Clizia e Mandrágora: literatura e política

 Revista Sísifo. N° 13, Janeiro/Junho 2021. ISSN 2359-3121. www.revistasisifo.com

 

Nilo Henrique Neves dos Reis

Professor Titular (PLENO) de Filosofia da Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS

 


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Resumo: Não há dúvidas de que Maquiavel foi um teórico do fenômeno político, e suas obras O Príncipe, os Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio e a Arte da Guerra corroboram esta afirmação. No entanto, no que se refere às intenções políticas acerca da produção literária, ainda perduram divergências entre os comentadores do florentino. Ao nosso sentir, seus escritos literários não são simples produções, mas peças significativas das suas análises políticas, e que integram seu maior propósito: pensar sobre as coisas do Estado. Todavia, o contexto não permitia a Maquiavel publicizar tal vontade, o que o levou a se manifestar como um literato que escreve situações cômicas que se mantêm como unidade autônoma que divide a produção do filósofo político da do filósofo literato, uma partição que instiga os leitores, mas que não se desvela aos olhos desatentos dos espectadores, graças à qualidade das peças, imbuídas do seu pensamento. Neste escrito, pretende-se corroborar a afirmação de que os escritos literários, principalmente no que toca aos personagens e suas ações, têm algum vínculo com a perspectiva política de Maquiavel; porém, tais posicionamentos, relevantes para a compreensão do desígnio do florentino, estavam velados em aparentes artifícios literários, não se deixando ver numa primeira inspeção, mas pertinentes ao leitor que queira ter um entendimento mais profundo dos textos maquiavelianos.


Palavras-chave: Clizia; Mandrágora; Maquiavel; Astúcia; Política.


Abstract: It is undeniable that Machiavelli was a political phenomenon theorist and, his writings: The Prince, Discourses on the First Decade of Titus Livius, and The Art of War corroborate this assertion. However, when it comes to the political intentions of his literary production, discrepancies still persist among commentators on the Florentine. We believe that his literary writings are not simple productions, but significant pieces of his political analysis, and that they are part of his greatest purpose: to ponder on the State's affairs. Nevertheless, the context did not allow Machiavelli to publicize such an aspiration, which led him to appear as a literary writer who wrote comic situations that remain as an autonomous unit that distinguishes the production of the political philosopher from that of the literary philosopher, a partition that instigates the readers, but that is not unveiled to the inattentive eyes of the spectators, due to the quality of the plays, imbued with his thinking. This paper intends to corroborate the assertion that the literary writings, especially regarding the characters and their actions, are connected to Machiavelli's political perspective in a certain way; yet, such standpoints, relevant to the understanding of the Florentine's intention, were veiled in apparent literary artifices, not letting themselves be seen on the first inspection, but pertinent to the reader who wants to have a deeper understanding of Machiavelli's texts.


Keywords: Clizia; Mandrake; Machiavelli; Cleverness; Politics.



Introdução

Excluído da política, depois das aflições dos últimos anos e dos desenganos dos últimos meses, depois que o duro rancor do Papa e a fátua indiferença do Duque colocaram em sua condenação um selo que parece definitivo, Maquiavel por outras vias busca consolo, vazão a seu engenho. Seus próprios ócios, como seus escritos, assumem aparência mais literária, diríamos, se não os víssemos imersos na desventura (RIDOLFI, 2003, p. 191).


Como água do mesmo pote, política e teatro estão, historicamente, misturados. Mais do que elementos que se relacionam, ao trafegarem por vias de mão dupla, eles, a rigor, são indissociáveis e, em última análise, fundem-se num corpo só. O teatro, seja autodenominado político, engajado, revolucionário ou até apolítico, é sempre político, independentemente da consciência que seus autores e protagonistas tenham disso (PARANHOS, 2012, p. 32).



Maquiavel introduz uma forma inédita de escrita ao gênero “specula principum” (espelhos dos príncipes). Ao contrário das fórmulas cristãs, Maquiavel ensinou como se conquistam, mantêm-se e se perdem os Estados. As análises elaboradas e a forma de exposição não deixariam dúvidas acerca de sua perspectiva realística de compreender o fenômeno político, e, apesar dos textos serem didáticos e claros, estão envoltos em múltiplas controvérsias interpretativas, deixando inequívoco que ainda não foi entendido tudo o que o autor já teria redigido. A verdade, como se sabe, é que, dadas a singularidade e o engenho do Florentino, sempre há motivos para esperar algo novo da releitura de seus inspiradores escritos.

Não há dúvidas de que as coisas do Estado eram o tema principal de sua meditação, mas falta saber se as suas outras composições se integram ao seu escopo basilar. Mesmo que esta parte esteja obscura, não se deve desconsiderar que a parte artística pode estar vestida de várias cores metafóricas, escapando à censura daqueles que não davam espaço ao conhecimento político adquirido a serviço da república florentina. Do mesmo modo, não se deve excluir totalmente a ideia de que as questões tratadas nas obras políticas estão patentes nas outras obras, ainda que de maneira sutil e revestida de camadas estéticas,1 o que exige uma maior sensibilidade para compreender o acordo comum de conteúdo. Assim, os temas da conquista e da conservação de Estados podem estar envolvidos nas singulares situações e ações dos personagens fictícios, o que pode ser um mecanismo próprio de Maquiavel continuar pensando as coisas estatais, dadas as limitações impostas.2 Destarte, resta claro que Maquiavel jamais abriu mão de sua dimensão política, motivo para conceber o hiato e as conexões entre ambas as produções. Para corroborar este ponto de referência, por exemplo, no Príncipe,3 o Florentino diz que não tratará de repúblicas, tendo em vista que tratou “alhures” este tema, entendendo que tal análise ocorreu nos Discorsi, tese, aliás, suscitada por Felix Gilbert (1953) e discutida por Gennaro Sasso (1980). Já nos Discorsi, seguindo na mesma ilustração, quando fala sobre as repúblicas que estão profundamente corrompidas, o Florentino aconselha que elas só têm como “fugirem a tal licença” se retornarem à condição de “principado” (MAQUIAVEL, 2007, p. 17). No que diz respeito às obras teatrais, estas parecem se relacionar entre si, afinal de contas, os personagens Frei Timóteo e Lucrécia de a Mandragola (doravante, Mandrágora) são citados na peça Clizia, não deixando dúvidas de que se trata de a Mandrágora. Ademais, com exatidão, encontram-se nas duas composições teatrais a seguinte passagem: “pure le carne tirano” (MAQUIAVEL 1964, p. 27; MAQUIAVEL, 1971, p. 20). À risca, em tradução de Mario da Silva (MAQUIAVEL, 2004, p. 89): “a carne é fraca”; porém, tal citação, em duas peças distintas, não parece ser um acidente de percurso e, embora a intenção moral e política esteja longe de ser resolvida, não deixa de ser um indício de que Maquiavel a colocou com um propósito, já que se trata da “cena mais singular e aparentemente gratuita da ‘fábula’” (FIDO, 1969, p. 365). Não há equívoco de que a dupla ocorrência da sentença se refere a uma finalidade maquiaveliana que une tais escritos, e que permite formular a hipótese de que as menções se relacionam entre si e, talvez, com os escritos políticos.

É claro que cada texto atende às motivações do filósofo; todavia, enquanto obra cômica, as peças se dirigem à plateia, envolta em circunstâncias particulares, e não há, portanto, uma prova definitiva que refute a ideia de que elas se relacionam entre si. O espetáculo da política e a astúcia da política mantêm uma correspondência explícita nos textos do Florentino, o que, indiscutivelmente, mostra uma ligação em tais produções; e quando envolve a encenação promove reações diversas na plateia (MARNOTO, 1991). No fundo, este é o aspecto que se acentua nestas linhas.


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Maquiavel tinha uma acuidade filosófica que lhe propiciava colocar suas perspectivas pessoais em qualquer gênero de escrita, seja político, seja literário. A Mandrágora descreve uma batalha da vida íntima, levando Maquiavel ao triunfo no teatro. Clizia insiste no tema da disputa doméstica, evidenciando os conflitos e as tramas de Nicômaco e Sofronia (e o passivo Cleandro) para atingir seus objetivos. São duas peças em que Maquiavel explora o ambiente com várias situações que suscitam semelhanças com suas perspectivas. Não se deve desconsiderar que a preocupação do Florentino estava dirigida para a vida pública, o que leva aos cuidados com as associações, conforme assinala Bignotto (2014). Na realidade, Maquiavel sempre se interessou pelo poema, como se vê na dedicatória a Alamanno Salviati, em os Decenales (MAQUIAVEL, 2010a); porém, já aí ele parece seguir na busca da compreensão da natureza humana, o que possibilita inferir que, atrás da exposição de cada escrito, o Florentino segue um propósito: obedecer à ideia de que é preciso criar as condições necessárias para se atingir um resultado, sabendo que as intenções estão sob ameaça constante de outros interesses. E como não há verdades e interesses transcendentes, o resultado dependerá apenas do empenho pessoal dos atores políticos e personagens envolvidos na situação. No tratamento dos negócios dos Estados de cada escrito, Maquiavel se esforça para mostrar que aqueles que recorrem à força e à fraude, sem violentar suas consciências, estão mais propensos ao êxito, deixando nítido que era tempo de ser realista e pragmático, aliás, havia tais recomendações em O Príncipe e nos Discorsi. Nas peças teatrais, de modo disfarçado e concomitante, Maquiavel poderia usar personagens como Calímaco, Ligúrio, Frei Timóteo, Nicômaco e Sofronia com os mesmos fins políticos, esperando que seus leitores compreendessem, no sentido mais sensível da interpretação, este expediente.

Indo adiante desta perspectiva, Rousseau (1978, p. 89) se mostrou um leitor atento do Florentino, quando entendeu que este ensinava aos republicanos “fingindo dar lições aos reis”. Rousseau (1978), de forma invertida à tradição, que sempre demonizou Maquiavel, percebeu o escopo e a estratégia dos seus escritos. Ademais, foi o próprio Maquiavel (2017, p. 183) que colocou em O Príncipe que a sua “intenção foi escrever coisa útil a quem escutar, pareceu-me mais conveniente ir atrás da verdade efetiva da coisa do que da sua imaginação”. Portanto, a partir do trecho citado, era um escrito que não precisava de adornos, motivo pelo qual não havia “magníficas palavras, ou de qualquer outro aliciante ou ornamento exterior” (MAQUIAVEL, 2017, p. 87). Não obstante, se não havia qualquer sedução “aliciante”, por que Maquiavel disse ao novo governante de Florença que, folheando seu livro, “conhecerá lá dentro um extremado desejo meu de que alcance aquela grandeza que a fortuna e as suas outras qualidades lhe prometem”? Embrulhado, e do ponto de vista prático, não se trata do velho costume de exceder-se nos elogios com o fim de obter algo em troca, o que se confirma no restante da dedicatória: “E se Vossa Magnificência, lá do ápice da sua alteza, alguma vez virar os olhos para estes baixos lugares, conhecerá quanto eu imerecidamente suporto uma grande e contínua malignidade da fortuna” (MAQUIAVEL, 2017, p. 87). Ao mesmo tempo em que diz que se exprime sem adornos, Maquiavel coloca no interior de seu livro, sob a forma de galanteio, palavras sedutoras que têm como desígnio fazer brotar o brilho nos desatentos olhos de Lourenço de Médici. Maquiavel, afinal, teria julgado que estava em suas mãos, na leitura desatenta de outros, criar a ocasião para ganhar o coração de Lourenço. “A Mandrágora é uma escaramuça de retaguarda” (FIDO, 1969, p. 369), “mas resultam dessas composições de personagens efeitos sérios e úteis à vida comum” (MAQUIAVEL, 2010b, p. 41). Ocorre que O Príncipe foi dedicado justamente a um Médici que, junto com seus correligionários, encerrou a experiência republicana de 14 anos em Florença, da qual Maquiavel era um peão importante nas mãos do seu líder, Piero Soderine. Não há dúvida de que era inseparável a oferta de conhecimentos políticos ao novo condutor da política de Florença, e a procura por uma ocupação pública para o ex-secretário da república. Maquiavel (2017, p. 201) tinha aprendido que “os homens em geral julgam mais pelos olhos que pelas mãos”. E tal analogia era adequada para quem enfrentava batalhas políticas com o uso das palavras produzidas por mãos hábeis que sabem agarrar as coisas, enquanto os órgãos da visão, dependendo da sua saúde, podem ter sérias enfermidades que não percebam o que as extremidades dos braços querem abancar. Induvidosa, assim, a escrita de Maquiavel produz efeitos óticos em seus leitores (HALE, 1963), razão pela qual seus textos voltam a ser postos nas reflexões políticas.

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Em 1953, Isaiah Berlin (2002), em A originalidade de Maquiavel, anunciou que havia diversas maneiras válidas de ler O Príncipe e os Discorsi, afirmação que continua sendo verdadeira na medida em que o Florentino se tornou o modelo paradigmático da abordagem realista. Graças à sua capacidade intelectual de entender como o homem é, e não como ele deveria ser, sua reflexão permanece despertando interesse político, mesmo decorridos mais de quatrocentos anos. Em seus trabalhos literários, a escrita maquiaveliana segue a originalidade dos textos políticos, independentemente das fruições das produções do Florentino. Um leitor de política não quer, às vezes, saber muito de comédias teatrais, do mesmo modo que o leitor de peças literárias não se importa, por vezes, com as discussões sobre o poder; no entanto, a leitura das comédias, para quem conhece as obras políticas de Maquiavel, permite estabelecer outras conexões que estão subentendidas nas encenações, bem como moldar um perfil das personagens coadjuvantes pelas suas condutas, uma vez que o móbil de suas atitudes fique menos visível por conta da vontade de consumação do desejo sexual de Calímaco, por exemplo. A leitura das partes políticas possibilita melhores fruições estéticas das peças, já que torna evidente que a dissimulação é elemento constituinte das estruturas ficcionais e sociais. Não resta dúvida, destarte, que seja possível realizar tal leitura das comédias, esperando que os pontos cegos de cada produção nos mantenham em contínuo contato com o mundo interior deste escritor que ofereceu aos leitores bons textos de política e literatura, desfrutando dos vocábulos e cotejando as obras. Nesse aspecto, independentemente de se dedicar à parte política ou literária, para Carlo Celli (2009, p. 5), “sem uma abordagem completa de suas outras obras e seu contexto cultural”, o leitor fica “limitado a uma leitura do Príncipe e, no máximo, aos Discorsi. Para compreender mais profundamente a obra e o pensamento político do secretário”, e aqui Celli (2009) mostra onde se deve colocar o acento, “será útil concentrar-se nos seus escritos menores e aplicar as lições tiradas às obras mais conhecidas, como O Príncipe”.

Entre as obras políticas e as duas peças em lide (sem entrar no mérito da envergadura de uma em relação à outra), não se pode colocar em dúvida que as palavras do Florentino servem muito bem ao propósito de suas intenções, pois atingem tanto o leitor que busca conhecimento político como aquele que busca apenas entretenimento. Ainda assim, como Chabod (1994, p. 229-230) diria, a Mandrágora serve para mostrar “a capacidade de observar (de Maquiavel), de fora, a atuação do homem, bem como de esculpir seus personagens essenciais”. Inglese (2017, p. 182), escreve que Clizia “se faz rir apenas mostrando pessoas que são tolas, amaldiçoadas ou apaixonadas”. De qualquer maneira, Maquiavel prossegue descrevendo personagens com pinceladas reais, e quaisquer que fossem as motivações das peças, Maquiavel parece não ter outro intento senão raciocinar sobre as coisas do Estado, o que não faria das comédias um desvio desse desejo maior do filósofo. Nos dois gêneros, uma gama de temas é apresentada, restando claro que Maquiavel é um amante da boa observação, visto que parece compreender a natureza humana e seus impulsos mais íntimos. Afora as exceções, o autor avisa que a preocupação das personagens é somente a sua, como se no ambiente humano, por feliz coincidência, valessem as mesmas regras, mostrando o que o homem realmente é. Trata-se de uma leitura realista da existência humana, seja na arena política, seja na contenda teatral. Por este viés, é inevitável observar que as obras parecem ligadas ao modo como o Florentino vê o mundo, motivo pelo qual a sua sensibilidade artística se ocupa tanto de expor e ocultar aquilo que pode ser escrito nas peças: a astúcia fabricando fraudes. Esta visão já estava clara em O Príncipe, afinal, quem deseja conquistar ou conservar seu principado novo precisa “vencer pela força ou pela fraude” (MAQUIAVEL, 2017, p. 137).

Nas peças, Maquiavel remove o recurso à força, porém, mais do que nos tratados políticos, ele leva para o interior do enredo a encenação da astúcia. E somente com virtuosismo, inteligência e uma habilidade de colocar em ação uma trama que não é totalmente explícita aos olhos, que se consegue enganar a outrem. Maquiavel não tinha por que renunciar a este artifício tão significativo para sua perspectiva política, evidenciando que a função da argúcia tem um fim específico: ser um instrumento à mão para vencer o conflito. Ademais, as peças – sobretudo a Mandrágora – poderiam ser uma forma de dar acesso à sua perspectiva ao “cidadão comum, que [...] não tivesse a capacidade de ler diretamente” (CEA ANFOSSI, 2016, p. 55) suas obras.

No fundo, as obras literárias flutuam na arte da conquista e não há exagero em acreditar que compete à astúcia a solução do que se deseja. Graças à astúcia, pode-se contornar os obstáculos, inclusive as regras sociais, impostos pela comunidade humana. E se o leitor conhece as palavras do Florentino, sabe que tendo o ator político os meios para conquistar e manter o objeto de seu desejo consigo, não deve deixar de assim proceder, pois “os meios serão sempre julgados honrosos e louvados por todos” (MAQUIAVEL, 2017, p. 201) quando se vence. Provavelmente, Maquiavel tinha suas razões para se concentrar apenas em um recurso utilizado para a conquista, já que em O Príncipe discorreu sobre o instrumento da força. Além disso, se ele argumentasse a favor da força nas peças, seus leitores seriam obrigados a considerar que ele não estava usando o teatro para encobrir sua velada intencionalidade e, portanto, que continuava a lidar com o fenômeno político. De qualquer maneira, o propósito das obras parece ser o de mostrar como a agudeza é o instrumento que se usa para apoderar-se de algo que não se tem. E todas as personagens se esforçam em deixar nítido que o sentido não está posto em outra coisa, senão subjugar outrem para alcançar a felicidade, já que, além dos instintos que impulsionam a autopreservação, o significado da vida é a busca da autorrealização em meio às outras personagens.

Se o caminho que leva à satisfação pessoal conduz ao conflito com outrem, e as obras de Maquiavel procuram demonstrar que este entrelaçamento é inevitável, tanto as obras políticas como as literárias mantêm esta estreita perspectiva, o que parece levar à conclusão de que Maquiavel as vê como inseparáveis. Para que se possa perceber este vínculo, basta atentar-se à presença da astúcia nas peças, visto que, com seu uso adequado, enganando com sutileza a todos, vai-se superando as adversidades. E mais: enquanto a maioria alimenta a expectativa de realizar seu desejo colaborando com Calímaco, por exemplo, o personagem envolve a todos para obter aquilo que anseia, deixando iluminado ao público que dissimuladores e enganados são a forma híbrida da humanidade. Por intermédio da astúcia, o ator político e personagem fictício são capazes de criar para si os meios adequados para moldar as condições concretas e as justificativas morais de suas ações, levando-os ao fim exitoso. Maquiavel descortina que só quem entende as razões humanas sabe recorrer aos expedientes extraordinários para promover o fracasso de outrem e, igualmente, conquistar a vitória. A leitura cotejada da produção maquiaveliana insinua, entre outras coisas, que não há distinção entre obras políticas e literárias, pois o personagem fictício se encontra livre de toda sujeição moral, mostrando aos homens que através da força e da esperteza estarão isentos de qualquer culpa social, já que não há uma febre ética que os impeça de buscar o que desejam, ainda que não seja de maneira explícita. Afinal, foi o Florentino quem colocou o conflito em suas peças, obrigando o leitor a pensar que as comédias a Mandrágora e Clizia sejam, talvez, a continuidade da produção política do escritor.

Como um antigo participante interno das articulações dos bastidores do poder, não se pode negar que Maquiavel tem sua atividade política reprimida, mas a compulsão era latente, razão que explica a continuação de sua produção escrita. Nesses termos, como observador externo das ações e efeitos da arte de governar, e com o olhar treinado pelas experiências vividas enquanto secretário da chancelaria florentina, ele tinha a habilidade para enxergar o fato político, mesmo que estivesse alheio às decisões e impedido de se envolver nas coisas do Estado. Ao sentir os óbices de saborear as antigas glórias dos bastidores do poder, resolveu saborear o gosto pelo palco, percebendo que podia mitigar suas frustrações, graças à substituição das pessoas reais por personagens e situações metafóricas. O biógrafo Ridolfi (2003, p. 199) escreve que “o mais plautiano deles [dos personagens], o parasita Ligúrio, parece um florentino do mercado velho”. Dessa maneira, o Florentino teria encontrado no palco simbólico uma forma de salvar sua alma e reinventar-se: agindo como o amante impedido de sentir o calor da amada, criou um meio de viver sua relação amorosa fundindo o teatro e a política. Através do referido recurso, Maquiavel atende às exigências de sua alma e, igualmente, desmascara o real por intermédio do pretexto ilusório. O teatro, ao contrário da política, não seria uma maneira de vulgarizar para o público o fenômeno político, dando-lhe a oportunidade de ver as cenas “reais” dos bastidores do poder? Assim, Calímaco, Nicômaco e seus servos são mostrados em suas realizações, voltados para o esforço de atender a si próprios, ainda que se oponham à moral e sejam capazes de violar costumes e tradições em busca do seu bel-prazer. Mas, é indispensável não provocar as autoridades, conforme deixa claro Mestre Nícia, a fim de que o caso do adultério consentido não chegue ao conhecimento da Junta dos Oito4 (MAQUIAVEL, 2004, p. 74). E nada expressa melhor tal ação do que a encenação do real através da ilusão cênica. No capítulo XIX de O Príncipe, Maquiavel aconselha os atores políticos a como escapar às situações de se tornar odiado por membros de qualquer classe, sobretudo as mais poderosas. Não seria por essa motivação que o autor em pauta recorreu ao teatro, a saber, porque ele oferece uma visão realista daquilo que chamamos de vida real?

As aludidas comédias estão envoltas nas atitudes especificamente humanas, como cobiça, avidez, intemperança e prudência, e na demonstração da força e da astúcia para conquistar aquilo que se deseja. Maquiavel mostra as personagens com as mesmas virtudes e vícios das figuras retratadas em seus tratados políticos; assim, todos são parecidos entre si, conscientes de que os humanos e personagens vivem expostos às contradições do desejo sempre insatisfeito, mas nunca dispostos a sacrificá-lo pelo bem alheio: cada personagem está voltado para a sua crença de “glória” pessoal, o que tensiona a existência civil, gerando a disputa e o conflito que se resolve pela força e astúcia (fraude). Maquiavel aponta que aquele que está disposto a enfrentar os perigos, desde que use os recursos mencionados para alcançar seu fim, conseguirá realizar seu intento, mesmo que isso o leve ao seu último suspiro. E, como o Florentino deixa claro, não há um traço de compaixão ou arrependimento cristãos: tudo gira em torno do desejo e do conflito, nos quais as tradições, as leis e os costumes podem ser manipulados para atingir o fim que se almeja. O público, porém, não deve ter conhecimento das motivações internas que cada personagem ou ator político realmente possui. A mera coincidência não deve levar à rejeição de que as peças podem estar aparentemente ligadas, o que oportunamente pode ser visto quando se imiscuem o conteúdo delas com a política, dando uma intenção plena (ainda que velada) de significados. A fecundidade das peças mostra que as suas contribuições são inesgotáveis ao corpus machiavellicus, já que podem transportar ideias de uma composição à outra, mesmo que cada uma se assente em uma base aparentemente distinta. Logo, no desempenho de sua atividade de escritor, ele não se afirma como “eu sou Maquiavel, o florentino e autor de obras que discorrem acerca das coisas do Estado”, de um lado, e, depois, “eu sou Maquiavel, o florentino e autor de obras de comédias”. Não há dois ‘Maquiavéis’, apenas um. Talvez o lado lúdico fale das mesmas coisas, mas explorando caminhos variados que levem a um destino comum: para atingir o fim ambicionado, o indivíduo deve estar disposto a usar os recursos que a natureza humana oferece aos mais capazes: a força e a astúcia. Tais perspectivas não estão patentes nas produções maquiavelianas, ou, caso seja possível alegar, havia uma para o teatro e outra para a política. A variedade de formas não ocorre sob estruturas diferentes, sociedades diversas, mas sob o mesmo contexto cultural e um domínio subjacente que levou o escritor ao “strappado”5 no passado.

A análise das peças, sob vários aspectos, não pode desconsiderar que o leitor conhece antes o ponto de vista político de Maquiavel do que a sua real intenção ao escrever as obras em lide. O enredo destas, entretanto, ao descortinar o expediente da fraude construída pela astúcia – visão política de Maquiavel –, colabora com a hipótese de que seja mais um elo (encoberto) com seus escritos políticos. E esse pensamento parece reafirmar a conclusão menos discutível das obras maquiavelianas: com o uso da força e da fraude (astúcia) – se bem aplicadas – se alcança o poder. Ler Maquiavel é voltar-se para este caminho, senão a verdade de sua obra se torna velada. Ademais, este parece ser o impulso que o levou a escrever O Príncipe e os Discorsi. E a dimensão artística teria outra perspectiva, outro impulso? Há, certamente, por parte do Florentino, algo mais do que a simples busca estética com essa virada literária, já que o conteúdo das peças traz embrulhada uma relação com as aspirações mais íntimas do autor, o que poderia sugerir, ao menos, que estas duas peças se acrescentam a alguma coisa que já existe para lhe dar maior extensão. Ora, sem uma declaração inequívoca do Florentino de que elas não se unem, nada impede de pensar que o próprio Maquiavel quisesse que seu leitor realizasse o vínculo das obras. Pensar ao contrário é válido também, embora este modo de raciocinar leve dúvida às duas posições. Uma coisa parece certa, as peças não foram imaginadas para a leitura isolada do sábio, mas para um público que não estava acostumado à análise filosófica, embora, é claro, nada impedisse aquele de saborear este modo distinto do debate político, que, ao que tudo indica, foi apreciado com entusiasmo pela plateia, apesar de muitos só terem conseguido alcançar o riso.

Sob este aspecto, os diálogos e as encenações tentam apanhar o público pelos ouvidos e suas retinas, já que as personagens dizem claramente o que são para quem assiste à trama. Maquiavel espera que o público reaja, mas isto só será conseguido se ele entender o que se passa diante de si: os interesses são conquistados através da ação. Não há verdades transcendentes, e o Frei Timóteo deixava isto explícito ao procurar vantagens para si, enquanto colocava palavras doces no ouvido de Lucrécia, uma mulher honesta e bem-casada que, sem qualquer explicação na peça, libera todos os serviçais na noite em que promete acontecer o que considerou fora dos ditames morais. Graças às suas palavras, Frei Timóteo, que incentivou Lucrécia a se sujeitar a ceder favores sensuais a outro homem que não ao seu esposo, em a Mandrágora, conquistou o que queria, inclusive o que ninguém imaginava, deixando nítido que a fortuna se manifesta favorável aos jovens audaciosos. Do mesmo modo, em Clizia, o personagem Nicômaco espera o deleite. Calímaco, Ligúrio, Timóteo e Nicômaco criam a situação ideal que justifica o fato de conseguirem o que queriam, mas sem ofender as autoridades e sob a forma não explícita para a comunidade florentina. Mas a Fortuna era imprevisível na vida real e, por metáfora, no reino ficcional das peças, favoreceu os jovens, prejudicando, aparentemente, os velhos.6 E não se deve deixar de lado que Maquiavel (2017, p. 249), discorrendo sobre a presença da Fortuna nas coisas humanas, tenha escrito que “como mulher, é sempre amiga dos jovens, porque são menos cautelosos, mais indomáveis e mandam nela com mais audácia”. Em Clizia, Maquiavel (1971, p. 10) declara: “O capitão quer que seus soldados sejam jovens, as mulheres querem que seus amantes não sejam velhos. Coisa ruim ver um velho soldado, muito ruim é vê-lo apaixonado. Os soldados temem a indignação do capitão, amantes não menos do que suas mulheres”. Como no poema De la Fortuna, de Maquiavel (2010a), dada sua inconstância e móvel, a Fortuna é sempre imprevisível, mudando como os ventos, exigindo a plasticidade de condutas; os velhos, tendo se aquietado no hábito, não costumam perceber os deslocamentos do ar por conta da oscilação da pressão e temperatura, motivo pelo qual Maquiavel (2017, p. 201) aconselha aos homens (e, por que não, aos personagens): que tenham “um ânimo disposto a virar-se conforme os ventos da fortuna e a variação das coisas lhe mandam”. Assim, a falsa justificativa que levará os amantes ao leito da mulher desejada é apenas uma narrativa que os isenta de se opor à moral, caso sejam descobertos, e os prepara a moldar até os próprios fatos, para que estes se ajustem aos seus interesses. Eles não só dominam a história montada, como os fatos estão prontos a se encaixar com a narrativa do “santo” padre Timóteo – aliás, o mesmo padre está nas duas peças, o que demonstra a interligação entre elas.

Não há muita coisa a ser expressa naquela jogada, a não ser que os personagens expõem ao público que os bastidores do poder são um pastiche, pois, dada a imitação do conluio que levou Calímaco ao leito de Lucrécia, a natureza do acordo libidinoso torna-se manifesta com a vida tranquila nas cidades e as formas como o novo governo mediceo se apresenta como o melhor regime para Florença. No que diz respeito à figura de Timóteo, a Igreja, representada em sua plenitude, não tem outra finalidade senão conceder as bênçãos aos amantes. De igual maneira procedem os papas, guardiões da fé, que fazem o uso da palavra sagrada para conquistar proveito próprio, aos quais Maquiavel deu vida e sentido preciso ao criar o frei Timóteo, uma representação dos papas de seu tempo, que, como Alexandre VI, foi dos representantes de Deus na Terra que melhor soube usar o dinheiro e a astúcia para engrandecer a si e a Igreja. Destarte, o ponto certo é que não há princípios para fundamentar condutas dos sacerdotes que cuidam do sagrado como velhas raposas cuidam das aves galináceas sob seu abrigo. Ainda que o personagem Frei Timóteo seja uma figura sem propósito exterior à obra, não deixa de ter uma semelhança acidental com o papa Alexandre VI, sobre o qual Maquiavel (2017, p. 201) escreveu que “não fez jamais outra coisa, não pensou jamais em outra coisa, que não fosse enganar homens, e sempre encontrou situação para poder fazer: e não houve jamais um homem que tivesse maior eficácia”. Não se deve voltar à ambivalência de que são obras distintas, mas pelo menos se pode sustentar que são ocasiões propícias de situações que parecem se integrar por mera coincidência, embora uma vez ou outra as descrições reavivem traços para quem procede à leitura as cotejando. De fato, cada uma tem seu propósito no corpus machiavellicus, mas não há como negar que as peças, por sua vez, aludem indiretamente à produção política, atendendo parcialmente às suas próprias intencionalidades. De mais a mais, as reverberações das questões tratadas pelo Florentino, quando acrescidas à vontade do leitor interessado em sublinhar suas convicções, não deixam dúvidas de que as obras políticas podem ser a expressão da política republicana ou monárquica. Mas, como deixou claro Rousseau (1978), Maquiavel era um republicano que ensina uma coisa imbricada em outra, visto que, sendo direto, colocar-se-ia em risco perante o poder instituído, que não o perde de vista. De igual maneira, o que cada personagem faz, desde o início da encenação, deixa explícito que, para atingir o fim almejado, sua paixão, sexo, dinheiro, amor, todos os meios são válidos. Portanto, o tema da conquista está presente, traço fundamental de O Príncipe. E se cada um expõe sua intenção, não há como fugir do conflito, ainda que este seja colocado na habilidade de cada um triunfar (SERRA, 2013) ao seu modo; este é o enredo que se desvela nas ações das peças: a questão remete sempre à execução e aos contornos necessários para atenuar as intempéries da fortuna. Como se expôs, não há verdades absolutas, apenas comportamentos e atitudes. As personagens encontram suas realizações na conquista do objeto escolhido para si, aquilo que lhes traria a promessa de felicidade. Tudo é permitido, desde que garanta a bem-aventurança, e, ainda que seja proibido aos olhos da tradição, qualquer coisa poderá ser desfrutada através de véus que dissimulem o que é para ser dissimulado. Talvez por isso, o teatro tenha sido o meio escolhido para ser o prolongamento da reflexão política dissimulada (PARANHOS, 2012). O teatro traz o enredo encenado na ação das personagens, permitindo que Maquiavel persiga sua vocação natural de teórico da política, mesmo que, mais uma vez, use o recurso da teatralidade, um modo vigoroso para fazer a ilusão do realismo que impera na sociedade civil, na arena política, colocando personagens em conflitos, lutando por seus interesses de modo disfarçado por intermédio da ação, e com o auxílio da argúcia.


***

A bem da verdade, independentes dos contornos e perspectivas interpretativas de parte (ou da íntegra), os leitores ainda mantêm a posição de que os escritos do Florentino continuarão suscitando reflexões políticas ao longo do tempo, o que pode ser revisto nas peças. E elas podem retratar, claramente, aquilo que ele não conseguiu fazer diretamente com os tratados de política. Não há necessidade de uma construção argumentativa, como nos tratados, digna do respaldo filosófico que a tradição erigiu para se colocar o ponto de vista de Maquiavel. Na teatralização, o autor poderia dispor das cenas como meio de (des)iludir o público, e dar a conhecer sua mensagem. O teatro explana, de forma clara, aquilo que estava oculto na política; a farsa é exposta ao público, as tramas colocadas diante deste através das imagens dos atores, que são diretos em confessar suas intencionalidades, ou, quando o contexto exige, deixam evidente que estão mentindo porque a situação assim demanda. Não há outros mundos diante do público, somente aquele que se expõe à percepção dos seus sentidos. O palco exibe os movimentos dos personagens, o que não deixa de ser uma modalidade atraente e realística para mostrar como as pessoas comuns são enganadas e levadas à ação por suas paixões, mesmo que, ao participar de parte da história, não percebam que integram um plano maior. E isto fica óbvio nas mencionadas peças, quando Calímaco diz a Siro que “as coisas que alguém quer que não se saibam, é conveniente que não as diga, a não ser forçado” (MAQUIAVEL, 2004, p. 41), pois parte da arte da enganação consiste em ocultar sua verdadeira finalidade, como fez César Bórgia com seus desafetos em Sinigaglia – aliás, este fato é narrado no capítulo VIII de O Príncipe e no tratado político Descrição do modo de que se serve o Duque Valentino para matar Vitellozzo, Oliverotto da Fermo e o Duque de Gravina Orsini. Ainda que se tratando de conspirações – tema que não será abordado aqui –, nos Discorsi, Maquiavel (2007, p. 322) escreve: “quem conjura, conjura sozinho ou com outros”. A segunda envolve perigos constantes, pois “sempre se encontra um delator que põe tudo a perder”, motivo pelo qual Calímaco (e Ligúrio) não faz saber seus planos, evitando que uma alma de reação se manifeste. Porém, mais do que isso, indica como as personagens que dominam o mundo usam seu poder e dinheiro para tomar aquilo que querem, sem ofender os costumes, razão que as levam ao impulso de controlar as narrativas para não despertar o ódio das pessoas, como foi no caso do adultério consentido de Nícia, em uma peça, e no casamento de fachada que daria a Nicômaco acesso ao leito de Clizia, noutra. Em todo caso, as justificativas tentam parecer louváveis, pois, se o fato fosse levado ao conhecimento público, eles poderiam usar como desculpa que era parte de uma realização divina, conforme defendeu Frei Timóteo junto a Lucrécia. E não deixa de ser interessante que este Frei seja o confessor da família, um homem que, aos olhos do povo, tornou-se um “santo”, já que, “por causa de suas orações, Mona Lucrécia, de Messer Nicia Calfucci, que era estéril, engravidou” (MAQUIAVEL, 1971, p. 18). Não obstante, tendo tais encenações diante dos olhos, o público saberia que se tratava de uma trama, e que isso era assunto comum para a humanidade, já que, no fim das contas, não convém buscar o que diferencia os homens dos personagens, mas entender as suas semelhanças nas ações.

E se Clizia parece ser apenas uma disputa doméstica, uma peça de teor moralizante pela preocupação da matriarca, observa-se que há um conflito bem exposto em curso, pois na “ação procede da tentativa de Nicômaco de possuir Clizia e da determinação de Sofronia em se opor a ele” (Di MARIA, 1983, p. 206). A Mandrágora já havia posto este traço teatral, então, não havia motivos para colocar a questão do tempo e do “innamorato” que perturba a prudência de Nicômaco, como fez com Calímaco. Di Maria (1983) nota que tais adversidades são colocadas pela Fortuna, que favorece uns e prejudica outros. E Cleandro, de mero expectador, foi agraciado por sua imprevisibilidade, bem como restou claro ao velho e humilhado Nicômaco que “por mais prudente que seja, não pode impor seus desejos à Fortuna” (Di MARIA, 1983, p. 213).

Não por acaso que, depois desta digressão acerca das semelhanças e deslocamento da política dos bastidores para a encenação política nos palcos, é preciso determinar se o teatro é usado como recurso para Maquiavel continuar sua reflexão. A função do teatro é a representação, e o Florentino utiliza o espírito cômico das situações retratadas pela Mandrágora e Clizia para expor, semelhantemente à perspectiva política, as coisas que ocorrem no universo dos poderosos. Maquiavel foi capaz de fundir as similaridades, seja por coincidência ou intenção deliberada, expondo os movimentos para produção do engano com o intuito de conquistar o que se deseja, avesso às regras sociais. A palavra é empregada para concretização do engano, como Maquiavel (2004, p. 69) deixou exposto na peça: “é com boas palavras que se costuma levar as mulheres para onde queremos”. Ocorre que, como todos os personagens são colocados no tabuleiro do jogo com o recurso às palavras, somente os que lidam bem com elas dão o sentido das coisas, pois “embora Nicômaco tenha mais autoridade, ainda assim a astúcia de minha mãe, a ajuda de nós, outros, que, sem nos descobrir muito, fazemos a ele, manteve o assunto sob controle por várias semanas” (MAQUIAVEL, 1971, p. 9). E foi graças ao “inganno” elaborado por Sofronia que Nicômaco teve seu castigo e sua humilhação por desejar favores sexuais de Clizia. No entanto, a parte mais constitutiva da ação da astúcia, e aqui segue sua originalidade, é a ilusão da vítima de que merecia o destino que lhe sucedeu, e não encare como uma ocorrência do engano de outrem. Sofronia, assim, demonstra que entende como o mundo funciona, porquanto, assistindo ao descuido do marido com as coisas habituais, não só tomou para si tal responsabilidade como se encarregou de trazê-lo à realidade (PEROCCO, 2014). Graças à astúcia, é possível prosseguir por uma trilha que permite alcançar algo ou prejudicar os planos de outrem, uma vez que o conflito segue em curso. Assim, diante da habilidade de perceber e controlar a situação, através do “inganno”, Sofronia parece incorporar o conceito de “virtù” de Maquiavel (PATON, 2011).

As palavras são indispensáveis, e o erro mais evidente é ignorar seus sinais. Maquiavel estava excluído dos bastidores do poder, isolado, mas não eliminado. Ante o domínio que lhe vigia a palavra, adentrar no reino da ficção quiçá tenha sido o único caminho que lhe restou. E na medida em que ele consegue dominar este universo teatral com grande versatilidade, se o mundo político lhe fecha as portas, invariavelmente sua genialidade lhe abre uma janela por meio das obras literárias. Não é à toa que nestas composições o autor tenha abordado a questão do conflito, da força e da astúcia como recursos para conquistar o que se ambiciona. Tais insinuações das obras literárias refletem, ao menos ambiguamente, o conteúdo principal de seus livros de política. Ora, é justamente por esta estranha coincidência que não se poderá ignorar a chave (carta de 9 de abril de 1513, de Maquiavel a Francisco Vettori, Florença) deixada pelo Florentino para ler sua produção:


Se chegaste a cansar-te o discutir das coisas por ver que muitas vezes acontecem os casos fora dos discursos e conceitos que se fazem, tendes razão, porque o mesmo me aconteceu a mim. Mesmo assim, se pudesse os falar não poderia evitar os encher a cabeça de castelinhos, porque a fortuna decretou, não sabendo nada da manufatura da seda nem dos negócios da lã, nem dos lucros e perdas, eu deva falar de política, e a menos que faça voto de silêncio, devo discuti-la. Se pudesse sair do domínio iria também eu até ali a perguntar se o Papa está em casa, mas entre tantas graças, a minha por descuido ficou por terra. Esperarei até setembro (MAQUIAVELO, 2013, p. 80, grifos nossos).



Maquiavel era, coerentemente como expressa na sua missiva, um teórico do fenômeno político, pois não resta dúvida à questão, posta em suas próprias palavras, sobre qual era sua vocação. A sua posição econômica e social após a demissão da chancelaria era frágil, o que lhe possibilitou ter uma noção concreta dos perigos que enfrentava. As próprias ilusões se desfaziam a cada carta trocada com Vettori, vendo que seu estreitamento com o amigo não prosperava em convencer aqueles que dominavam o poder de Florença. Marie Gaille-Nikodimov (2008, p. 117) é aberta em afirmar que “Maquiavel tinha suscitado grande irritação por causa do seu papel cada vez mais importante na República florentina durante o gonfalonariado de Piero Soderine”, além de muitos discordarem de este ocupar funções reservadas a “pessoas oriundas de linhagem mais elevada do que esse filho de ‘bastardo’ da família Maquiavel”.

A chave das peças é dada pelo próprio Maquiavel: “... não sabendo nada da manufatura da seda nem dos negócios da lã, nem dos lucros e perdas, eu devo falar de política, e a menos que faça voto de silêncio, devo discuti-la” (MAQUIAVELO, 2013, p. 80). Esta passagem é significativa porque Maquiavel continua se vendo como um teórico da política que, mesmo impedido de realizar sua vocação e tendo oportunidades em uma cidade que possui outras atividades para trabalhar, ele havia conservado uma espécie de compromisso com sua natureza. É curioso que, mesmo tendo trilhado pelo caminho das composições teatrais por um período, o conteúdo das suas peças emprega o mesmo tratamento de suas obras políticas, como se fosse um tipo de espelho que ocorre, provavelmente, por duas razões: ser fiel ao seu dom de observar bem as coisas do Estado; depois, frustrado pelo não reconhecimento de amor à pátria, usa sua fecunda criatividade para persistir no uso de sua aptidão de modo velado. As obras parecem ser, por sua vez, correspondentes e, ao mesmo tempo, interligadas de maneira disfarçada, para evitar as reações generalizadas que a simples menção do vocábulo Maquiavel provocava nos senhores de Florença. A carta a Vettori é, como se vê, uma declaração inequívoca de sua exclusiva vocação e, igualmente, não pode ser relegada, já que é uma tomada de referência com a política, deixando entender que a literatura pode ser outra forma de realizar sua disposição para o tipo de assunto, pois reflete sua condição de homem que leva a sério seu destino de teórico político impedido de seguir a predisposição de sua alma, em meio às suscetíveis ameaças a sua existência.

A carta dá vazão a interpretar que Maquiavel não está em silêncio quanto aos eventos da política, pois ele usa seus escritos em forma de peças como meio e instrumento de comunicação. Afinal de contas, tendo em vista que para seus contemporâneos ele só saberia falar das coisas do Estado, é óbvio que essas composições teatrais continuariam circulando, refletindo seus posicionamentos de uma maneira inusitada e não explícita, sem reflexões abertamente políticas. A arte teatral foi usada para alcançar determinado fim: manifestação de sua perspectiva política, ainda que somente nas suas entrelinhas, artifício necessário, já que havia uma indisposição dos Senhores de Florença contra Maquiavel, visto que tudo aquilo que era produzido por ele, de antemão, era considerado inaceitável, a exemplo de O Príncipe. Essa sanção dirigida aos escritos maquiavelianos exigia, da parte dele, uma inteligência no ato de escrever, uma sutileza que fosse capaz de colocar sua ponderação política de um modo tal que quem a visse de maneira desatenta não conseguisse enxergar qual era a sua verdadeira intenção, e, igualmente, aquele que lograsse entender a mensagem objetiva por trás da metáfora, não tinha como pôr à vista sem dar notoriedade política ao que não queria dar publicidade.



CONCLUSÃO

Os escritos políticos e a produção literária de Maquiavel estão, do ponto de vista do realismo, próximos, acentuando que as composições teatrais em nada diminuem a grandeza do autor, comprometido com a qualidade da abordagem do realismo político. A leitura das obras serve ao entretenimento garantido, mas este não deve ter sido a base do intento do filósofo, que raciocinava mormente acerca das questões do Estado.

Agora, que se sabe da chave de Maquiavel, não há alternativa senão ler suas composições com o firme propósito de atender a sua motivação mais íntima: discorrer acerca das coisas do Estado. Suas produções, ainda que sob disfarces e figuras de linguagens, imiscuem-se nos assuntos do governo, do homem público. Portanto, não se pode deixar de pensar que as comédias sejam como uma de adendo político para expor novas revelações da arte de estado.

Se o Florentino tinha como única motivação servir a sua cidade como um conselheiro político, as puras intenções literatas do autor se tornam frágeis e, ao menos, provocam dúvidas de sinceridade de que sua motivação com as peças era apenas literária. De mais a mais, se as peças eram para ser escritos não-políticos, ainda que forçando o cotejamento das obras, vislumbram-se pormenores que sugerem que, mesmo que tivessem motivação literária exclusiva, vê-se traços dos conteúdos políticos alocados metaforicamente nelas. Na verdade, com a declaração da carta de Maquiavel, fica evidente que há uma demarcação nítida entre o teórico da política e o esteta, ou entre as obras de entretenimento (que não são somente isto) e as de instrução formal acerca das coisas do Estado. E embora uns considerem que a Mandrágora e Clizia sejam apenas manifestações bem escritas para o teatro, ou uma espécie de exercício retórico sem qualquer vínculo com a opulenta coletânea de pensamentos de coisas do estado, os temas encenados por elas adentram no conteúdo político do Florentino. Ademais, não se pode desconsiderar a declaração direta de Maquiavel de que ele não consegue se dedicar às transações bancárias e ao comércio da seda porque só tem como objeto da reflexão a política.

Enquanto trabalhava na chancelaria florentina, Maquiavel estava inteiramente envolvido nas questões políticas vinculadas às suas atribuições, mas nunca descuidou das composições literárias, tampouco quando foi obrigado a deixar o cargo. De acordo com Hale (1963, p. 21),

alguns dos poemas, na verdade, como as duas Décadas, estão diretamente ligados à política, e especialmente interessante sob êsse [sic] aspecto é O Asno de Ouro, que mostra a política intrometendo-se num meio romântico, com efeito quase cômico.

De resto, não se deve esquecer que em carta de 9 de março de 1498, endereçada a Ricciardo Becchi, Maquiavel enviava notícias sobre o Frei Girolamo Savonarola. Nesta missiva, percebem-se as agudíssimas observações políticas em uma prosa refinada. O que se depreende deste balanço de ideias é que o Florentino, no escrito, parecia procurar alguma coisa que não havia alcançado, dando a cada leitor, seja no texto político, seja no literário, o que cada um poderia identificar. Seja como for, sua escrita teatral (contando com o ato da encenação) cobria o que à sua volta acontecia em Florença. A fruição descontraída das peças sem quaisquer implicações dos assuntos de estado pode ser uma porta de entrada aos escritos políticos, ainda que o leitor não perceba a conexão da comédia com os assuntos do Estado. Uma coisa parece certa, as leituras das obras menores, conforme mencionado, facilitam o entendimento do corpus machiavellicus. Ignorar este auxílio pode ser engano incompreensível, já que se perde a oportunidade de conhecer como Maquiavel utilizou o recurso literário e se havia aí algum subsídio para a boa leitura das obras políticas.

De qualquer modo ou aspecto que se analise, mesmo antes (e depois) de Maquiavel, com o intuito de evitar dissabores, os filósofos fizeram uso de estratégias oblíquas para contornar a censura e as ameaças que recaíam sobre si. E o teatro ocupa posição de destaque como recurso para exposição das ideias de maneira velada, expondo determinada perspectiva através da ilusão encenada, encobrindo aquilo que não poderia ser confessado abertamente, conquanto o escritor sempre imagine se o auditório ideal terá a capacidade de retirar a mensagem posta nas entrelinhas. E se o Florentino deixou sinais de que este era o caminho mais adequado para a interpretação das peças, junte-se a isso, antes de mais nada, que – sendo sua intenção que o bom discernimento de seu leitor conseguisse unir o conteúdo das produções, como uma aranha que lança sua rede, embora, dados os perigos que enfrenta, precisasse esconder a mensagem imediata – espera que seu verdadeiro público seja capaz de entender sozinho a estreita ligação dos conteúdos de ambos os escritos.



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1 O vocábulo “estética” será usado para descrever a percepção artística ou o juízo decorrente da apreciação e manifestação da arte, sabendo que o termo não era próprio desta época, mas serve para diferenciar a obra da composição política de Maquiavel.

2 Evidente que a conquista envolve a questão da habilidade do ator político em resistir às situações adversas e contrárias ao novo mando. Este tema não será desenvolvido na presente oportunidade.

3 Deixarei de lado “o discutir as repúblicas”, como se vê no capítulo II de O Príncipe.

4 De acordo com a época, instituição florentina judiciária e policial.

5 Trata-se de um tipo de tortura, a qual foi submetido Maquiavel. Com a queda da república florentina, alguns particulares, como Agostino Capponi e Pietropaolo Boscolo, tramaram a deposição do governo mediceo e listaram os nomes de possíveis aliados. O Conselho dos Oito tomou conhecimento desta lista, que tinha o nome de Maquiavel. Presos os dois aludidos, confessaram suas intenções. Maquiavel foi preso e colocado no aparelho para tortura.

6 Para Harvey Mansfield (2000), o personagem Messer Nicia teria cumprido outro propósito na trama, estando vinculado à continuidade da república florentina.

 

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