Hinos à noite, de Hölderlin:

Mais celestes que essas estrelas cintilantes parecem-nos os olhos infinitos que a noite abriu em nós.


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[2]É possível citar os ensaios recentes de José Mauricio de Carvalho (Vicente Ferreira da Silva e o sentido da Arte [2005] e Ética e política no pensamento de Vicente Ferreira da Silva [2006]), de Constança Marcondes César (Liberdade e Reconhecimento [2013] e Vicente e Dora: a filosofia da mitologia no Diálogo do Mar [2015]), Nelson ShuchmacherEndebo (O poeta como historiador natural: Rodrigo Petronio e Vicente Ferreira da Silva [2015]), Giancarlo Aguiar (A interface da mito-poética e o pensamento filosófico em Eudoro de Souza, Vicente e Dora Ferreira da Silva [2015]), Inês Ferreira da Silva Bianchi (Vicente e Dora - Entre a mata e o mar [2015]) e Romana Valente Pinho (A Perspectiva Fenomenológica de Vicente Ferreira da Silva: A Dialética das Consciências [2015]), assim como os trabalhos publicados nos anais do II Colóquio Internacional Vicente e Dora Ferreira da Silva/ III Seminário de Poesia – Poesia, Filosofia e Imaginário, ocorrido em Uberlândia no ano de 2015 (a primeira edição se deu em 2013, mas em Lisboa, Portugal), que compõem, inclusive, a maior parte dos artigos escritos recentemente sobre a obra de Ferreira da Silva. É válido ainda citar o Dossiê dedicado ao filósofo paulista pela revista dEsEnrEdoS (número 06, julho/agosto/setembro de 2010), constando ensaios escritos por pensadores e intelectuais amigos de Ferreira da Silva (publicados, ainda, no segundo e terceiro tomos das Obras Completas, em Posfácios), assim como o artigo Introdução à Filosofia da Mitologia. Em acréscimo, os trabalhos apresentados no V Colóquio Tobias Barreto: Mito e Cultura: Vicente Ferreira da Silva e Eudoro da Silva, realizado entre os dias 14 e 18 de setembro de 1998, em Braga, Portugal, cujas Actas foram publicadas em 2001, pelo Instituto de Filosofia Luso-Brasileira.
No volume dedicado à Filosofia Contemporânea de sua História das Ideias Filosóficas no Brasil (2000), Antonio Paim coloca Ferreira da Silva como um dos representantes do pensamento existencial no país, empenhado na busca pela verdade do ser. O verbete correspondente ao filósofo paulista elenca os pontos primordiais do pensamento vicentino, fazendo alusão às obras existentes e dedicadas a uma explanação mais detalhada das ideias de Vicente, citando Miguel Reale, Adolpho Crippa (Mito e Cultura [1975] e A ideia de cultura em Vicente Ferreira da Silva [1984]), Constança Marcondes César (Vicente Ferreira da Silva: Trajetória intelectual e Contribuição Filosófica [1980]) e Elyana Barbosa (Vicente Ferreira da Silva: Uma visão do mundo [1975]), sendo possível acrescentar o de Antônio Braz Teixeira (Vicente Ferreira da Silva: da Lógica Simbólica à Filosofia da Mitologia [s/d]).
É de se ter em mente, no entanto, que a primeira edição da obra de Paim seja de 1967, período de intensa produção de ensaios e artigos relacionados ao corpo filosófico de Vicente.
[3]Ferreira da Silva (2010), ao tratar da íntima relação entre corpo e sangue, diz que o primeiro é uma circunstância que varia ao longo da História, já que o viver representativo somático é determinado pelo seio cultural que está em sintonia com o oferecido pelo Ser. “Toda abertura pulsional teria como correlato um corpo, uma figura somática, uma raça, uma modulação do Sangue”, sendo o sangue, em especial, presente divino que é continuamente ofertado como/em ritual de sacrifício (inclusive no Cristianismo, a partir da transubstanciação de pão e vinho no corpo e sangue de Cristo, a cada missa). Ferreira da Silva, ademais, relaciona Corpo e Sangue com, respectivamente, a forma apolínea e a pulsão dionisíaca: “antes de determinar-se em sua configuração tangível e orgânico-representativa, isto é, como corpo, a vida existe em forma fluida e sub-liminal, como pré-corpo, como Sangue. A forma apolínea do corpo emerge da Noite dionisíaca do Sangue, do Sangue passional que é o nosso verdadeiro ser. A força plasmática e criadora do Sangue, do Sangue como emblema real da Vontade, é que produz a partir de si os órgãos e formações somáticas do corpo humano” (p.153).
[4] Tal apoio, que não implicou em discipulado, está, notavelmente, na importância dada à Filosofia da Religião na obra de Ferreira da Silva, importância esta que se ausenta na obra heideggeriana. O filósofo alemão, embora discorra a respeito do ‘poeta como mensageiro do sagrado’ ou da obra de arte como fundação de Verdade, daí o ponto de encontro com o pensar ferreiriano, não projeta no âmbito mítico uma aproximação com o fenômeno poético-artístico, marca presente em Ferreira da Silva, que coloca poesia, mito e linguagem como idênticos.
Leonardo Van Acker, Heraldo Barbuy e Renato CirellCzerna (1970) fazem referência a outro diferencial entre os dois filósofos: enquanto Heidegger interroga a respeito do Ser, sem defini-lo, Ferreira da Silva responde quem é o Ser, atribuindo-o de uma carga pulsional e emocional (Fascinator, Dispensator e Sugestor), e igualmente correlacionada ao fenômeno religioso e mítico.Dessa maneira, o que para Heidegger constitui uma Ontologia fundamental, no pensamento de Ferreira da Silva pode ser denominado de Ontoteogonia.
[5] A analítica existencial de Heidegger, afirma Ferreira da Silva (2010), ao se distanciar do Existencialismo (embora o alemão seja considerado um de seus expoentes, junto a SørenKierkegaard e Jean-Paul Sartre), da defesa do “primado da existência, do estar-aí, da concreta inserção do homem em sua circunstância mundanal” (p.397), seria, por sua vez, “uma simples elaboração preparatória de uma problemática ontológica de outra índole” (p.398), em vistas a compreender a essência da Metafísica e perguntar pelo sentido do Ser em sua diferença em relação ao ente.
Noutro artigo, Ferreira da Silva afirma que a “metafilosofia” de Heidegger, ao dizer que a filosofia [amor à sabedoria] ocidental apenas explorou o ente, olvidando-se do Ser, a ultrapassa, já que o filosofar aqui entendido “é uma medida, uma forma transitória, descoberta e revelada pelo poder projetivo do ser”. A Ontologia (ou Ontoteogonia), dessa maneira, enquanto saber a respeito do Ser, deve pensar, a partir de então, e seguindo o ideário ferreiriano, o determinismo histórico que provém da fundação mítico-poética, ou das teofanias religiosas de “atuações meta-históricas” (p.485).
[6] Heidegger (1938) evoca a interpretação grega de ente, a partir de Parmênides: “O ente é o que desabrocha e o que se abre, aquilo que, enquanto o que-está-presente, surge ao homem como o que-está-presente, isto é, surge àquele que se abre a si mesmo ao que-está-presente, na medida em que o percepciona. (...) Ser contemplado pelo ente [nota da 1ª edição de 1950: ser tocado pelo ser enquanto vir-à-presença, enquanto εἶδος, [essência], estar envolvido e retido no seu aberto e, assim, ser suportado por ele, estar enredado nas suas oposições e marcado pela sua discrepância: tal é a essência do homem, no grande tempo grego” (pp.113-4).
Por sua vez, Ferreira da Silva (2010) diz que o homem é “um entre no conjunto dos Entes”, e, “do mesmo modo que o mundo circundante, é o resultado e a consequência de um transcender que traça e que constitui a trama das oportunidades de realização histórico-humanas”. Esse traçar, que constitui o mundo, também é traçado que atravessa o homem, e o coloca em sintonia à “intervenção projetante do Ser” (pp.232-4). É o cáraterek-stático e projetivo do existir, que não se fundamenta na subjetividade humana, mas no “estar-fora-de-si do morar na proximidade do Ser” (p.236).
[7]Diz Heidegger (1971):“Ser e fundamento pertencem um ao outro de modo concomitante.A partir da sua copertença com o ser enquanto ser, o fundamento recebe a sua essência. Inversamente, o ser enquanto ser rege a partir da essência do fundamento.Fundamento e ser (‘são’) o mesmo, não o igual, o que logo a diferença dos nomes ‘ser’ e ‘fundamento’ indica. Ser ‘é’ na essência: fundamento. Por isso o ser nunca pode anteriormente ter um fundamento, que o deva fundamentar. Em consequência disto o fundamento do ser permanece fora. O fundamento permanece fora do ser. No sentido de um tal permanecer-fora do (Ab-leibens) fundamento do ser, ‘é’ o ser o sem-fundo (Ab-Grund). Na medida em que o ser enquanto tal é fundamentado em si próprio, permanece ele mesmo sem fundamento”(pp.80-1).
[8]Heidegger (1957) dirá que a Metafísica ocidental se caracteriza como sendo onto-teo-lógica, pois, ao mesmo tempo em que se fundamenta no enunciar lógico do Ser (racional, de adequação e predicativo), também se baseia em um enunciar teológico, por identificar a fundamentação do ente (enquanto tal e no todo) a partir do Ser como causada por uma razão suficiente (como encontrado em Leibniz), que é denominada Deus. Dessa maneira, a Diferença Ontológica, como chamada por Heidegger, entre Ser e ente, na Metafísica se concebe enquanto entificação do Ser, por compreendê-lo a partir desse viés lógico-teológico, ou aquilo que fundamenta e causa o ente. Quanto àquela Diferença, dirá Heidegger: “Ser se mostra como sobreventodesocultante. Ente enquanto tal aparece ao modo do advento que se oculta no desvelamento” (p.396); sobrevento é o acontecimento (Ereignis) que manifesta o advento do ente, assim desvelando aquilo que se oculta, a finitude do homem.
[9] Para Heidegger (1938), a desdivinização é um dos fenômenos que caracteriza a Modernidade, junto à interpretação metafísica do ente, a técnica, a arte (como objeto de vivência e expressão subjetiva) e o fazer humano concebido como cultura (o cultivo dos mais elevados valores e bens humanos). Afirma o filósofo: “a desdivinização é o dúplice processo de, por um lado, a imagem do mundo se cristianizar, na medida em que o fundamento do mundo é estabelecido como o infinito, o incondicionado, o absoluto, e, por outro lado, o cristianismo transformar a sua cristianidade numa mundividência (a mundividência cristã) e, deste modo, se modernizar. A desdivinização é o estado de ausência de decisão sobre o deus e os deuses. Ao cristianismo cabe a maior parte no seu despontar. Mas a desdivinização não só não exclui a religiosidade, como é até só através dela que a relação aos deuses se transforma na vivência religiosa. Ao chegar-se aqui, é porque os deuses fugiram. O vazio que surgiu é substituído pela investigação historiográfica e psicológica do mito” (p.98, itálicos meus). [Neste último trecho, é nítida a crítica lançada por Heidegger a modos de investigar a esfera mítica a partir da ausência do divino, ou seja, de uma perspectiva puramente entitativa, de omissão e olvidamento do Ser].
A imagem do mundo, por sua vez, é “uma imagem [que se faz] do mundo [einBild von der Welt]. (...) Fazer-se a imagem de algo quer dizer pôr o ente mesmo, no modo como está no seu estado, diante de si, e, enquanto posto desta forma, tê-lo constantemente diante de si” (p.111), em que “o homem torna-se centro de referência do ente enquanto tal” (ibidem).
Ferreira da Silva (2010) diz que a parousia [παρουσία, presença] do homem, chamada historicamente de Cristianismo, toma a “verdade da autoconsciência humana [hominismo] como critério de toda a verdade” (p.281). Significou, ademais, uma ausência e alienação, “o não-ser-mais militante e agressivo do mundo das imagens das teofanias anteriores, o ausentar-se crescente que, do ponto de vista humano, foi vivido como superação do mundo e transformação redentora da terra” (p.282), a partir do primado da subjetividade e da democracia, do mundo do trabalho e da técnica;daquilo que, por sua vez, foi destinado pelo Ser para nossa época histórica.
[10] No ensaio O que é Metafísica? (1929), afirma Heidegger que a condição posta com o Nada não é simplesmente negacionista em relação à vida, ou o âmbito negativo do ente, que seria o não-ente. A negação seria consequência do contato com o Nada, não sua causa. O Nada é a possibilidade de esvaziamento, imagético e representacional, e que revela uma ausência; melhor dizendo, desvela que o ente não é constituído nem definido a partir das conceituações prévias da Metafísica, mas é devir [vir-a-ser], é projeto destinado a ter significado a partir de uma doação posta pelo Ser. O Nada é, pode-se dizer, metáfora para a eminência transfiguratória, que se manifesta na liberdade do ente em transcender o já-dado e ser iluminado pelo desvelar do Fundamento. É o âmbito do silêncio (o pensar meditativo que se diferencia do calculador) que dá abertura à palavra dos deuses.
Por sua vez, o Nada, para Ferreira da Silva (2010), é liberdade em relação ao “cenário ontomórfico do errar” (p.244), e igualmente “propedêutica [ensino prévio, conhecimento mínimo] de uma experiência filosófica mais original, pelo fato de emancipar o pensamento de sua subordinação ao simplesmente oferecido” (p.245). É a experiência do Outro, o Ser, enquanto abertura, desvelamento e doação original.
[11] Assim sintetiza o próprio Heidegger (1973): “mas o ser - o que é o ser? Ser é o que é mesmo. Experimentar isto e dizê-lo é a aprendizagem pela qual deve passar o pensar futuro - não é Deus nem um fundamento do mundo. O ser é mais longínquo que qualquer ente e está mais próximo do homem que qualquer ente, seja este uma rocha, um animal, uma obra de arte, uma máquina, seja um anjo de Deus. O ser é o mais próximo. E, contudo, a proximidade permanece, para o homem, a mais distante. O homem atém-se primeiro e para sempre apenas ao ente. Quando, porém, o pensar representa o ente enquanto ente, refere-se, certamente, ao ser; todavia, pensa, constantemente, apenas o ente como tal e precisamente não e jamais o ser como tal. A 'questão do ser' permanece sempre a questão do ente. A questão do ser não é ainda aquilo que designa esta falaciosa expressão: a pergunta acerca do ser. (...)
A Metafísica, porém, somente conhece a clareira do ser ou desde o olhar que nos lança aquilo que se apresenta no ‘aspecto’ιδέα [ideia, ideal] ou criticamente, como o objeto da perspectiva de representação categorial por parte da subjetividade. Isso significa: a verdade do ser como a clareira em si mesma permanece oculta para a Metafísica. Este ocultar, porém, não é uma lacuna da Metafísica, mas o tesouro da riqueza a ela mesma recusado e ao mesmo tempo apresentado” (pp.34-5).
[12] Heidegger (1951) afirma que o que fundamenta o Quaternário é o habitar a que se resguardam e se demoram os quatro elementos, no “permanecer pacificado na liberdade de um pertencimento, [no] resguardar [de] cada coisa em sua essência” (p.129), na preservação, que é igualmente cultivo e edificação, das coisas que crescem e existem. A terra possibilita o solo de germinação das coisas, o céu seu crescimento e alimento, enquanto os mortais delas cuidam e os imortais as mantêm.
[13] Símbolo, diz Ferreira da Silva (2010) a partir de Schelling, é síntese entre o singular da imagem e o universal do conceito, daí ser imagem significativa que sustenta e fundamenta as coisas: “no símbolo, algo de particular, de imagístico, seria ao mesmo tempo e com igual direito, uma universalidade de possibilidades mundiais de ser”. A consciência ocidental, por sua vez, constituindo um “mundo vazio de presenças”, afirma o universo de representações, “mortas e simplesmente localizadas. Diante da res cogitans[sujeito pensante] surge o ingente mecanismo da res extensa [coisa extensa, corpo], traduzido numa ordem de fatos casualmente relacionados” (pp.158-160). É a subjetividade concebida a partir do cogito ergo sum de Descartes, ‘penso, logo existo’.
[14]Em alemão, poiesis é dichten, traduzido como ‘colher’, ‘ajuntar, ‘concentrar’, ‘reunir’. Vem do latim dictare, que se encontra no verbodare: o doar, presentear e ofertar dos homens aos deuses, e dos deuses aos homens. A densidade e consistência poéticas provêm de seu caráter de permanência e sacralidade e, mais do que isso, de doação enquanto ação de sentido, que é aqui linguagem (inaugurante): “a ação, a poiesis, é o vigor na voz dos deuses. (...) Sem essa voz não há fala humana, não há sentido, não há linguagem, não há mundo, não há ético, não há humano. A voz do poeta é a voz do sagrado, é Dichtung. [...] Uma tal doação do sagrado que compete a nós receber enquanto sentido do que se manifesta e desvela, enquanto linguagem, é, simplesmente, como diz Heidegger: poiesis, ou seja, o manifestar que é a essência do agir, porque nela o sentido do ser Se dá” (pp.239-241). 
[15] Interessante pensar que é só a partir do esquecimento de sua essência que o homem pode recomeçar enquanto homem, sendo sua existência mundana uma possibilidade de rememoração do divino, a partir, no caso da filosofia platônica, da navegação dialética. Tal navegar parte do sensitivo para alcançar as alturas da inteligência do Espírito, na figura das Ideias, do modelo que permite que as coisas da realidade possam ser, e que tem no Demiurgo seu artesão projetivo e intermediário entre o informe e a forma modelada. Por sua vez, afirma Heidegger que o filosofar ocidental, a partir de Platão, se fundamenta no esquecimento da diferença entre Ser e ente, no que tange a caracterizar e compreender apenas o segundo, em detrimento e no desocultar do primeiro. Ferreira da Silva (2010), embora diga que no platonismo a existência é subordinada à existência, na ênfase dada à objetividade moral no agir, a partir de normas e leis já dadas, as ideias arquetípicas, no entanto, podem ser compreendidas como intermediário mítico de possibilidades, e a figura do Demiurgo ser a de um “semideus, (...) fundador capaz de despertar no coração do homem a sede de realizações inéditas” (p.218). A partir do valor do mito enquanto ideia, o destino histórico é traçado (e doado). Este seria, então, o mais próximo da reminiscência que o homem poderia receber, já que, segundo o mito platônico, o homem existe enquanto esquece – embora, a partir do mito, seja possível relembrar-se do olvidado.
[16] Assim sintetiza Elyana Barbosa (1975) essas três facetas do Divino: “enquanto o Ser possui uma característica emocional comunicante que envolve os entes, ele é o Fascinator. Como Projeto que ilumina as possibilidades de instauração, o Sugestor. Quando se deixa conhecer é o Dispensator. O Ser não é incognoscível como muitos o caracterizam na história da filosofia. Vicente acentua esta característica, demonstrando a sua cognoscibilidade por um nível especial da consciência: o mítico” (p.45).
Um detalhe é que, nos escritos de Ferreira da Silva, há uma atenção maior na facetapulsional e de fascinação do Ser, cabendo à sugestiva e dispensativa algo como um complemento ao Fascinator.
[17] Eis o que conta Eliade (1992b) a respeito da hierofania e sua relação íntima com o mito enquanto fundamento de um povo histórico: “o homem toma conhecimento do sagrado porque este se manifesta, se mostra como algo absolutamente diferente do profano. A fim de indicarmos o ato da manifestação do sagrado, propusemos o termo hierofania. Este termo é cômodo, pois não implica nenhuma precisão suplementar: exprime apenas o que está implicado no seu conteúdo etimológico, a saber, que algo de sagrado se nos revela. Poder-se-ia dizer que a história das religiões – desde as mais primitivas às mais elaboradas – é constituída por um número considerável de hierofanias, pelas manifestações das realidades sagradas. (...) Encontramo-nos diante do mesmo ato misterioso: a manifestação de algo ‘de ordem diferente’ – de uma realidade que não pertence ao nosso mundo – em objetos que fazem parte integrante do nosso mundo ‘natural’, ‘profano’.
(...) Em outras palavras, para aqueles que têm uma experiência religiosa, toda a Natureza é suscetível de revelar-se como sacralidade cósmica.
(...) A manifestação do sagrado funda ontologicamente o mundo. Na extensão homogênea e infinita onde não é possível nenhum ponto de referência, e onde, portanto, nenhuma orientação pode efetuar-se, a hierofania revela um ‘ponto fixo’ absoluto, um ‘Centro’.
Vemos, portanto, em que medida a descoberta – ou seja, a revelação – do espaço sagrado tem um valor existencial para o homem religioso; porque nada pode começar, nada se pode fazer sem uma orientação prévia – e toda orientação implica a aquisição de um ponto fixo. É por essa razão que o homem religioso sempre se esforçou por estabelecer se no ‘Centro do Mundo’” (pp.13-17).
[18] Ferreira da Silva (2010) conta que a origem do dualismo objeto-sujeito se encontra no Velho Testamento, em que divino e humano se relacionam apenas a partir de contratos entre opostos, pois, “diante de Javé tudo é matéria, utensílio de sua Vontade incontrastável e o próprio povo eleito é um objeto passivo nas mãos dessa altíssima realidade” (p.264). Perante o mundo, a divindade israelita é tão somente dominação, o que, em termos de ter sido o homem criado à imagem e semelhança do Criador, também ele reflete aquele impulso de domínio e controle. Embora a proximidade entre Divino e Humano, a partir do Cristo, o mundo continuou sendo entendido como suspeito e passível de transformação, agora a partir do trabalho.
[19]Vale aqui referenciar a definição feita do processo técnico por Dulce Critelli (2002), a partir de Heidegger: “todo esse processo exige um asseguramento, isto é, a certificação de que poderá ser sustentado e repetido sempre que necessário. O que garante o asseguramento do processo é o pensamento que calcula as possibilidades de sua realização, e que é do domínio do que Heidegger chama ciências matemáticas da natureza, através da física moderna.
Tal processo produtivo não se circunscreve à interferência nos processos da natureza, mas se alastra a todo agir humano e de tal sorte que essa interferência requisita e propõe todos os nossos saberes, produções e comportamentos. O modo de agir (ou ser, no caso) do homem ocidental tornou-se técnico. Trata-se de uma orientação de conduta que aplicamos a cada gesto e em relação a tudo. É esse o único modo que entendemos ser possível no trato de nossa existência e do que quer que nela se apresente.
Como olhamos para o mundo e para o existir desde essa ótica técnica, tudo o que faz parte do mundo fica subordinado a ela. Os elementos naturais, por exemplo, ficam compreendidos e disponibilizados para esse tipo de agir. Assim, uma floresta perde a sua condição primordial de floresta e se restringe a ser reserva de madeira para a indústria; as plantas ficam disponibilizadas como reserva para a produção de remédios; os rios tornam-se reservas para o uso das hidroelétricas e a produção de energia, e assim por diante” (p.85).
A essência da técnica pode ser antevista na obra Destruição, de Orides Fontela: “A coisa contra a coisa: a inútil crueldade da análise. O cruel saber que despedaça o ser sabido. A vida contra a coisa: a violentação da forma, recriando-a em sínteses humanas sábias e inúteis. A vida contra a vida: a estéril crueldade da luz que se consome desintegrando a essência inutilmente”.
[20] Em ensaio a respeito do pensamento de Vicente Ferreira da Silva, diz Per Johns (2006) que a inspiração para o neologismo aórgico derive do grego orgia, “em seu sentido originário de misterioso arrebatamento dionisíaco, que se extravasa, excede-se, vai além dos limites humanos” (p.681).


FEIRA DE SANTANA-BA | nº 8 | vol. 1 | Ano 2018


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