Da relação entre homem e mulher no seio da família, à luz da filosofia de Edith Stein

 Revista Sísifo. N° 12, Julho/Dezembro 2020. ISSN 2359-3121. www.revistasisifo.com

Maria Clara Caetano Tavares Monteiro - Graduanda em Filosofia pela UFPE. E-mail: clara.caetanom@ufpe.br

Marcos Roberto Nunes Costa - Doutorado em Filosofia pela PUCRS, Pós-doutorado em Filosofia pela Universidade do Porto, professor efetivo do Departamento de Filosofia da UFPE. E-mail: marcosnunescosta@hotmail.com

 

 


 

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Resumo: O presente artigo visa examinar um dos importantes temas no pensamento da filósofa Edith Stein (1891-1942), a saber, os papéis do homem e da mulher no seio da família. Para tal, procuraremos demonstrar qual é a vocação do homem e da mulher fora e dentro da relação familiar, quais são as características que diferem o ser masculino do ser feminino no geral. Veremos que para a referida Filósofa, homem e mulher possuem papéis específicos dentro das famílias e que justamente por essas diferenças se fazem necessariamente complementares um para o outro na sua relação amorosa e em seu papel de pais educadores.

Palavras-chave: Edith Stein; Gênero; Família.

 

Abstract: This article aims to examine one of the most important themes in the philosopher Edith Stein thought (1891-1942): the roles of men and women within the family. For that, we will show what are men and women's vocation outside and within the family relationship, what are the characteristics that differ the being male from the female in general. We will see that, for the Philosopher, men and women have specific roles within families and precisely because of those differences, they are complementary to each other in their loving relationship and in their role as educating parents.

Keywords: Edith Stein, Genre, Family.

 

 

Considerações iniciais

O presente artigo pretende defender que, para os grandes males que assolam nossa sociedade contemporânea na construção e no desenvolvimento de seres humanos, existe uma instituição que pode nos ajudar que é a família. A busca pela renovação das forças da mesma e o apelo para o reerguimento de sua estrutura entra em cena, então, como o cerne desse trabalho, pois, acredita-se que grande parte dos problemas que atingem as crianças, os adolescentes e os jovens de nossos dias se encontra justamente nas falhas desse pilar.

Sendo assim, para a realização deste estudo buscamos nos trabalhos da filósofa contemporânea Edith Stein[1] as respostas para os seguintes questionamentos: dentro da família existe um papel específico para o homem e para a mulher?  Se sim, quais são esses papéis?

 

1    A “reciprocidade circular” da ciência filosófica com a teológica

Edith Stein afirma que o ser humano é um ser chamado por Deus (a cada um de forma individual), e as pessoas podem descobrir por meio de diversos caminhos a sua vocação. Confessa que apesar de ser algo de difícil reconhecimento, a vocação do homem e da mulher não é impossível de ser descoberta, porque o chamado divino pode ser encontrado através de muitos caminhos, como ela mesma aponta: “[…] existem muitos caminhos pelos quais o chamado nos alcança: Deus mesmo o pronuncia nas palavras do Antigo e do Novo Testamento. Está inscrito na natureza do homem e da mulher, a História no-lo revela e as necessidades de nosso tempo falam uma linguagem insistente” (1999a, p.74). Além desses caminhos, para construção de seu conhecimento acerca do homem e da mulher, a autora se utiliza também do seu conhecimento literário como mostra em sua conferência: “A vida cristã da mulher” e tantos outros que não abordaremos de perto neste trabalho.

Sobre a relação da palavra divina com a vida humana, diz ela em seu texto “Vocação do homem e da mulher segundo a ordem natural e da graça”:

Tentando delinear a natureza do homem e da mulher segundo o conhecimento natural, obtemos de um lado uma elucidação viva daquilo que nos é dado a entender pela palavra de Deus; por outro lado, temos na palavra de Deus um roteiro que nos ajuda a interpretar o material demonstrativo da vida (1999a, p. 88).

Ao mostrar que, na maioria das vezes, o seu conhecimento acerca de ambos os sexos parte também de conhecimentos adquiridos pelas interpretações feitas das Sagradas Escrituras, a filósofa nos aponta para a própria beleza que há na íntima relação entre os Textos bíblicos com a vida do ser humano, e assim nos mostra que a religião por ela assumida não é uma religião aquém da vida. E isto também podemos dizer do método escolhido por ela (o fenomenológico), pois este visa encontrar justamente o sentido e a verdade última das coisas nelas mesmas, investigando a maneira como se mostram, revelando-se a nós, seres humanos, conforme veremos mais adiante.

Sendo assim, o presente trabalho pretende analisar a concepção steiniana as características próprias dos sexos masculino e feminino. Defendendo que o caminho não perpassa pela negação das diferenças naturais dos dois sexos, nem pela afirmação de um sobre o outro, mas pelo acolhimento e respeito de ambos. De modo que na convivência da relação familiar possam trilhar um caminho de superação dos seus respectivos excessos ou falhas por uma conquista de uma semelhança cada vez maior com Cristo, como nos afirma o pensamento da autora:

Quanto mais se progride nesse caminho, mais se fica parecido com Cristo, e como Cristo representa o ideal da perfeição humana, no qual são abolidas todas as unilateralidades e falhas, reunidas todas as qualidades da natureza masculina e feminina, eliminadas as fraquezas, seus seguidores também passam a ser elevados cada vez mais para além dos limites da natureza (1999a, p. 103).

 

2    Apresentação do método fenomenológico

A fenomenologia, conhecida por ela através do matemático e filósofo Edmundo Husserl (1859-1938), partia para uma “busca das essências”, investigando o sentido das coisas através de sua manifestação, observando como as entidades se dão para nós, os seres humanos. No artigo filosófico “O que é a fenomenologia?”, traduzido no Brasil pela Profa. Ursula Mattias, Edith Stein assim diz acerca da escolha do nome “fenomenologia” e como ele muitas vezes ocasiona mal entendidos: “Ele é uma verdadeira fatalidade, pois quase sempre dá motivo para mal-entendidos. De fato, aos fenomenólogos não interessa os ‘fenômenos’ no sentido usual, as “meras aparências”, mas, justamente, as essencialidades últimas objetivas” (2018, p. 217)

Neste trecho podemos observar que o significado do método fenomenológico não pode ser levado ao pé da letra para explicitar aquilo que ele de fato é, mas pelo contrário, o estudo da fenomenologia não é qualquer estudo dos fenômenos. A fenomenologia busca o sentido último, a essência das coisas. Rumo a esse esclarecimento a respeito da essência das coisas, Elisangela Machado, em seu artigo: “A fenomenóloga de Göttingen: breve relato de trajetória da fenomenologia na vida de Edith Stein” descreve:

O método fenomenológico no exercício de escavação rumo ao essencial, deixa de lado o que é acessório e acidental para alcançar a verdade vivida que brota da análise e de reflexões rigorosas. O sentido das coisas é descrito mediante a capacidade humana de refletir diante do que lhe é mostrado, como as coisas físicas e, ou abstratas. É esse método, ou melhor, esse estilo de linha de pesquisa que irá acompanhar Edith Stein em todo desenvolvimento de sua produção intelectual, obras e conferências (2017, p. 99).

A fenomenologia traz em si a rigorosidade do pensamento matemático já que foi criado por um, e uma análise crítica diante daquilo que é escolhido como objeto de seu estudo. Buscando de fato o que permanece velado por trás das coisas, ou seja, o seu sentido, a verdade escondida por trás dos “fenômenos”.

Em seu texto, traduzido pela Profa. Ursula Matthias, Edith Stein faz um elogio à objetividade do conhecimento entrelaçado com a ideia de verdade absoluta demonstrada pelas Investigações Lógicas do seu mestre, afirmando que, “o espírito encontra a verdade, ele não a produz. E ela é eterna – se muda a natureza humana, se muda o organismo psíquico, se muda o espírito dos tempos, então podem bem mudar as opiniões dos homens, mas a verdade não muda” (2018, p. 217).

Assim, por exemplo, no que se refere à questão de gênero, que será vista ao longo deste trabalho, a partir de sua conferência: “O ethos das profissões femininas” (1999b), podemos notar que Edith Stein se inspirou no pensamento São Tomás de Aquino.  Ali, a filósofa diz que ao notar as diferenças corporais existentes de um sexo para o outro, alerta que provavelmente deva haver também certo tipo diferenciação no modo de pensar e de agir de ambos. E para isso se baseia no princípio tomista: “anima forma corporis”, diz: “Onde as forças são tão diferentes, deve haver também um tipo de alma diferente, apesar da natureza humana comum” (1999b, p. 57). Edith Stein observa que as forças masculinas e femininas se distanciam entre si, e por isso, concorda com o pensamento de São Tomás ao dizer que por essas diferenças, apesar da natureza humana comum, existem realmente duas formas distintas nos seres humanos.

Tal pensamento também pode ser mais bem complementado quando paramos para analisar o conceito “ethos” da autora e a sua definição: “Ethos exprime algo duradouro que regula os atos humanos, não se trata de uma lei imposta de fora ou de cima, é algo que atua dentro do ser humano, uma forma interna, uma atitude da alma constante, aquilo que a escolástica chama de hábito” (1999b, p. 55). Ou seja, para ela, o ethos é como essa marca que já existe dentro do ser humano e que se externa em atitudes constantes. Edith Stein também nos relata outros tipos de hábitos, como os temperamentos (que já nascem dentro de nós, sendo “inatos”, como o da alegria ou da melancolia) e outros como os que são adquiridos pelas nossas inclinações pessoais, as aptidões. Assim, encontrará também os hábitos próprios da alma masculina e feminina.

 

3   A vocação como expressão de um chamado divino

Em sua supracitada palestra “Vocação do homem e da mulher segundo a ordem da natureza e da graça” (1999a), Edith Stein apresenta um ponto de vista um tanto “esquecido”, podemos assim dizer, e diferente daqueles vistos nos tempos de hoje acerca do ser humano.

Antes de nos apontar para a relação propriamente dita entre o homem e a mulher, Edith Stein apresenta uma busca pelo sentido da palavra vocação, afirmando que “na linguagem comum, o termo vocação conserva um sentido muito esmaecido de seu significado original” (1999a, p.73). E aponta apenas duas formas que a palavra dita ainda guarda esse “significado original”: A primeira se diz de uma pessoa que “escolheu uma profissão” ou quando se fala de “profissão religiosa”. Afirmando que em ambas as formas a profissão é “algo que supõe” vocação.

Ao longo do texto, a filósofa chega a uma pergunta muito interessante que ela mesma responde: “Mas o que significa ter vocação? Deve ter havido um chamado: de alguém, a alguém, para algo, de uma maneira perceptível” (1999a, p.73). A autora vai nos dizer que vocação, além do sentido de chamado do qual a palavra se originou, também pode ser entendida como aquele reconhecimento de uma ou mais capacidades encontradas no homem para realizar uma profissão. Fala também dos outros tipos de vocação, as quais, tanto em um quanto no outro caso, ao descobrir sua vocação, o homem e a mulher estão descobrindo o seu próprio modo de ser como também o seu lugar no mundo.

Sendo assim, a Edith Stein defende que o sexo de um determinado indivíduo não se trata de algo arbitrário, mas é sustentado por uma escolha de um ser divino que, por sua vez, realiza a sua criação e introduz no ser humano um chamado, uma vocação específica, ou seja, uma identidade masculina ou feminina a fim de que possa sê-lo no mundo. Portanto, afirma, “[…] é ele (Deus) que chama: toda pessoa para realizar algo que é de sua vocação, cada um individualmente para algo que é sua vocação toda particular e, além disso, o homem e a mulher, como tais, para algo especial” (1999a, p.74 – destaque da autora).

Ou seja, reconhecer uma vocação, antes de tudo, conforme o pensamento steniano, significa acreditar que a existência não é e nem pode ser vista como acaso, onde eu faço o que desejo com a minha vida, mas significa optar por um caminho, onde desejo descobrir a verdade desvelada daquilo que sou. Assim, para Edith Stein, “a natureza humana e o caminho da vida não são nem presente nem fruto do acaso, aos olhos da fé, são obra de Deus” (1999a, p.74). A pergunta que devemos fazer agora é, será que existe de fato um caminho, um curso, um rio, algo que nos guie para uma identidade segura do nosso ser enquanto homens e mulheres?

Para chegarmos a alguma clareza dessa resposta precisamos nos deter antes nas três fases da vocação que a Autora apresenta em sua conferência: “A vocação do homem e da mulher de acordo com a ordem natural e da graça” (1999a).

 

4   As três fases da vocação do homem e da mulher

Podemos notar que a vocação do homem e da mulher, para a escritora, é lida e interpretada por três pequenas, mas significativas “fases” encontradas na História da Criação, (retiradas quase por inteiro do Livro do Gênesis) de onde extrai uma boa parte da base e complemento do seu conhecimento acerca do ser humano. É importante lembrar que cada fase diz algo a respeito das características de ambos os sexos e que estas não podem ser consideradas de forma passageira, mas essenciais para a sua constituição.

A primeira fase é vista como aquela antes do pecado original, ainda quando Adão e Eva viviam no Paraíso:

A primeira palavra da Sagrada Escritura que fala do ser humano atribui ao homem e à mulher uma vocação comum. ‘Façamos o homem à nossa imagem e semelhança; e que governe os peixes do mar e as aves do céu e toda a Terra e sobre todos os répteis que se movem sobre a Terra’ (Gênesis 1,27) (1999a, p.75).

 

Nesse momento podemos ver que homem e mulher possuem a vocação comum de serem imagem e semelhança de Deus, de dominarem a terra e de gerarem descendência. “Portanto, logo no primeiro relato sobre a criação do ser humano fala-se da diferenciação entre homem e mulher. Mas a tríplice tarefa é dirigida a ambos em conjunto” (STEIN, 1999a, p.75). Na primeira fase, então, ambos são chamados a desempenharem o mesmo papel, e não encontramos diferença em suas vocações.

A segunda fase é marcada pela escolha de Adão e Eva em desobedecerem a Deus. Agora, “o chamado de Deus aos homens e a vocação dos homens aparecem essencialmente modificados depois da queda” (STEIN, 1999a, p.77). Assim, após experimentarem desse conhecimento, simbolizado pelo fruto da árvore proibida, toda a vocação do homem e da mulher se modifica, de forma que, para o homem, “o castigo pela desobediência é a perda do domínio absoluto sobre a terra e a disponibilidade das criaturas menos nobres, a luta dura pelo pão de cada dia, as dificuldades do trabalho e a pobreza do seu fruto” (STEIN, 1999a, p.77), e “a consequência da queda são as dificuldades do parto para a mulher, assim como as dificuldades da luta pela vida para o homem” (STEIN, 1999a, p.98).

Ou seja, a partir da escolha do homem e da mulher pelo mal, podemos observar que essa tríplice vocação originária se transforma radicalmente: “Desta maneira mudou a relação dos seres humanos com a terra, com seus descendentes e entre si mesmos.” (STEIN, 1999a, p.78)

Por fim, nasce a “terceira e última fase”, que pode ser representada pelo acontecimento da redenção: a vinda de Jesus Cristo concebido por Maria:

Assim como a tentação se aproximou primeiramente de uma mulher, assim a mensagem da redenção de Deus chega em primeiro lugar a uma mulher, e num como noutro caso é o sim saída da boca de uma mulher que define o destino de toda humanidade (STEIN, 1999a, p. 80).

Embora dê capital importância a mulher na fase da redenção, ressalta que a diferença de papeis desta na primeira fase (criação) e na terceira fase (redenção), ao afirmar:

O que distingue o sexo feminino é o fato de ter sido uma mulher o ser humano escolhido para ajudar a fundar o novo reino de Deus; o que distingue por sua vez o sexo masculino é o fato de a redenção ter chegado pelo filho do homem, o novo Adão (STEIN, 1999a, p. 80).

Assim, Maria passa a ser vista como a nova Eva e Cristo passa a ser visto como o novo Adão, restabelecendo a ordem originária.

Portanto, no evento da redenção, associado a nova referência do ser homem e do ser mulher, a humanidade recebe também, consequentemente, um novo exemplo do ser família.

Como o Prof. Juvenal Savian Filho atesta em seu artigo, podemos ver que:

O modo como as características da espécie humana contraem-se em uma mulher permite que ela tenha um modo de existir que é radicalmente diferente do modo de existir de um homem, em quem as características da espécie humana são contraídas de outra maneira. As possibilidades dadas a uma e a outro são diferentes; e é a diferença quanto às possibilidades que interessa Edith Stein (2018, p. 32).

Assim, veremos de que forma esses dois modos de existir se correlacionam entre si, bem como de que forma tais características nascem de uma maneira no sexo masculino e de outra maneira no sexo feminino.

 

5    As vocações primárias e secundárias e a complementariedade na família

Por causa de suas diferenças, homem e mulher assumem funções distintas de acordo com seus dons ou inclinações pessoais no seio da família. Daquela vocação originária do homem e da mulher, veremos que a submissão a terra e o cuidado com os descendentes despontam preferencialmente em ambos em direções opostas. Enquanto na mulher encontramos em sua vocação primária à maternidade, no homem, encontramos o desejo pelo domínio da terra e, em suas “vocações secundárias”, encontramos nela o dever de participação nesse domínio e nele a sua paternidade.

Podemos concluir que há uma complementação: aquilo que falta à mulher na sua vocação de mãe, completa-se com o auxílio masculino, e aquilo que falta ao homem no seu domínio da terra e de todo o criado, a mulher o ajudará. Ambos, então, nascem para serem auxílios recíprocos um para outro. Por causa de suas desigualdades e diferenças naturais é que surge a igualdade, isto é: a necessidade de sua complementariedade dentro da família. A autora se utiliza de uma passagem do Livro do Gênesis na qual podemos retirar uma justificativa à necessidade de complementação entre ambos os sexos:

A segunda passagem, que trata mais detalhadamente da criação do ser humano, diz um pouco mais sobre a relação entre o homem e a mulher. Fala da criação de Adão, como ele foi posto no ‘paraíso de delícias’ para que o cultivasse e o guardasse, como levou os animais para junto de Adão e como lhes deu nomes [...]. Mas não se achava para Adão uma ajudante semelhante a ele (1999a, p.75 – destaque nosso).

Comentado acerca do termo supra destacado, Edith Stein conduz o leitor a duas interpretações para palavra hebraica “eser kenego” ou “semelhante” (em português). A primeira seria voltada para o sentido mais literal, então a mulher (Eva) seria para o homem (Adão) como “um espelho” no qual ele poderia encontrar a própria imagem. Enquanto a segunda interpretação alcança melhor aquele sentido que buscamos, pois diz a filósofa: “Mas pode se pensar também numa contra-parte de modo que ambos se assemelhem, mas não totalmente, que se complementem como uma mão a outra” (1999a, p.76).  Assim, podemos pensar o homem e a mulher que apesar de serem diferentes (como uma mão é diferente da outra), mas conseguem se complementar em uma união.

Enquanto a vocação primária do homem se encontra na relação de domínio para com a terra, a da mulher pode ser vista naquela vocação a maternidade e de cuidado em relação aos filhos, pois nele desponta preferencialmente a luta pela vida, a conquista pela terra, já nela o cuidado e a preocupação com a prole. Por isso, ele recebe a função de ser o “cabeça” da família e ela a responsabilidade principal na educação dos seus filhos. Acredita-se que justamente por ser o primeiro na ordem da Criação, recebendo com isso a sua função de ser a “cabeça da família”, também recebe a responsabilidade pela proteção e sustento da vida de sua mulher e de seus filhos.

Comparando a natureza feminina com a masculina, Edith Stein escreve:

A natureza da mulher mostra-se exatamente paralela. Segundo a ordem original, seu lugar é ao lado do marido, no empenho de submeter a terra e de cuidar dos descendentes. Mas seu corpo e sua alma se prestam menos à luta e à conquista e mais à prática de cuidar, guardar e conservar. Ao que tudo indica, essa atitude está ligada à sua função de cuidar da prole e de promovê-la: trata-se de uma percepção especial da importância do orgânico, do todo, dos valores específicos, do individual. Desta maneira, ela se revela sensível e atenta a tudo que quer vir a ser, crescer, desenvolver-se e que, por isso mesmo, exige consideração para com as suas próprias leis (1999a, p. 91).

Assim, podemos destacar três dons que caracterizam as mulheres: o dom de ter um olhar voltado para o “todo integral”, e consequentemente também para a “pessoa vivente” (como esse todo vivente) e por último o “olhar respeitoso” diante das coisas. Destaca-se assim, aquelas características próprias do ser da mulher. E, diz Edith Stein, das

três atitudes básicas diante do mundo – conhecer, desfrutar e criar – ela prefere normalmente a segunda; parece que ela é mais capaz de alegrar-se, respeitosamente, com as criaturas do que o homem (considerando sempre que essa alegria respeitosa pressupõe o conhecimento específico dos bens […] (STEIN, 1999a, p.91).

A mulher está atenta a tudo que está ao seu redor, se importando com todos aqueles com quem mora ou trabalha, e o faz naturalmente. Por ter em si esse olhar voltado para a importância do todo, do orgânico, ela consegue ter um olhar especial para com todas as coisas e seres da terra, os sabendo respeitar, pois conhece as suas leis, um conhecimento que é próprio dela. Consequentemente, por ter esse olhar voltado para o “todo integral”, receberá a sua função principal de formadora de seus filhos. Pensamento este que ecoa na EncíclicaA dignidade da mulher”, de João Paulo II: “Considera-se comumente que a mulher, mais do que o homem, seja capaz de atenção à pessoa concreta, e que a maternidade desenvolva ainda mais esta disposição” (PAULO II, 1988).

Dons esses que são capazes de beneficiar não somente os filhos, mas todas as criaturas, inclusive o seu próprio marido. Ou seja, não costumando viver unicamente para si, a mulher possui a capacidade de sempre se dirigir a outrem, sejam a seus filhos, ou ao seu marido; abrangendo assim, com seus dons e suas potencialidades todos que estão a sua volta, os formando, os ajudando a crescer. Também confirmam isso, a Profa. Ursula Matthias e Moisés Farias: “Segundo Edith Stein, a mulher tem uma predisposição maternal que se une à de ser companheira. A alegria, a felicidade da mulher consiste justamente em dividir, compartilhar com outra pessoa de si mesma” (2006, p.189).

E esse seu ser sempre voltado aos outros é o que a faz exercer tão bem a sua vocação secundária, que é a participação neste domínio sobre a terra (vocação que desponta primeiramente no homem). A esse exercício também corresponde a sua capacidade de ter um olhar voltado para a percepção do todo e de sua harmonia, sendo capaz de olhar para cada humano sem ser de forma interesseira, mas como um ser que possui complexidade e valor.  Por exemplo, ao olhar para a natureza reconhece a autêntica beleza e necessidade e finalidade de cada ser, reconhecendo que cada um tem a sua importância no todo orgânico. É capaz de olhar para todos os detalhes e reconhecer a importância da vida que se desenvolve a sua frente, seja ela do reino animal, vegetal e inclusive, do humano. Revela-nos, a filósofa, que tal predisposição está intimamente atrelada a sua maternidade:

Com sensibilidade e compreensão, consegue aprofundar-se em temas que, de per si, lhe são estranhos e com os quais nunca se preocuparia se não fosse um interesse pessoal que a pusesse em contato com eles. Esse dom está intimamente ligado à sua predisposição maternal (STEIN, 1999b, p. 58).

Acreditamos que todos os seus dons vocacionais sejam atrelados a esta simples causa: a de ser mãe, de ter em si essa capacidade e predisposição natural. E é por isso mesmo que cabe a ela a responsabilidade principal na educação e formação dos seus filhos. Podemos constatar isso mais claramente quando João Paulo II, na sua supracitada Encíclica, pronuncia:

A análise científica confirma plenamente o fato de que a constituição física da mulher e o seu organismo comportam em si a disposição natural para a maternidade, para a concepção, para a gestação e para o parto da criança, em consequência da união matrimonial com o homem. Ao mesmo tempo, tudo isso corresponde também à estrutura psicofísica da mulher (PAULO II, 1988).

Ao dizer que a mulher é responsável pela educação dos filhos não quer dizer que o homem possa se ausentar dessa atividade, cabendo também a sua participação desse domínio, mas quer dizer tão somente que tais responsabilidades cabem principalmente a ela, porque possui em si mesma esses dons naturais.

Constatamos aqui uma tese profundamente pensada e defendida pela autora a respeito da unicidade e integralidade do ser humano, quando São João Paulo II afirma que uma capacidade física natural da mulher também traz uma estrutura psíquica correspondente a essa capacidade. Ou seja, se o corpo da mulher revela a capacidade biológica para ser mãe atrelada a ela está à capacidade psíquica para essa realização, bem como a força interior em sua alma para suportar as exigências desta ação.

Abrimos um parêntese para comentar a respeito da unicidade que a autora traz em seu pensamento do corpo, da alma e do espírito humano. Para ela, não somos somente corpo, ou somente alma, ou somente espírito, mas cada homem e mulher são íntegros, trazendo em si todos esses componentes. Elucida melhor sobre isso, o Prof. Juvenal Savian Filho:

Para Edith Stein, porém, o ser humano não é a soma de um corpo, uma alma e um espírito (mente, intelecto ou qualquer outro nome que se queira). O que ela chama de corpo (a materialidade), alma (força vital) e espírito (vigilância e abertura, capacidade de sair de si, permanecendo em si) não são ‘partes’ justapostas de um todo, mas dimensões de um ser uno, o ser humano. O corpo humano não é matéria animada por uma alma; é um corpo de uma alma, um corpo típico de ser humano, dotado da possibilidade de ver-se a si mesmo e ver a alteridade (2018, p. 29).

Edith Stein traz o conceito de “espécie” não como sinônimo da espécie humana (homem e mulher) no geral, mas tal conceito é representado como essa “marca homogênea” que envolve cada ser masculino e feminino, em suas formas de ser distintas. Podemos enxergar melhor isso no seguinte fragmento: “[…] à espécie feminina corresponde à unidade e a integridade de toda a personalidade psicofísica, o desenvolvimento harmonioso das forças; a espécie masculina se destaca pela potencialização máxima de forças isoladas” (1999c, p. 206). E mais adiante completa:

Segundo a minha convicção, a espécie humana se desdobra na espécie dupla de homem e mulher, de modo que a essência do ser humano, em que não deve faltar nenhum traço de um ou de outro lado, se manifesta de dupla maneira revelando-se a marca específica em toda a estrutura do ser (Ibid.).

Edith Stein traz uma diferença específica do comportamento das forças masculinas e femininas, enquanto que a primeira tem a sua potencialidade mais impulsionada em campos mais restritos ou até mesmo em um único campo, a feminina se desenvolve de forma mais harmoniosa, no todo.

Nisso, podemos concordar com Prof. Juvenal Savian Filho, quando diz: “O homem, por sua vez, […] tende a concentrar-se na objetividade das relações, conseguindo a proeza de distinguir aquilo que a mulher vive de maneira intrinsecamente unida, quer dizer, aspectos físicos, psíquicos e espirituais” (2018, p. 28). Ou seja, enquanto na estrutura da mulher existe essa harmonia, essa união das forças, voltada para o todo, no homem existe um olhar mais objetivo voltado para as coisas isoladas.

Ao dizermos que o homem tem a sua vocação primária no domínio para com a terra queremos dizer que, dentro da família, ele exercerá essa responsabilidade sendo o “cabeça da família”. E como este, ele possui a obrigação de auxiliar a sua família no desenvolver de seus dons e potencialidades, assumindo também um compromisso fundamental para com as suas vidas, como bem diz a autora:

[…] será função dele dirigir essa pequena imagem do grande corpo místico, para que cada membro possa nele desenvolver plenamente seus dons e alcançar a redenção. O homem não é Cristo, nem tem o poder de conceder dons. Mas tem o poder de desenvolver os dons existentes (ou de sufocá-los), na medida em que um ser humano é capaz de ajudar ao outro a desenvolver seus dons. Sua sabedoria consiste em contribuir para que esses dons não definhem e, sim, se desenvolvam para a redenção do todo (STEIN, 1999a, p. 85).

O que Edith Stein quer dizer então quando coloca o homem como o “cabeça da família”?  Observamos que dizer que o homem é o cabeça da família automaticamente incluímos a ele a responsabilidade de um cuidado e proteção (não somente material ou meramente superficial) para com seus filhos e sua esposa, mas a devida atenção para com o crescimento de cada um, dando suporte e apoio aonde for necessário, interferindo também quando for preciso e dando total liberdade para que todos os dons e forças que despontem em seus familiares possam crescer da melhor maneira possível. Ou seja, ele é o responsável pelo desenvolvimento de todos. No entanto, para fazer tudo isso, não esquece a autora de lembrar que o homem precisa da ajuda de sua mulher, visto que em muitos casos, passará a cumprir melhor as suas obrigações trazendo-a para perto de si, escutando-a e ouvindo os seus conselhos: “Sua máxima sabedoria pode consistir em permitir que suas próprias imperfeições sejam compensadas pelos dons do membro complementar” (STEIN, 1999a, p.85)

Podemos ver então que os ensinamentos da filósofa têm coerência, visto que enxerga na vida de cada uma as responsabilidades que possuem de acordo com suas próprias potencialidades naturais, potencialidades que já nascem em suas “espécies”, próprias do ser homem e do ser mulher, conforme palavras de Ursula Matthias e Moisés Farias:

Edith Stein usa o conceito de espécie a modo próprio, para descrever aquilo que todas as mulheres têm em comum e todos os homens têm em comum, respectivamente. Isso de maneira alguma destrói o conceito de que tanto o homem como a mulher estão inseridos no conceito de que tanto o homem como a mulher estão inseridos no conceito de espécie humana, consagrado pela antropologia (2006, p. 191-192).

Ainda sobre o conceito “espécies”, o Prof. Juvenal Savian Filho também esclarece:

Ela [Edith Stein] pensa em modos de existir, em modos de ser totalmente individuais, embora a individualidade seja uma forma de realizar o que há de comum na espécie humana. A individualidade, numa palavra, contrai o universal da espécie em unidades tipicamente femininas e tipicamente masculinas (2018, p. 29).

Tais diversidades também podem serem atestadas na própria história da evolução humana na ciência biológica (quando verificamos a história da evolução humana os homens por conta do seu “porte físico” eram mais aptos para a caça e assim eram os responsáveis pela proteção e sustento da família e a mulher pelo seu físico apto para a amamentação dos filhos era responsável pelos filhos). Logo, podemos constatar que os estudos stenianos nos remetem ao “material da vida”, observando aquilo que faz parte da própria história humana e assim, o exalta, o enobrece, fazendo os seus leitores compreenderem que de fato, existe uma diferença entre os sexos e que dessas diferenças retiramos os seus papéis e funções específicos dentro da família natural.

O reconhecimento dessas diferenciações, não atrapalha, pelo contrário, ajuda tanto o homem quanto a mulher a se reconhecerem enquanto tais. Como comentam a Profa. Ursula Matthias e Moisés Farias: “A mulher, para Edith S., para ser mulher precisa reconhecer-se diferente do homem. Tal constatação, porém, em nenhum momento deve inferiorizá-la como ser humano” (2006, p. 200). Da mesma forma podemos dizer que o homem para ser homem precisa reconhecer-se diferente da mulher, como assim escreve a filósofa:

Só quem estiver ofuscado pela paixão da luta poderá negar o fato óbvio de que o corpo e a alma da mulher foram formados para uma finalidade específica. A palavra clara e incontestável da Escritura expressa aquilo que nos está ensinando a experiência diária, desde o início do mundo: a mulher é destinada a ser a companheira do homem e a mãe dos seres humanos. Para isso está preparado seu corpo, é a isso que corresponde igualmente sua peculiaridade física. A existência dessa peculiaridade psíquica é, outra vez, um fato evidente da experiência; mas, é também uma conclusão que se tira do princípio tomístico da anima forma corporis. Onde as forças são tão diferentes, deve haver também um tipo de alma diferente, apesar da natureza humana comum (STEIN, 1999b, p. 57).

Nesse parágrafo, vemos que Edith Stein remete o seu pensamento à objetividade da vida como é próprio do método fenomenológico, bem como a história da vida humana, e por último no princípio tomístico para fundamentar o seu pensamento de que homens e mulheres trazem em si características diversas tanto no corpo e em suas estruturas psíquicas.

Para a filósofa, podemos dizer que existem então dois “modos de vidas” do ser humano que se desenvolvem no ser homem e no ser mulher (e dentro deles muitos outros que são trazidos por sua individualidade), no entanto, é preciso tomar cuidado para que tais conceitos não sejam enrijecidos ao ponto de dizermos que homens e mulheres nascem com todas as suas características prontas. Por isso, concordamos com o Prof. Juvenal Savian Filho, quando afirma:

Por outro lado, não é porque parece coerente falar de alma feminina que se tem fundamento para afirmar que todas as mulheres desenvolverão necessariamente especificidades femininas, pois suas almas podem ser mais masculinas, valendo o inverso para os homens. Mas não parece justo, segundo Edith Stein, cair no reducionismo da identificação pura e simples entre natureza feminina e natureza masculina (2018, p. 32).

   Ou seja, apesar de estarmos falando aqui das características que se desenvolvem claramente de formas distintas entre os sexos, não podemos enquadrar a existência humana nesses conceitos, não só pelo conhecimento de que cada um é único, ou seja, tem a sua particularidade própria e o seu modo único de ser, mas também porque um homem pode desenvolver em si características femininas e vice-versa. Sem que isso seja um problema, pelo contrário, o complemento de suas existências enriquece a humanidade como um todo.

Como vimos anteriormente, a vocação primária da mulher é definida pelo dom de sua maternidade, ao passo que a do homem se define pelo seu domínio em relação à terra. Na vocação secundária, a mulher tem a sua participação nesse domínio terrestre. Desse modo, a mulher auxiliará o homem em todas as suas atividades ao passo que o homem irá também exercer a sua paternidade, auxiliando a mulher no crescimento sadio de seus filhos:

[…] sob esse aspecto, destaca-se com bastante clareza a complementariedade do homem e da mulher, prevista pela ordem original da natureza: no homem aparece em primeiro lugar a vocação dominadora e, em segundo lugar a da paternidade (que não é nem subordinada nem complementar à dominação, devendo antes ser integrada a ela); na mulher a vocação à maternidade que predomina, enquanto a participação no domínio aparece como secundária) (STEIN, 1999a, p.92).

Isto exposto, podemos dizer que o pensamento da autora forma um todo coerente capaz de nos fazer vislumbrar aquilo que seria o tema central desse trabalho: a família vista à luz do pensamento de Edith Stein dada pela complementariedade dos sexos. Onde as suas vocações mesclam-se em um único todo, formando assim a unicidade da estrutura familiar.

Por terem suas diferenças como complemento um para o outro, descobrimos que com o passar do tempo, na medida em que crescem em unidade e santidade tais características vão sendo apreendidas do homem para a mulher e vice e versa como nos afirma à filósofa:

Por isso, verificamos em homens santos a suavidade e bondade feminina e uma preocupação verdadeiramente maternal com as almas que lhes são confiadas, e em mulheres santas encontramos coragem, proficiência e determinação masculina (1999a, p.103).

Ou seja, na vida comunitária, na família, por exemplo, ambos adquirem e aprendem a desenvolver em si as qualidades naturais do outro por terem como objetivos de suas vidas um objetivo comum que é a santidade, a semelhança cada vez mais próxima de Cristo, de forma que tais diferenças vão sendo superadas ao longo do caminho. Assim, a mulher aprenderá com o homem a sua firmeza e objetividade e o homem aprenderá com a mulher a capacidade de ser terno e a importância do outro.

A partir disso, podemos enxergar que o convívio social entre eles se torna quase que necessário para a sua humanização. A mulher com a sua facilidade de olhar para a importância do todo, humanizará o homem, bem como o homem a ajudará a não cair em seus excessos, a ensinando os caminhos da objetividade.

 

6   Os desvios de suas capacidades

Porém, é necessário que ambos saibam utilizar bem e não de forma exagerada os seus dons, tendo um devido equilíbrio para com essas qualidades naturais, pois, ao mesmo tempo em que tais características contribuem para o seu desenvolvimento vocacional, humano e familiar, podem ser também causas de grandes males para eles e para toda a família.

Para que possa ter um amor equilibrado pelas pessoas de modo que não recaia em excesso naquilo que é próprio de sua natureza feminina quando se trata do zelo pelo seu marido e pelos seus filhos, é importante que cada mulher tenha um trabalho específico seu. Dessa forma, defende a autora: “Para contrabalançar naturalmente essa tendência perigosa de se dedicar excessivamente à vida dos outros e nela se perder recomenda-se o trabalho próprio, só que esse acarreta por sua vez o risco oposto de trair a sua vocação feminina” (1999a, p. 97).

Recomenda-lhe o trabalho próprio como remédio para combater a tendência feminina de uma atenção exagerada à vida dos outros a ponto de perder a si e a própria individualidade do seu ser. Desse modo, se torna fundamental que a mulher também exerça trabalhos capazes de cultivar a sua própria individualidade, de modo que não paralise a sua vida no cuidado para com os outros, levando uma vida exclusivamente em função disso.

Deve trabalhar, porém, sem que esse trabalho se torne o centro de sua vida, acima de sua família e da educação dos seus filhos. Torna-se necessário assim a construção de uma vivência equilibrada de modo que não possa cair em excessos, tanto em suas funções trabalhistas quanto nas que comportam o seu meio familiar, como alerta a Adson Silva em seu texto “O sentido da pessoalidade da mulher em Edith Stein”:

[…] a inserção da mulher na vida social não pode ferir sua essência – o que Edith Stein chama de natureza – ao ponto de comprometer aquilo que faz parte de sua pessoalidade, isto é, o amor, acolhimento. Ao mesmo tempo isso não pode ser pretexto para que a mulher não tenha seu direito ao exercício social reconhecido (2014, p. 35).

É importante notar que tanto em relação ao homem quanto em relação à mulher, a autora defende que os trabalhos externos precisam ser de forma que não atrapalhem o exercício de suas vocações dentro de casa, demonstrando que aquilo que é importante (como o trabalho) não deve nunca superar o que é essencial (as suas vocações à paternidade e à maternidade) em suas vidas. Ou seja, Edith Stein não desconsidera a importância de seus trabalhos profissionais, os considerando, inclusive, necessários para ambos, entretanto, alerta que o trabalho não pode nunca atrapalhar a convivência da vida familiar.

Assim, para a filósofa, a realização da plenitude das forças femininas não deve ser resumida apenas aos seus trabalhos domésticos, o que a história e os acontecimentos do século passado com a saída das mulheres de suas casas já mostraram, sendo necessário que a mulher também tenha outros trabalhos capazes de desenvolverem suas outras habilidades pessoais, e isto tanto para o seu próprio bem quanto para o bem de sua família.

Igualmente o homem, assim também como a mulher, possui em si o risco de tomar posse das coisas de uma forma desequilibrada e sem limites. E quando o seu desejo não é freado, pode avançar sobre todas as coisas não respeitando os limites que a natureza lhe impõe, desejando saber de tudo de uma forma desenfreada; o que o impede de desfrutar contemplando a riqueza própria e o mistério das coisas que lhe foram dadas. Sobre isso, escreve Edith Stein:

Em consequência da natureza corrompida, até mesmo o empenho unilateral se transforma facilmente em empenho degenerado: o conhecimento não para respeitosamente diante dos limites que lhe são impostos, antes tenta rompê-los à força; ele frustra até o acesso ao que não lhe é vedado em princípio porque se nega a aceitar as leis das coisas tentando apoderar-se delas de uma maneira arbitrária ou deixando que desejos e anseios lhe turvem a clareza de seu olhar espiritual. Analogamente, impõe-se na relação com os bens materiais uma certa senhorilidade degenerada; em vez de alegria reverente, com a criação a ser conservada e desenvolvida, verifica-se uma exploração ávida que chega às raias da destruição ou um apossamento irracional que impede que os bens adquiridos sejam desfrutados da maneira adequada (STEIN, 1999a, p. 89).

Nesse trecho talvez possamos enxergar uma crítica à atitude de milhares de homens que, ao longo dos séculos, empolgados pela exploração de novas terras e pela riqueza que os trariam, destruíram milhares de faunas e floras. Ou seja, em vez de ser, por assim dizer, “rei de todas as coisas da terra”, e de exercer de forma adequada o seu domínio, o homem pode atrofiar essa capacidade natural em meras ações de brutalidade e desrespeito diante à própria natureza.

Tal degeneração também pode vir a acontecer em seu relacionamento com sua mulher, como atesta o mundo de hoje, onde vemos acontecer milhares de casos de violência verbal e física dos homens para com as mulheres. Assim, a relação que era para ser de companheirismo entre ambos é transformada em relação de domínio e sujeição. Nesses casos, a mulher é vista apenas como um meio para um fim, ou seja, para obtenção de desejos, tal como também se perde de vista a importância de seus dons naturais.

Se o homem retirar as possibilidades de sua mulher de expandir os seus dons, ele mesmo também será responsável por todos os desvios e consequências que poderá ocorrer com ela. Pois faz parte de sua vocação a responsabilidade por sua mulher no sentido de auxílio e proteção para que a mesma não decaia em algumas consequências como o “definhamento de uma vida mais elevada, por distúrbios doentios, por uma fixação excessiva no marido e nos filhos e que estes passam a sentir como peso e pelo vazio que lhe restará quando um dia ficar sozinha” (STEIN, 1999a, p. 95).

Cabe também ao homem ajudá-la não somente por ser essa “a sua responsabilidade”, como “cabeça da família”, mas também porque possuindo a mesma natureza humana, quando um sexo é prejudicado ou atingido na sua própria integridade toda a natureza também se torna ameaçada. Colocar “em jogo” o valor das mulheres com qualquer tipo de violência que venha a ser exercida é concomitantemente retirar de si o seu próprio valor. Confere-se isso na seguinte frase de João Paulo II: “Efetivamente, em todos os casos em que o homem é responsável de quanto ofende a dignidade pessoal e a vocação da mulher, ele age contra a própria dignidade pessoal e a própria vocação” (PAULO II, 1998). A filósofa ainda atesta que nessas circunstâncias, onde há dificuldade entre ambos:

Recomenda-se a cooperação, de modo que a mulher pudesse desenvolver seus dons ao lado do homem a serviço de objetivos comuns, e que o homem fosse preservado dos excessos de unilateralidade em virtude do desenvolvimento mais harmonioso das forças da mulher (STEIN, 1999a, p. 89).

Sendo assim, podemos ver que de acordo com essa desigualdade existente entre o homem e a mulher, ambos se fazem dependentes um do outro. Trata-se então da busca e do anseio do coração de ambos por uma relação de equilíbrio, complementariedade e força de união, para que nem ele nem ela possam recair sobre o cônjuge com um desejo de dependência e escravidão deformando assim a beleza do relacionamento.

   Ainda sobre essa rivalidade existente entre os dois sexos, Adson Silva comenta sobre “as novas tendências na abordagem dos assuntos referentes à mulher”:

Uma das primeiras tendências sublinha fortemente a condição de insubmissão da mulher, procurando criar-lhe sempre uma atitude de contestação: a mulher, para ser ela mesma, apresenta-se com ideias incompatíveis às do homem. Esse é um processo que leva a uma rivalidade entre os sexos, através do qual a identidade e o papel de um são assumidos em prejuízo do outro, com a consequência de introduzir na antropologia uma nociva confusão, que tem o seu revés mais imediato e nefasto na estrutura da família […] (SILVA, 2004, p. 44).

Sabemos que a solução para os problemas existentes entre ambos não encontra autenticidade nesse caminho de rivalidade, onde a mulher, para provar que tem os mesmos valores e dignidade que o homem precisa se apresentar sempre o contestando ou até mesmo criando uma imagem generalizada e negativa do seu ser, como alguns pensamentos populares que dizem que “todo homem é ruim”; da mesma forma que o caminho para acharmos uma solução não encontra a sua resposta na tentativa extremada de igualdade anulando toda e qualquer diferença existente entre ambos, mas sim no respeito por suas diferenças e no reconhecimento por sua dignidade humana.

No contexto dessa reflexão, concordamos com o Prof. Juvenal Savian Filho quando afirma que “Edith Stein sabia bem que o mais importante era defender a igualdade de dignidade e direitos entre homens e mulheres, mas não às custas de um aplainamento das variações ônticas” (2018, p. 32). Sabemos que na ciência filosófica o ôntico se refere ao ser e as suas características, então a ideia que o autor traz nessa frase é a afirmação de que Edith Stein defendia a igualdade de direitos para os sexos, mas que a defesa steniana não partia por uma tentativa exagerada de igualar o ser de ambos, excluindo qualquer diferença entre eles, afinal, a filósofa não temeu em clarificar com muita precisão em seus estudos essas divergências.

Por fim, o relacionamento do casal também se desemboca no trabalho educacional para com os seus filhos, isso quer dizer que também dependerão um do outro para realizar o cuidado destes:

A degeneração do relacionamento ente homem e mulher está ligada à degeneração das relações com a descendência. Originalmente, a reprodução era tarefa conjunta de ambos. Se a sua constituição desigual os faz dependerem da complementação mútua, mas ainda repercute essa necessidade de complementação na relação com os descendentes […]  (STEIN, 1999a, p. 90).

Dessa forma, quando a relação de ambos estiver deformada ou sofrendo por causa de seus excessos, isso também acarretará em consequências prejudiciais na sua relação com os a educação de seus filhos.

 

Considerações finais

Embasando-se no olhar fenomenológico tomista daquilo que a experiência viva pode nos ensinar, bem como no decorrer dos acontecimentos históricos à luz da palavra divina, Edith Stein chega a tais conclusões, conclusões essas que serviram e servem até hoje para milhares de pessoas que desejam desbravar os caminhos do ser masculino e feminino e o seu relacionamento dentro da família. De tal forma, concordamos com o Prof. Juvenal Savian Filho quando afirma referente ao pensamento steniano, que “seja como for, o motor de sua antropologia filosófica era, sem dúvida, chegar ao que distingue mulheres e homens para superar as desuniões práticas que se interpõem entre eles e para propor uma visão mais coesa do ser humano” (2018, p. 33).

Sendo assim, podemos chegar à conclusão de que “no dizer de Edith Stein, os indivíduos têm em comum tudo o que é próprio da espécie humana, mas vivem de um modo inteiramente único aquilo que é comum” (SAVIAN FILHO, 2018, p. 31-32). Por causa do seu ser feminino a mulher terá como responsabilidade principal o exercício de sua maternidade e o homem por sua vez, tem por responsabilidade a dominação sobre as coisas da terra, e como vocação secundária a mulher tem a responsabilidade de participar desse domínio ao lado dele, e o homem tem o seu dever da paternidade ao lado dela. Mas ambos possuem a mesma vocação de serem imagem e semelhança de Deus, de dominarem a terra e de gerarem filhos.

Com Edith Stein, constatamos que mesmo possuindo uma natureza humana e uma tríplice vocação em comum, homens e mulheres possuem, por sua vez, prioridades distintas principalmente no seio familiar. Prioridades essas que correspondem ao seu próprio ser masculino e feminino, mas que vão se complementando.

 Podemos reconhecer também que suas diferenças (corporais, psíquicas e espirituais) trazem uma necessidade de complementação, visto que os dons que as mulheres possuem naturalmente, os homens não possuem e vice-versa. E somente andando juntos é que ambos podem aprender um com o outro. E as suas diferenças apontam um caminho único pelo qual se abre toda oportunidade de companheirismo na relação familiar. A colaboração harmoniosa entre homem e mulher acontece de forma principal e fundamental para a sociedade nas famílias e assim, se tornam necessários auxiliadores um para o outro.

Configurando seu pensamento na passagem bíblica: “Já não se distingue judeu e grego, escravo e livre, homem e mulher, pois com Cristo Jesus sois todos um só” (Gal3, 26-28) (cf. 1999a, p.97), Edith Stein vai nos mostrar que sendo Cristo a busca e realização de todo ideal humano, quanto mais progridem em seu caminho de santidade, mais ainda homem e mulher anulam as suas próprias imperfeições. Dessa forma, as diferenças entre homens e mulheres acabam ficando em uma espécie de “segundo plano”.

 

Referências

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[1]Edith Therese Hedwing Stein nasceu no ano de 1891 na cidade da Alemanha, em Breslau, em uma família judia. No entanto, com o passar dos anos foi se distanciando da religião na qual havia sido criada. Em 1913, Edith Stein se muda para Gottingen, onde será acolhida em um círculo de estudos que almejava aprofundar um novo pensamento que começava a desabrochar na época: a fenomenologia, desenvolvida pelo filósofo Edmundo Husserl. Edith Stein se aproxima do seu pensamento, tornando-se sua discípula e posteriormente sua assistente. E também se apaixonando por suas obras. Posteriormente, também se envolverá com grande admiração pelo pensamento de São Tomás de Aquino (1225-1274), fazendo uma complementariedade entre a filosofia de ambos os pensadores. Depois de converter-se ao cristianismo, a filósofa abandona a sua carreira acadêmica aos 42 anos e pede para entrar no Carmelo, de onde continuará escrevendo suas obras. Por fim, aos 51 anos é levada para o campo de concentração nazista, de onde tem a sua vida retirada.

 

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