Os dois espíritos da arte e a inversão de valores do cristianismo

 Revista Sísifo. N° 12, Julho/Dezembro 2020. ISSN 2359-3121. www.revistasisifo.com

Emanoel Luís Roque Soares - Prof. associado II, da UFRB/CFP, prof. do mestrado profissional em História da África UFRB. Ph.D. em educação UFC/FACED/2019, Ph.D. em Educação UFPB/FACED/2012, doutorado UFC/FACED/2008, mestrado UFBA/FACED/2004, especialização UFBA/FACED/2001. Bel em Filosofia UCSAL/1999. emares@ufrb.edu.br  http://lattes.cnpq.br/3011122221

 


 

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RESUMO O presente artigo traz uma visada nietzscheana e na história da estética e a tentativa de resgatar o momento do declínio da tragédia Ática e suas consequências, tanto para as artes como para as ciências, nos dias de hoje. É também importante como resgate no sentido de atentarmos à presença dos dois espíritos da obra de arte (Dionisíaco e Apolíneo), elementos essenciais para todos, que trabalham com arte e educação, além de tratar das influências morais do fim da tragédia Ática, reafirmando que a ética e a estética andam juntas. Revelando que os princípios estéticos socrático e platônico reduzem a arte a um racionalismo inteligível, consciente e bom que mataram a tragédia e inauguram um novo período previsível, racional, de pouca sensibilidade corpórea e de muita moralidade, é que empurram para fora da arte, a embriaguez dionisíaca e o sonho apolíneo, que se complementa com a inversão de valores do cristianismo religião mórbida e ascética que nega a vida e inverte os valores da humanidade.

 

Palavras-chave – arte, moral, embriaguez, inversão de valores, cristianismo

 

INTRODUÇÃO

 

Em dois momentos da história da humanidade acontece uma arrefeção do espírito humano e em ambos os momentos, tanto a arte quanto a ciência sofrem consequências desastrosas, pois é necessário, para ambas, vigor e potência, de modo que gere um ambiente de harmonia dos contrários, onde sempre ocorrerá intervertimentos que inclua sem perdas, sem dicotomias, para que  arte e ciência floresçam com o esplendor humano.

Para o verdadeiro espírito criador do artista é necessário o enlaçamento de dois deuses em harmonia, da mesma maneira que para uma razão forte e virtuosa exigida nas descobertas científicas é necessária uma inversão total dos valores de escravos que fomos submetidos pelo cristianismo, pois nem a individualização apolínea, nem a moral dos submissos são capazes de despertar a arte ou revitalizar as ciências.

Precisamos, pois reencontrar estes elos perdidos, acordar o espírito dionisíaco que adormece escondido em algum lugar excluso, sem, é claro, abrir mão do Apolíneo, além de libertarmos nossos espíritos da estupidez ascética do cristianismo, para que, assim, possamos ser espíritos livres e voarmos alto acima do bem e do mal, homens fortes, ou melhor, super-homens que somos.

Que este olhar lançado sobre o mundo helênico e o cristianismo nos sirva para que possamos compreender a necessidade dos opostos na vida humana, que nos mostre a verdadeira existência da vida humana sem pecados, desde quando tudo quanto é ato dos homens não pertencem a divindades e, sim, ao próprio homem que traz consigo a ideia do divino, do qual ele – o homem – é o inventor.

Um outro aspecto deste escrito é mostrar como uma religião ascética é capaz de perverter, ou melhor, inverter valores que diminuem a potência humana em nome do poder de uma instituição, ou como diria Nietzsche, inventou-se o pecado para submeter o homem a padres.

Não poderíamos deixar de falar e mostrar, também, o perigo que a surda revolução de escravos traz aos homens livres, pois todo excesso de humildade tem cheiro de falsidade e essa humildade falsa é sedenta de poder, que em nome de nosso Senhor Jesus Cristo já se matou, saqueou, proibiu o crescimento e florescimento da humanidade, gerou os preconceitos de gênero, raça e credo. Pois, o cristianismo, hoje, ressentido e que, através da igreja, nos pede perdão, foi até pouco tempo atrás, o pior carrasco da humanidade e o protestantismo em nome de Cristo vem extorquindo os pobres de todo o mundo, tornando-se uma praga à proliferação das igrejas protestantes que vendem a salvação instantânea, no meio da população excluída financeiramente e carente de investimentos sociais.

Nós, pensadores livres, não podemos deixar de combater todos os dualismos maniqueístas e maneiras de exploração da humanidade, sobre pena de deixarmos amolecer o espírito e o vigor do homem.

Mostrar percursos estéticos que possam nortear as ciências para proveito e prazer humano é também função do homem livre, que busca o voo alto para melhor observar a si próprio e compreender a sua existência.

É sem dúvida na tragédia ática que podemos encontrar ao mesmo tempo os espíritos apolíneo e o dionisíaco, pois é na cultura helênica que estes dois espíritos estão engendrados, fundidos em um só, lado a lado, em constantes contendas que são a gênese da criação das mais belas obras de artes plásticas (apolínea) e musical (dionisíaca), é do exercício do antagonismo que nasce o belo e forte na arte, assim como, na dualidade dos gêneros se concebe a vida, pois é deste misto de guerra e paz, bem e mal, masculino e feminino, verdade e falsidade, erro e acerto não só da lógica ou matemática ou da embriagues que se promove a criação estética, é sim deste conflito antagônico, dos diferentes, pois sem este duplo caráter não haviam batalhas nem  caos gerador.

Deste modo, podemos ver que no artista, ou melhor, no gênio criador estão contido estes dois princípios e que não é a sua maneira geometrializada  de pensar, nem tão pouco a sua forma racionalista de problematizar que é gerada a obra de arte e, sim o seu conflito interior, seu deus e seu diabo que são imprescindíveis na geração de tal evento.

Para percebermos a distinção entre os dois espíritos tomaremos assim como Nietzsche duas atividades da vida humana e fazendo a analogia entre elas evidenciaremos as suas vicissitudes e diferenças. O primeiro, o apolíneo, que é um espírito do mundo dos sonhos e o segundo, o dionisíaco, o espírito da embriaguez, como já dissemos antes, dois instintos diferentes que se completam, que necessitam um do outro, para juntos poderem atingir a perfeição, das mais puras manifestações artísticas, capazes não só de transmitir um prazer estético pleno a quem as apreciam, mas, também, de dar sentido as suas vidas cotidianas, além de eternizarem este fenômeno antagônico e bipolar da criação da obra de arte.

É, no mundo dos sonhos da psique onde aparecem as imagens cheias de ilusões que se manifesta o espírito apolíneo, pois o mesmo carece de interpretações, diz Nietzsche:

A bela aparência do mundo do sonho, em cuja produção cada ser humano é um artista consumado, constituía precondição de toda arte plástica, mas também, como veremos, de importante metade da poesia. Nos desfrutamos de uma compreensão imediata da figuração, todas as formas nos falam, não há nada que seja indiferente e inútil. Na mais elevada existência dessa realidade onírica temos ainda, toda via, a transluzente sensação de sua aparência: pelo menos tal experiência, em cujo favor poderia aduzir alguns testemunhos e passagens de poetas. (NIETZSCHE, 2001, p.28)

 

Na verdade, todo homem com um pouco de imaginação que seja, desconfia e alguns até creem não ser esta realidade por nós vislumbrada a nossa verdadeira realidade. Segundo o próprio Nietzsche, a primeira não passa de uma aparição da segunda, quer dizer, é uma máscara para velar a segunda, e desta maneira, é o sonho uma máscara que vela o real e nos deixa intrigados e perplexos perante a nossa própria existência.

Para o artista grego é necessário um estudo detalhado do mundo dos sonhos para que, através desta investigação ele possa descobrir suas estruturas internas, suas imagens e tudo que é de belo, alegre, feio, triste, etc., que o sonho encobre em seu interior. Viver o sonho é uma condição sine qua non na vida do artista que prazerosamente desfruta das novas formas e imagens contidas neste para originar suas obras. O sonho é também necessidade do homem comum, pois sem ele não se reinventaria a vida, tornando-a monótona, desprovida de novas invenções ou descobertas, sem expectativas para o desvelar.

 

Sim, poder-se-ia dizer de Apolo que nele obtiveram a mais sublime expressão a inabalável confiança nesse principium e o tranquilo ficar aí sentado de quem nele está preso, e poder-se-ia inclusive caracterizar Apolo com a esplêndida imagem divina do principium individuationis, a partir de cujos gestos e olhares nos falam todo o prazer e toda a sabedoria da “aparência”, juntamente com a sua beleza. (NIETZSCHE, 2001, p.30).

 

     Assim, tanto para Nietzsche como para Schopenhauer, é este excesso de confiança em si mesmo, esta passividade com determinação que caracteriza a individualidade apolínea que provoca pavor no homem perante a derrota frente aos fenômenos, pois o apolíneo não está preparado para perder de tão alto confiante que é,  não admiti exceção perante sua derrota, dada sua necessidade da fusão com o espírito dionisíaco o que configura as dificuldades encontradas pelas artes, ciências, etc., quando se afastam do sensível, da possibilidade, do erro, da condição humana em nome da razão perfeita, inequívoca das aparências, confiante e individualista.

Para melhorar a nossa compreensão, vejamos as características do espírito dionisíaco que se apodera dos homens como força de vontade de potência, vontade de renovação, que traz o homem para um convívio consigo mesmo e com a natureza, gerando assim, a libertação do escravo e proclamando a harmonia, divinizando o homem, levando-o a ter atitudes de um Deus que antes este só via em sonhos e agora está livre, devido ao estado de torpor, de embriaguez que transforma o artista na sua própria arte.

Assim é Dionísio ou Baco, o Deus do drama, da dança, da música, do sofrimento, do instinto de aventura e da inspiração, da reprodução, do vinho, da vida superior, do prazer pela ação e da emoção arrebatada. Dionísio, um Deus estrangeiro, que penetra no mundo helênico para dar-lhe o verdadeiro sentido da arte. Segundo Nietzsche, a melhor analogia para compreendermos o estado dionisíaco é a embriaguez e a orgia, a beberagem com a qual todos os povos cantam e se reproduzem primaverilmente, sem pudores, humanizados a tal ponto, narcotizados a tal modo que o escravo se torna livre.

O culto da religião dionisíaca trazia novos valores para a Grécia, que punha em xeque a individualização apolínea, o conhece a ti mesmo promovendo a reconciliação do homem com a natureza, com os outros homens e com o universo. Em vez do eu interior, ressentido, acanhado o dionisíaco era orgulhoso e expansivo.

E, uma das características do povo grego foi a de misturar arte e religião dando importância a ambas para suas vidas, pois está contido na arte e na religião a relação entre a força e a fraqueza. Deste modo, Nietzsche baseado na arte trágica e no politeísmo virtuoso, alegre, das majestosas figuras que compõem a religião grega, vai criticar os valores decadentes do mundo moderno, entre os quais o cristianismo, as ciências e a própria arte.

Diz Nietzsche:

Quem, abrigando outra religião no peito, se acercar desses olímpicos e procurar neles elevação moral, sim, santidade, incorpórea espiritualização, misericordiosos olhares de amor, quem assim o fizer, terá logo de lhes dar as costas, desalentado e decepcionado (NIETZSCHE, 2001, p.35)

 

Aqui, pois estão postos os dois espíritos que nascem da natureza, sem a necessidade da intervenção do homem, próximos e satisfeitos por si só, isto é, um completando e satisfazendo ao outro.

O espaço para a manifestação de um dos espíritos concebido para Nietzsche e o mundo dos sonhos que é da imaginação cuja perfeição não depende de modo algum do valor intelectual ou da cultura artística do indivíduo e o outro espaço o da realidade subjetiva da embriaguez que de certa maneira não se preocupa com o indivíduo, perante até a aniquilação do indivíduo e libertadora por um sentimento de identificação mística.

E assim, perante as manifestações destes fenômenos para Nietzsche todo artista é um imitador da natureza, pois tanto Apolo como Dionísio se manifestam sem a ajuda do homem, ou melhor, estão na natureza para serem observados e imitados e ambos aparecem indissolúveis na tragédia grega.

Deste modo, o artista dórico observa a natureza e cria a partir destas duas realidades o sonho apolíneo e a embriaguez dionisíaca, pois são estes os instintos da arte que entre os gregos se desenvolveu, tornando-se assim relação do artista helênico com os seus arquétipos ou, segundo a expressão aristotélica, a «imitação da natureza». (NIETZSCHE, 2001, p.32)

Como se deu esta fusão na cultura Helênica? Segundo Nietzsche, Dionísio vem do mundo bárbaro, é um Deus estrangeiro como já foi dito anteriormente, suas festas eram festas do vinho e do sexo, seu estereotipo é o sátiro com barba e parte inferior de bode.

Quase por toda parte, o centro dessas celebrações consistia numa desenfreada licença sexual, cujas ondas sobrepassavam toda vida familiar e suas venerandas convenções; precisamente as bestas mais selvagens da natureza eram aqui desaçaimadas, até alcançarem aquela horrível mistura de volúpia e crueldade que a verdadeira “beberagem das bruxas” sempre se me afigurou ser.  (NIETZSCHE, 2001, p.33)

 

Para os gregos, isto é o que tinha de mais bárbaro e grotesco, o brutal, o de menos civilizado possível e segundo o próprio Nietzsche durante muito tempo Dionísio foi combatido por Apolo e não conseguiu penetrar na cultura grega durante o período de arte dórica. Porém, no período helênico tornou-se difícil e quase impossível esta proteção, pois o espírito dionisíaco havia se enraizado nas profundezas da cultura, que começou a dar vazão a tais instintos.

Apolo, que já não podia combater Dionísio reconciliou-se com este, porém as diferenças e o “abismo” existentes entre eles continuam a existir. Diz Nietzsche:

Mais perigosa e até impossível tornou-se a resistência, quando, por fim, das raízes mais profundas do helenismo começaram a irromper impulsos parecidos: agora a ação do deus délfico restringiu-se a tirar das mãos de seu poderoso oponente as armas destruidoras, mediante uma reconciliação concluída no devido tempo (NIETZSCHE, 2001, p.33).

    

E deste modo, é feita a fusão mais importante da cultura grega, tanto para a arte, como para sua religião e, consequentemente, para as ciências.

E esta reconciliação, esta união com fronteiras, estes juntos, porém distintos, esta troca de favores, esta interversão, respeito, as diferenças que vão fazer surgir no mundo grego a potência dionisíaca que invade a arte grega com delírio e alegria das festas libertas dos homens e nestas festas a individuação apolínea é eliminada para tornar-se arte, é também a crueldade dionisíaca se torna importante. Deste modo, os dois espíritos perdem suas características principais para dá lugar a mistura. Diz Nietzsche:

Aquela repugnante beberagem mágica de volúpia e crueldade viu-se aqui impotente: somente a maravilhosa mistura e duplicidade dos afetos do entusiasta dionisíaco lembra – como um remédio lembra remédios letais – aquele fenômeno, segundo o qual os sofrimentos despertam o prazer e o júbilo arranca do coração sonidos dolorosos (NIETZSCHE, 2001, p.34)

 

E assim, estão desfeitas as aparências do mundo apolíneo, ou melhor, o cântico das festas dionisíacas faz cair o véu dos mundos dos sonhos, pois toda realidade é dionisíaca, é vontade de potência.

 Os gregos, fortes em seus instintos, encontram esta força na mistura entre intensa sensibilidade para o sofrimento (o trágico) e uma magnífica sensibilidade artística (otimismo). Esta sensibilidade intensa e o otimismo colocavam em risco o povo grego, de modo que somente após a fusão com o pessimismo trágico dionisíaco o povo grego vem superar este problema existencial. Este pessimismo fez-se necessário devido a viverem da aparência gerada pelo espírito apolíneo e sua imagem de perfeição da existência que o próprio grego criou quando imaginou a perfeição do Olimpo, um mundo de sonhos onde tudo é divino, tanto o bem como o mal, onde não existe lugar para obrigações, e sim exuberância e luxo, vitalidade e triunfo, uma imagem de perfeição da existência, um véu, a aparência da realidade.

Podemos ver que esta condição pessimista se junta ao dionisíaco grego através do personagem lendário, o sábio Sileno, mudando de enfoque quando acrescido ao espírito apolíneo a sátira dionisíaca.

Reza a antiga lenda que o rei Midas perseguiu na floresta, durante longo tempo, sem conseguir capturá-lo, o sábio SILENO, o companheiro de Dionísio. Quando, por fim, ele veio a cair em suas mãos, perguntou-lhe o rei qual dentre as coisas era a melhor e a mais preferível para o homem. Obstinado e imóvel, o demônio calava-se; até que, forçado pelo rei, prorrompeu finalmente, por entre um riso amarelo, nestas palavras: - Estirpe miserável e efêmera, filhos do acaso e do tormento! Por que me obrigas a dizer-te o que seria para ti mais salutar não ouvir? O melhor de tudo é para ti inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser. Depois disso, porém, o melhor para ti é logo morrer. (NIETZSCHE, 2001, p.36)

 

 Satirizando o seu próprio sofrimento, ou melhor, acrescentando o espírito dionisíaco ao apolíneo os gregos saem do pessimismo existencial criando otimismo trágico e assim os gregos conheceram e sentiram as angústias e os horrores da existência: para lhe ser possível viver teve de gerar em sonho o mundo brilhante dos deuses olímpicos tornando esta arte e religião mais humana. A sabedoria popular uniu sua vida cotidiana ao Deus mais humano da embriaguez, Dionísio, capaz de rir da própria existência, e justificando a existência do mundo, através do fenômeno estético, de maneira que o artista passa a ser uma espécie de Deus, porém, um Deus não moralista, para quem a criação ou a destruição, o bem ou o mal, sejam manifestações, do seu arbítrio indiferentes e da sua onipotência. O grego com seus dois estados de espíritos da decadência do pessimismo e da superficialidade do otimismo ao otimismo trágico que é a característica do homem forte que luta pela vida, mesmo com toda desgraça que esta possa representar, sem desistir dela, este homem rir dos infortúnios e fortalece o espírito com as tragédias.

Assim, podemos notar que a ingenuidade tanto na arte, nas ciências ou na vida está representada pelo espírito da perfeição apolíneo que é sem dúvida um véu da realidade e como diria Nietzsche, a mentirosa aparência.

Pois, Apolo é o Deus da ética, como já foi dito, dos limites do não a excessos, contrário a tudo que é bárbaro e desvairado que é dionisíaco, tudo que é encanto e sedução, que através dos seus cânticos fez o homem grego apolíneo conhecer a verdade real durante a embriaguez, que expõem o sujeito a erros, desejos e sofrimentos puramente humanos e igual ao do Deus.

Diz Nietzsche:

A moral mesma – como? A moral não seria uma << vontade de negação da vida>>, um instinto secreto de aniquilamento, um princípio de decadência, apequenamento, difamação, um começo do fim? E, em consequência, o perigo dos perigos?... Contra a moral, portanto, voltou-se então, com este livro problemático, o meu instinto, como um instinto em prol da vida, e inventou para si, fundamentalmente, uma contra doutrina e uma contra-valoração da vida, puramente artística, anticristã. Como denominá-la? Na qualidade de filólogo e homem das palavras eu a batizei, não sem alguma liberdade – pois quem conheceria o verdadeiro nome do Anticristo? – com o nome de um deus grego: eu a chamei dionisíaca. (NIETZSCHE, 2001, p.20)

 

E, desta maneira, o cristianismo que nega a vida, tem ódio do mundo, medo da volúpia disfarçado em fé na busca esperançosa de uma vida além morte, encontra um inimigo natural no Deus artista demasiadamente humano   embriagado  de    imensa vontade de viver chamado Dionísio, que preza a vida não a achando imoral como os cristãos e desejando-a a cada momento, vivendo-a, invertendo assim, a sátira de Sileno, ou melhor, ao invés de morrer, morrer, viver, viver, tornando a vida digna de ser desejada e instituindo novos valores para ela ser vivida.

Para Baco, a existência é uma eterna festa sem pecados, com muita música, vinho e volúpia. Dionísio com a sua inquieta força masculina, contrastando com Apolo, a tranquila força feminina. No drama trágico grego, Dionísio inspirou o coro e Apolo, o diálogo, e assim permanecem juntos, música e poesia, na tragédia ática.


O DECLÍNIO E O FIM DA ARTE TRÁGICA 

É certo que a tragédia ática na sua forma primeira tinha como centro de sua forma a adoração apaixonada ao Deus Dionísio o qual era seu único herói, e assim, ele perdurou, até Eurípedes, pois até então todos os heróis eram apenas máscara do Dionísio.

Então, deste modo, podemos entender que por trás de todo herói grego trágico está o Deus Dionísio e que este Deus aparece nos atos e palavras deste herói e torna-se claro, graças a interpretação apolínea dos sonhos que os fazem aparecer. Isto é o real e Dionísio, heróis (Édipo, Prometeu, etc.) formas de Dionísio aparecer manifestar-se, quem o desvela o torna aparente, Apolo, Deus da interpretação, da aparência simbólica, pois é através de Apolo que o coro revela o seu estado dionisíaco de mistérios e sofrimento.

É, sem dúvida, a paixão dionisíaca, ponto de existente do terreno do humano e o apolíneo, a fonte da individuação e a origem de todos os males.

E deste modo, a epopeia homérica apropriada do poema trágico é o melhor do espírito dionisíaco fazendo os gregos transformar seus heróis sonhados na realidade de seus antepassados. E a tragédia grega que vinha passando por transformações que a levaram a seu fim, fim este que, segundo Nietzsche não é um fim pomposo, merecido por uma grandiosa obra de arte e, sim, o fim matado, ou melhor, um assassinato cometido principalmente por Eurípedes.

Diz Nietzsche:

O que pretendias tu, sacrilégio Eurípedes, quando tentaste obrigar o moribundo a prestar-te mais uma vez serviço? Ele morreu sob tuas mãos brutais: e agora precisas de um mito arremedado, mascarado, que, como o macaco de Hércules, só saiba engalanar-se com o velho fausto. E assim como o mito morreu para ti, também morreu para ti o gênio da música: e mesmo se saqueaste com presas ávidas todos os jardins da música, ainda assim só pudeste chegar a uma arremedada música mascarada, E porque abandonaste Dionísio, por isso Apolo também te abandonou: afugenta todas as paixões de seu covil e as conjura em teu círculo, afila e aguça como se deve uma dialética sofística para as falas de teus heróis – também os teus heróis têm paixões arremedadas e mascaradas e proferem apenas falas arremedadas e mascaradas.(NIETZSCHE, 2001, p.72)

 

O fim da tragédia, como já dissemos, foi trágico e deixou um grande vazio no mundo grego helênico, um vazio de dor e angústia, pois ela, a tragédia, não pode ver sua descendência, pois não acabou, ou melhor, não morreu lentamente e sim, abruptamente, gerando um vácuo trágico na história das artes e na maneira do conhecer humano, nas ciências e na existência do homem, pois esta morte produziu uma impressão, comoção e silêncio universal, segundo Nietzsche fazendo ressoar no mundo helênico este grito.

A tragédia está morta! Com ela perdeu-se a própria poesia! Fora, fora, idevos, raquíticos e definhados epígonos! Ide para o Hades, para que lá possais saciar-vos ao menos com as migalhas dos antigos mestres! (NIETZSCHE, 2001, p.73)

                 O que surge, em seguida, é uma outra forma de arte concebida da luta travada entre a tragédia e Eurípedes que se chama de nova comédia ática, na qual a imagem da tragédia foi degenerada, pois, como já sabemos, o fim violento da tragédia gerou este vazio degenerativo, penoso retrato da luta. 

Eurípedes é o responsável pela subida do homem comum ao palco, que antes era frequentado apenas por heróis, por deuses, agora é o lugar da representação do drama, do sofismo, pois Eurípedes modificou a linguagem da arte e do público, trazendo para cena no lugar do mito heroico trágico a vida cotidiana desvelando seus segredos. Não havendo assim, na arte grega mais o semideus, a embriaguez dionisíaca e a vida comum da família burguesa grega que fez com que o povo passasse a comentar da vida comum dos negócios públicos, da administração, tornando assim a arte trágica numa educação para o povo grego que julgava Eurípedes ser necessário educar.

                  Deste modo, o povo grego que perdeu a tragédia, também perde a sua fé na imortalidade, não mais via a sua existência a igual semelhança da existência do divino caindo o mundo grego numa ataraxia mole, pálida, digna dos doentes incapazes que eram de assumir responsabilidades, além do cotidiano, esquecendo, assim, o período do século sexto do nascimento da tragédia como se esta nunca estivesse existido em troca de um sensualismo digno de escravos.

A comédia de Eurípedes preocupada em demasia com a compreensão do público da obra de arte, abandonou a obra em si em nome de uma compreensão fria e racional que menosprezava a capacidade de compreender do público e tirava o brilho da surpresa que outrora a arte trágica grega reservava.

                  Segundo Nietzsche, Eurípedes, o poeta da consciência do povo que se sentia superior a seus espectadores é o Eurípedes pensador que não compreendia bem as maneiras da tragédia grega e a estudava profundamente, visando modificações que melhor as fizesse compreender introduzindo assim nova linguagem, tanto oral como expressiva a seus personagens, pois para ele o problema da moral não estava bem resolvido na tragédia e a escuridão de algumas partes para ele era a certeza da utilização de linguagem escandalosa e inexplicável.

                    Deste modo, Eurípedes procurou de maneira puramente didática esclarecer todas as dúvidas e falas da tragédia não deixando obscuridades, nem entrelinhas, para que o povo tentasse decifrar, esta didática errônea tirou o encanto da surpresa e emoção da tragédia ática, tornando-a um espetáculo meramente previsível, excessivamente apolíneo, o que enfraquecia também a posição de Apolo, além de deixar a obra teatral grega sem o enigma.

     E assim, tornou o mundo trágico num mundo sem sombras, sem obscuridades, muito claro e explicado de uma imensa compreensão, para o qual não cabiam perguntas ou esclarecimentos, pois tudo estava metodicamente dado, tão claro e de tamanha luminosidade que não deixa margens para descobertas, conduzindo a arte grega para um racionalismo e logicismo que também influenciou toda a vida, religião e ciência da Grécia e, consequentemente, do mundo ocidental, eliminando o erro, o trôpego, o deslize fazendo com que, devido ao grau de acerto a arte, a vida, a ciência fique sem graça e desinteressante.

Diz Nietzsche, que na falta do entendimento, Eurípedes começou a consultar a opinião de outros que não lhes davam a resposta desejada e que também não lhes confessavam a incompreensão, até que sua voz fez eco com a de Sócrates e aí começou a oposição do seu conceito sobre o que era a tragédia grega, a sua forma original através da criação por parte de Eurípedes de novas obras totalmente diferentes da antiga e tradicional tragédia grega que, como já sabemos, encontramos inconciliáveis a presença do coro e do herói, os dois espíritos, as duas tendências artísticas geradoras de uma só arte que são os instintos apolíneo e dionisíaco.

 A intenção de Eurípedes era, segundo Nietzsche, de reconstruir um teatro para a arte, a moral e a mundivisão, o que nos deixa claro a sua opção de excluir o elemento dionisíaco que não goza destas características. Com o afastamento violento do dionisíaco o que era apolíneo perdeu sua força e o que passa a falar através de Eurípedes é o socrático, responsável direto pela falência da tragédia grega.

O socratismo tem como essência a compreensão, pois para Sócrates, segundo Nietzsche tudo deve ser inteligível para ser belo e só é virtuoso quem é ciente. É a partir destas bases que Eurípedes vai regular todos os elementos da arte trágica grega de modo que além de destruir a presença dos dois espíritos vai conduzir o teatro grego a uma cegueira racionalista na qual não estão presentes a beleza e embriaguez da música e a força das estruturas arquitetônicas, renunciando assim as surpresas que é o efeito artístico da imprevisibilidade do erro.

Na tragédia original existia um prólogo onde as indicações eram suficientes para que a plateia pudesse compreender o enredo, a trama, através destas pistas que encobria o formal e descobria o casual, porém Eurípedes julgava que esta introdução causava comichão, inquietação, sofrimento no público, pois ele não conseguia ver nenhuma beleza poética neste estilo, aí criou um narrador que, após o prólogo esclarecia aos espectadores.

Diz Nietzsche:

Por isso introduziu o prólogo antes da exposição e na boca de uma personagem a quem se devia conceder confiança: uma divindade precisava, em certa medida, garantir ao público o desenrolar da tragédia e tirar toda dúvida quanto à realidade do mito: mais ou menos como Descartes só conseguiu demonstrar a realidade do mundo empírico apelando para a veracidade de Deus e a sua incapacidade para a mentira. Essa mesma veracidade divina é utilizada por Eurípedes mais uma vez no encerramento de seu drama, a fim de salvaguardar perante o público o futuro de seus heróis: é a tarefa do famoso deus ex machina. Entre a visão épica do antes e a do depois, encontra-se o presente lírico-dramático, o «drama » propriamente dito (NIETZSCHE, 2001, p.82)

 

Esta é a vontade de Eurípedes, por ordem em tudo, explicar e esclarecer, bem traduzida segundo F. Nietzsche nas palavras de Anaxágoras, “no princípio tudo estava juntado: aí veio a inteligência e criou ordem” (NIETZSCHE, 2001, p.82) e esta vontade de pôr ordem em tudo foi contra a embriaguez, ao sonho, querendo tornar o poeta um consciente e racional, acabando assim com a poesia, a arte, a música, a ciência.

Pois, o princípio estético socrático e platônico reduz a arte ao racionalismo inteligível, consciente e bom que são os princípios que matam a tragédia e inauguram um novo período previsível, racional, de pouca sensibilidade corpórea e de muita moralidade que empurra para fora da arte, a embriaguez dionisíaca e o sonho apolíneo.

Eurípedes, através dos seus próprios prejuízos, julgava que arte grega era um caos, uma desordem e que ela clamava por ordem e esclarecimentos, pois acreditava ele que a qualidade da obra conferia-se na sua clareza e ordenamento e como Sócrates acreditava que o belo é o compreensível, por isto pensando está fazendo um favor aos gregos livrou-se da embriaguez e do estado caótico que conferia a beleza ímpar da tragédia ática.

Diz Nietzsche:

Eurípedes se encarregou, como também Platão o fizera, de mostrar a contraparte do poeta «irracional»; o seu princípio estético: «tudo deve ser consciente para ser belo », é, como já disse, o lema paralelo ao princípio socrático: «Tudo deve ser consciente para ser bom». Em consequência disso, Eurípedes deve valer para nós como o poeta do socratismo estético. Sócrates, porém, foi aquele segundo espectador, que não compreendia a tragédia antiga e por isso não a estimava; aliado a este, atreveu-se Eurípedes a ser o arauto de uma nova forma de criação artística (NIETZSCHE, 2001, p. 83).

 

Foi Sócrates que por também não compreender a tragédia a desmerecia, que aliado com Eurípedes criou a nova arte matando a velha tragédia grega. E, também é Sócrates quem expulsa Dionísio da arte da poesia, consequentemente do mundo ocidental. Ele, que junto com Eurípedes, pois eram tão juntos que para os gregos tornavam-se uma só pessoa e que juntos trataram de acabar com a tragédia, pois julgavam que estivessem consertando erros e dando forma perfeita e bela à arte.

Foi o mesmo, Sócrates que ironicamente dizia que nada sabia e ao mesmo tempo era julgado pelo oráculo de Delfos como o homem mais sábio do mundo, que decidiu, segundo Nietzsche consertar o mundo esclarecendo e tornando tudo compreensível e racional, abrindo assim um caminho para as ciências lógicas e racional, caminho este que vai custar muito caro à própria ciência, pois um futuro não muito distante a própria ciência vai compreender que sua própria existência está intimamente ligada ao erro, ao sensível ou irracional, a embriaguez e ao acaso, que tanto Sócrates condenou quando expulsou o espírito dionisíaco e a sua embriaguez da tragédia ática

Sócrates era o sabujo que não parava de farejar em busca da verdade do que fosse útil, para ele, poesia e arte eram para os pobres de espírito, eram divertimentos, o que não continham nada de verdadeiro ou filosófico e por isto não era útil. É interessante notar que música e poesia eram as principais forças moderadoras da alma para os sofistas inimigos mortais de Sócrates e Platão e, talvez, por causa desta querela da época a poesia trágica tenha encontrado em Sócrates seu feroz algoz que conseguiu transformar toda trama emocionante da tragédia dionisíaca em naturalismo, em razão natural humana, quando leva o otimismo para o interior da tragédia.

Diz Nietzsche:

Basta imaginar as consequências das máximas socráticas: « Virtude é saber; só se peca por ignorância; o virtuoso é o mais feliz»; nessas três fórmulas básicas jaz a morte da tragédia. Pois agora o herói virtuoso tem de ser dialético; agora tem de haver entre virtude e saber, crença e moral, uma ligação obrigatoriamente visível; agora a solução transcendental da justiça de Ésquilo é rebaixada ao nível do raso e insolente princípio da  «justiça poética» com seu habitual deus ex machina (NIETZSCHE, 2001, p.89)

 

Desta maneira, o coro, a emoção dionisíaca da música é substituída pela fala dos atores que agora coordenam o coro que logo a seguir é manipulado, pois para Sócrates era necessário livrar-se do conhecimento trágico em nome da lógica, que mais tarde o homem das ciências vai perceber que o erro de Sócrates foi querer a todo custo se livrar do erro e não perceber que ciência e arte são indissociáveis, pois sem o velamento e a obscuridade do mundo trágico da arte não haveria possibilidade de uma ciência, pois tudo já estaria dado e claro. É este ponto de vista socrático que vai acabar com a era da harmonia grega entre apolíneo e dionisíaco que vai servir como uma luva para dicotomia cristã do corpo e alma.

Ao educador a primazia ao elemento apolíneo-racional, Sócrates destruiu a tensão entre este elemento e o dionisíaco-irracional quebrando assim a própria harmonia. Com isso; o que ele fez foi moralizar, escolasticizar, intelectualizar a concepção trágica do mundo da Grécia antiga (JAEGER, 1986, p.496)

 

Deste modo, a tragédia ática tem o fim de seus dias na era socrática e as teorias dualistas e as deficiências das ciências e artes modernas vem a florescer com o mesmo.

 

A INVERSÃO DOS VALORES VIA CRISTIANISMO

Para Nietzsche, a recompensa para o amor e a verdade deve ser encontrada aqui na terra no relacionamento com os homens e não nos céus, pois para ele, a fé que o cristianismo originalmente queria era na verdade resultado de lutas surdas entre escolas filosóficas no interior do império romano e “não era a fé ingênua e rude de escravos, pelo qual um Lutero ou um Cromwell ou qualquer cérebro bárbaro do Norte sentiam atacado o seu Deus, o seu Cristianismo” (NIETZSCHE, 1977, p. 66).

Segundo o próprio Nietzsche, esta fé luterana, humilde, hipócrita e rancorosa, esta fé cristã, que sempre sacrificou a liberdade e a independência do espírito, mutilando-se e escravizando a si mesmo é a mesma fé que enfraquece e amolece a razão, que inverte os valores é a fé da vingança do escravo oriental sobre Roma, pois a moral aristocrática romana foi cética e tolerante, e este comportamento mostrou que nada é pior que o ceticismo perante a dor, pois foi “a indiferença estoica e sorridente contra a seriedade da fé que suscitou o desdém dos escravos contra seus senhores” ( NIETZSCHE, 1977,p. 67).

Foi esta negação da dor do aristocratismo, este ceticismo que fez com que todo grande ódio oculto entre os escravos se rebelar contra a indiferença aristocrática. Diz Nietzsche:

[...]manter-se céptico diante da dor, que no fundo é uma postura da moral aristocrática, contribuiu grandemente para a grande insurreição dos escravos, começada com a revolução Francesa. (NIETZSCHE, 1977, p.67).

A paranoia religiosa ao manifestar-se, segundo Nietzsche, traz à tona três elementos solidão, jejum e castidade, pois por ser de uma moral ascética tem como característica principal desvalorizar os aspectos, corpóreos e sensíveis do homem, aspectos estes que ligam o homem a si mesmo e a natureza deste mundo terrestre. Transformando o homem, invertendo os valores, pois é a libidinagem que se converte com a mesma celeridade em fanatismo de contrição em renegação do mundo e da vontade (NIETZSCHE, 1977, p. 67)

Como foi possível a humanidade inclinar-se perante tamanha negação da força da vontade de potência? A única explicação encontrada seria a vontade de dominação. Que, segundo Nietzsche, é uma tendência natural do escravo em querer ser dominado, e que não se sabe como contagiou o homem forte e aristocrático.

É verdade que o velho testamento é escrito de maneira bela e retrata um homem forte orgulhoso, guerreiro, destemido que matava e morria em nome de seu Deus, um Deus cumpridor de suas promessas aqui na terra, por exemplo, a terra prometida. Compreender as diferenças entre o novo e o velho testamento é necessário, pois, tudo que é grandioso no velho testamento torna-se de uma pequenez ridícula no novo testamento. Comparemos trechos para enxergarmos melhor a afirmação nietzscheana.

Antigo Testamento Deuteronômio 20:

 

A mobilização para a guerra. Quando saíres para a guerra contra os inimigos e vires os cavalos e os carros de um exército mais poderoso do que o teu, não os temas, pois o Senhor teu Deus, que te trouxe do Egito está contigo. Quando se aproximar o momento do combate, o sacerdote se adiantará e falará ao povo, nestes termos: ‘Ouve, Israel! Hoje ides combater contra nossos inimigos! Não desfaleça vossa coragem! Não temais! Não debandeis aterrorizados diante deles. Pois o Senhor vosso Deus que marcha convosco, para combater em vosso favor contra os inimigos, a fim de vos salvar (BÍBLIA, 1982, p.218).

 

Novo Testamento Lucas 6:

 

O amor do próximo. Mas eu vos digo, a vós que me escutais: Amai os inimigos, fazei bem aos que me odeiam, falai bem dos que vos maldizem e orai por quem vos calunia. A quem te ferir numa face, oferece-lhe a outra; e a quem te tomar o manto, não impeças de levar também a túnica. Dá a todo aquele que te pedir e não reclames de quem tirar o teu[...] (BÍBLIA, 1982, p.1245).

 

E mais adiante:

Ao contrário, amai os inimigos, fazei bem e emprestai sem esperança de remuneração, e grande será a recompensa. Assim, sereis filhos do Altíssimo, porque ele é bondoso para com ingratos e maus. Sede misericordioso como vosso Pai é misericordioso. (BÍBLIA, 1982, p.1245).

 

Aqui está uma amostra do enfraquecimento do espírito humano reclamado por Nietzsche, pois quando no Antigo Testamento tínhamos um Deus que, em primeiro lugar, prometia tempos melhores aqui mesmo na terra a seu povo, guerreava e combatia, punindo com a morte todos aqueles que enfrentavam seus seguidores. Já, no Novo Testamento encontramos um Deus piedoso, fraco, que oferece a outra face ao seu inimigo e espera vencer pela misericórdia em outro mundo além da terra, são estes pensamentos do cristianismo que Nietzsche vai chamar de “má consciência” que vai imperar em toda Europa e se estender pelo resto do mundo cristão.

Esta é a inversão dos valores que o cristianismo provocou à sociedade atual, pois o justo forte e corajoso deu lugar ao fraco escravo, covarde e piedoso, de maneira que o homem moderno sinta vergonha de sua coragem e luta por uma vida melhor aqui na terra, para que este homem fique apanhando e resignado na espera de um julgamento na hora da morte um juízo final, onde sejam julgados vivos e mortos, tudo conforme  a vontade divina lá no céu, perdendo assim a vontade pela própria vida, tornando assim a natureza sem valor, pois todos os valores foram remetidos para um mundo além do físico. Um Deus que não mora aqui e não satisfaz os nossos desejos, jejuando pois os prazeres desta vida são vistos como pecado, comer é um pecado, fartar-se degustar é um pecado, ficando em silêncio perante injustiças, pois o justo, o misericordioso e o senhor e o seu reino está no céu e os sentidos físicos aqui na terra nada vale perante a Ele o nosso Pai. Para que, enfim, este homem isole-se e reze, pois só a oração, a vontade ascética espiritual é virtuosa e só ela leva o homem à salvação.

Para Nietzsche, o mais importante é o homem, a natureza, o mundo e deixar o amor do homem pelo homem em um plano inferior é o estúpido e brutal golpe do cristianismo à humanidade, pois: “Amar o homem, pelo amor de Deus neste sentimento foi até agora o mais aristocrático e o mais elevado que já se conseguiu alcançar entre homem”. (NIETZSCHE, 1977, p. 78).

Tendo em vista que é o homem o espírito superior do mundo, o inventor das religiões e dos deuses, ele não poderia desta forma esperar mais do que ele mesmo para sua salvação, pois até a salvação é invenção do homem para o próprio homem, que jamais poderá ser salvo de si próprio. E assim sendo, o homem é um espírito livre que sempre estará responsável por si e pelos outros.

Deste modo, a religião na mão do filósofo é uma arma potente que pode servir, tanto para o benefício dos homens em comum, como pode ser uma arma nas mãos do dominador do opressor, a educação através da religião tanto forma como destrói o homem.

Para os fortes, para os independentes, preparados e predestinados a dominar, nos quais se personificam o intelecto e a arte de uma raça dominante, a religião é um meio a mais para suprimir os obstáculos; para poder reinar (NIETZSCHE, 1977, p. 78).

 

Ela, a religião, serve para apaziguar os súditos perante os seus dominadores, formando uma consciência coletiva, obediente e submissa, tornando esta maneira de submeter mais pacífica e menos desgastante, evitando atritos desnecessários, pois se bem usada foi a religião o principal cabo eleitoral do rei, assim como, hoje, é o cristianismo importante eleitor de presidentes.

E assim, é para Nietzsche, a religião católica, o cristianismo o responsável por paz no coração dos homens para que em nome de Deus estes não se rebelem e tornem-se satisfeitos, fazendo com que suas existências fiquem monótonas e suas almas dóceis e facilmente submetidas.

Cumpre a religião o papel de aplacar a dor dos que são fracos, dos sofredores; dos molestados, daqueles que deveriam ter sido abortados pela vida e que agora para o cristianismo passam a ser os melhores, pois a máxima do cristão é, quanto mais sofrimento nesta vida melhor e mais rápido será alcançado o reino dos céus.

Foi, sem dúvida, segundo Nietzsche, este o legado da religião cristã para a Europa, a inversão total de todos os valores.

Enfraquecer os fortes, diminuir as grandes esperanças, tornar suspeita a felicidade que reside na beleza, transmutar tudo aquilo que há de independente, de viril, de conquistador, de dominador no homem, o tipo mais elevado e melhor sucedido[...] (NIETZSCHE, 1977, p.  82).

 

Em suma, tirar do homem o orgulho de ser superior e torná-lo dócil e fácil de conduzir em forma de rebanhos, dominados pela estúpida fé cristã, que beneficia os poderosos quando prega a resignação e o conformismo dos que não podem adquirir bem de consumo, que só é bom para o dono do capital que pouco se importa com o pecado de possuir bens mundanos e quer manter os outros medíocres, conformados por nada terem, que cai como uma luva para os governos que não cumprem com suas obrigações para com seus cidadãos e apelam para paciência e solidariedade humana e que além de tudo, nos mantém vigiado por um Deus onipresente e onipotente, que nos torna eternamente doentes pecadores.

           

CONCLUSÃO

Cabe a nós espíritos livres resgatarmos o espírito dionisíaco de seu exílio, trazendo à tona os mitos heroicos gregos e a música ditirâmbica, espelhando-nos, pois no que tem de virtuoso da cultura e arte helênica para com a companhia do verdadeiro anti-cristo combatermos esta religião mórbida e ascética que nega a vida e inverte os valores da humanidade.

Somente com a música embriagada do coro, Dionísio pode voltar e através da sua embriaguez em conjunto com a perfeição apolínea possa trazer de volta a harmonia da arte.

Cantemos espíritos livres, pois só através da música poderemos novamente ser fortes e vencermos o que existe de negação da vida, e, assim, fazermos cumprir a ordem de condenação do cristianismo, proposta por Nietzsche, pois a igreja que “de cada valor fez um não valor, de cada verdade uma mentira, de cada retidão uma baixeza de alma” (NIETZSCHE, 1988,p.130) há de cumprir a sua condenação, libertando assim, a humanidade da sua dominação.

Cantemos, espíritos livres, pois temos que combater a castidade que é uma característica não humana, não natural que vai de encontro a vida e a existência humana.

Cantemos, pois nós espíritos livres não podemos sentir vergonha de nossa coragem na luta por uma vida melhor e não podemos esperar por essa vida melhor depois da morte.

                 Cantemos e nos embriaguemos, pois o mais importante é o amor do homem pelo homem que gera a vida.

Cantemos embriagados, pois a nossa salvação está em Dionísio e só ele é capaz de dar as nossas vidas o delicioso prazer sem pecados, sem medos ou culpas.

E então, os nossos instintos estarão livres e a nossa virtude será plena, pois a harmônica arte helênica será plasmada por nós e seu gozo estético poderá ser novamente sentido.

Cantemos para que o espírito humano fique fortalecido e possa criar e descobrir novas técnicas e que estas técnicas estejam sempre a serviço do homem.

Cantemos e embriaguemo-nos, pois a fartura não pode ser um pecado, ou melhor, o pecado não existe, o que existe é um jogo de poder do qual devemos nos libertar.

Cantemos, pois cantando não teremos tempo para a misericórdia que nos torna fraco de espírito e em vez de livres, escravos.

Cantemos e embriaguemo-nos para podermos participar da festa que é a vida e não ficarmos perplexos perante a sua finitude, que é certa e degenerativa.

Cantemos em louvor a Dionísio, o deus grego da desordem, do erro, da Eros, do caos, pois só assim poderemos dar um sentido a nossas existências, sem dualismo e de uma maneira trágica, tornamo-nos parte do todo.

Cantemos, pois o espírito da música que fala do indizível, não precisa de conceitos ou teorias para nos libertar das aparências, do individualismo da mesquinhez do “eu”, do solipsismo que só me deixa ver o meu próprio umbigo, cantemos para um mundo do nós, da comunidade do outro meu igual.

 

REFERÊNCIAS

BIBLIA SAGRADA, Tradução L. Garmus (Coordenação Geral). 37ª ed., Petrópolis: Vozes e Santuário, 1982.

­JAEGER, Werner. Paidéia, Tradução Artur M. Parreira. 4ed., São Paulo: Martins Fontes, 2001.

NIETZSCHE, Friedrich. Além do Bem e do Mal. Tradução: Marcio Pugliesi. São Paulo: Hemus, 1977.

____________________. Anti-Cristo. Tradução: Carlos Grifo. Lisboa: Presença, 1988.

____________________. O Nascimento da Tragédia. Tradução: J. Guinburg. 2ed. São Paulo: Cia das Letras, 2001.

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