Contra uma cultura estanque: o jogo como diversidade
Contra uma cultura estanque: o jogo como diversidade
Danilo Silvestre Janeiro
Bacharel em Filosofia e Mestre em Educação, ambos os títulos pela Universidade de São Paulo. Trabalha com temas ligados a Jogos, Filosofia e Educação.
Resumo: Este artigo parte da afirmação de Johan Huizinga de que o jogo é a origem da cultura, sugerindo que dentro de delimitações de regras, de espaço e de tempo, jogos estabelecem propostas autônomas capazes de gerar novos significados passíveis de serem apropriados pela cultura. Sua abordagem estabelece o jogo como um acontecimento na linguagem, iniciando uma linha de análise que nos leva a Gregory Bateson, autor que entende o jogo como uma estrutura linguística que envolve metalinguagem e metacomunicação para ressignificar os demais signos. Esses posicionamentos nos permitem entender o jogo como produtor de cultura e diversidade, elemento que ambos os autores consideram importante para impedir culturas e sociedades estanques.
Palavras-chave: Jogo. Linguagem. Lúdico. Diversidade.
Abstract: This article begins with Johan Huizinga's statement that games are the origin of culture, suggesting that, inside of delimitations of space, time and rules, games can establish autonomous proposals capable of creating new meanings which can be appropriated by culture. His approach establishes gaming as something happening inside language, allowing a line of analysis that will bring us to Gregory Bateson, who understands gaming as a linguistic structure, involving metalanguage and metacommunication to reframe other signs. These views allow us to understand games as producing culture and diversity, elements that both authors consider important to prevent stagnant cultures and societies.
Keywords: Games. Language. Play. Diversity.
Introdução
Na Europa do século XVII, jogos de todos os tipos eram vistos com grande desconfiança[1]. Representavam uma falta de moderação obscena e uma ausência de propósito que não combinavam com a seriedade e a religiosidade que a sociedade almejava. Jogos que envolviam elementos de acaso, como dados e cartas, eram vistos como incompatíveis com o pensamento cristão, que acreditava não existir azar e sim um determinismo divino. Mesmo durante a Revolução Científica, o acaso e a diversão dos jogos entravam em conflito com a racionalidade matemática e o desejo de dominar a natureza humana. Por isso, os jogos foram aos poucos sendo relegados apenas às crianças, que supostamente seriam ainda incapazes de conter seus prazeres e emoções.
Com a Revolução Industrial no século XVIII, os jogos continuaram a ser marginalizados, considerados fúteis e desnecessários para uma sociedade que valorizava a dedicação ao trabalho e à produtividade. Mesmo as brincadeiras infantis passaram a ter um caráter de “treinamento”, como se estivessem preparando as crianças para atividades que lhes seriam essenciais à vida adulta. Jogar pelo simples prazer de jogar era encarado como uma banalidade, o que criou uma dificuldade em conceber brincadeiras que não tivessem algum objetivo oculto ou propósito prático que as legitimasse.
Em nossa história recente o jogo tem sido, portanto, algo que ocorre à margem. Sua entrada no meio acadêmico como objeto digno de estudo é recente; a princípio, despertou o interesse de antropólogos no início do século XX apenas por seu papel privilegiado nas sociedades originárias e sua aparente relação com os rituais por elas praticados. Era a ligação entre jogo e rito que de fato gerava interesse: diversos estudos passaram a ligar os jogos de bola aos mitos em que deuses lutavam pela posse do sol[2], por exemplo.
O lugar do jogo na cultura contemporânea, por sua vez, só foi alvo de estudo a partir de um ramo da historiografia denominado “História Cultural”[3]. Sua intenção era, ancorado na História e na antropologia, mapear a experiência histórica humana fazendo uso das tradições e da cultura popular de cada época. Em vez de listar os grandes eventos históricos, sua proposta era encontrar as narrativas que estão presentes nos mais diversos modos de vida de cada período. É justamente o caráter periférico do jogo, portanto, que o torna desejável: estudá-lo seria uma oportunidade de adentrar em terrenos pouco iluminados da História, acessando uma parcela da população que não é tradicionalmente considerada como “agente histórico” e, portanto, continuamente negligenciada do estudo acadêmico. A intenção deixa de ser então analisar o lugar social do jogo e sua relação com o sagrado e passa a ser construir um canal de acesso aos jogadores, resgatando uma certa maneira de ser que engloba, também, o ato de jogar.
A chegada do historiador Johan Huizinga ao estudo do jogo se faz justamente através da “História Cultural”. Seu principal interesse acadêmico era quebrar o estigma da Idade Média, mostrando uma fluidez entre o período medieval e o Renascimento. Em 1919 Huizinga publicou “O Outono da Idade Média”[4], que incluiu um detalhado estudo do cotidiano na Baixa Idade Média — e que passa, necessariamente, pela presença do jogo na vida social. Nele o jogo ainda tem caráter periférico, mas é justamente por isso que ele se torna uma das janelas possíveis para analisar o que jazia oculto no período medieval. Foi essa obra que estabeleceu Huizinga como historiador renomado e autoridade no período abordado.
Em seu discurso anual como Reitor da Universidade de Leyden em 1933, entretanto, o foco de Huizinga parece ter migrado subitamente para o conceito de jogo não como elemento periférico, mas como elemento central. Intitulado “Sobre os limites entre o lúdico e o sério na cultura” e depois publicado em texto sob o nome de “Sobre o lúdico e o sério”[5], Huizinga tenta apontar como há um elemento de extrema seriedade no jogo, e que o jogo em sua vertente mais séria está presente em diversas atividades humanas que não são normalmente associadas ao lúdico, como a literatura ou a justiça. Sua intenção é demonstrar que o jogo não é algo que ocorre à margem da cultura, mas sim algo que tem papel fundamental na cultura humana. Pouco após seu discurso como Reitor, Huizinga apresenta uma conferência intitulada “The Play Element of Culture”[6] em que insiste em abordar o jogo não como elemento presente na cultura (um dentre muitos elementos que compõem a produção humana), mas como um elemento estrutural da cultura. Sua proposta é de que a cultura, por si só, possui um caráter lúdico que a sustenta — o jogo não seria uma produção cultural, mas sim a própria cultura, aquilo que permite essa produção.
Huizinga estava ciente de que sua proposta era ousada, trazendo para o centro do palco um assunto que até então parecia meramente anedótico. Tanto a antropologia quanto a “História Cultural” nunca haviam dado tanta atenção ao jogo e, certamente, nunca haviam cogitado dar-lhe um papel estrutural na existência da cultura humana. Por isso, em 1938, aos 66 anos, Huizinga publica o livro “Homo Ludens”[7] para, de maneira mais extensa e trabalhada, defender essa tese.
Em “Homo Ludens”, Huizinga admite que é possível encontrar indícios de sua convicção de que “é no jogo e pelo jogo que a civilização surge e se desenvolve” desde suas primeiras obras em 1903, época de seu afastamento do estudo de Linguística Comparada para adentrar na área de historiografia. Ainda que jogos não sejam um conceito central em seus primeiros trabalhos, sua concepção de História envolve um certo grau de negação às ideias de um “determinismo” e de uma “naturalização” da civilização humana e de suas instituições. É esse fio estruturante — uma recusa da possibilidade de uma cultura única, estanque ou pré-determinada — que une seus trabalhos como historiador a seu interesse teórico pelos jogos, motivado pela convicção de que os jogos são uma estrutura que permite a variedade de culturas, ou seja, que eles vão além de serem apenas sintomas de uma variedade pré-existente.
A intenção de “Homo Ludens” é, portanto, explicitar essa convicção antes velada em sua obra e demonstrar as origens desse pensamento, propondo uma análise não apenas dos impactos do jogo na cultura, mas também do jogo em si e de sua presença em “tudo o que acontece no mundo”[8]. Essa busca pelo “jogo em si mesmo” é feita a partir de múltiplas abordagens: há um trabalho etimológico considerável, aliado a relatos tanto etnográficos quanto históricos focados em colocar o lúdico em primeiro plano. No entanto, ainda que grande parte das leituras de “Homo Ludens” tenha como tendência a tentativa de estabelecer um conceito fechado de jogo[9], acreditamos que a obra de Huizinga trabalha mais na direção de construir um cenário do que de fechar um conceito. Sua definição de jogo, por exemplo, é bastante vasta:
“O jogo é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de uma consciência de ser diferente da 'vida cotidiana'.”[10]
Temos nesta breve definição algumas linhas gerais que delimitam nosso objeto de estudo: ao falar de jogos, estamos falando de atividades voluntárias e consentidas, limitadas no tempo (começam e terminam) e no espaço (possuem local determinado), que causam uma determinada gama de sentimentos (tensão e alegria), são perceptivelmente distintas da vida cotidiana (que possui regras diferentes daquelas presentes no jogo) e possuem um fim em si mesmo.
Dentre todos esses elementos, talvez o mais importante para a empreitada de “Homo Ludens” seja propor que o jogo possui “um fim em si mesmo”. Essa colocação, aparentemente simples, é suficiente para alçar o jogo a um novo patamar, retirando-o da posição periférica e do caráter de mero efeito dos tempos ou da cultura. Esse é, para nós, o cenário que “Homo Ludens” tenta construir: um em que o jogo tem posição central não apenas na obra, mas também na vida.
Isso nos parece ainda mais evidente quando Huizinga propõe que o jogo possui uma função significante.[11] Isso significa que o jogo não é uma referência a algo externo a ele, não é versão “reduzida”, “simplificada” ou “segura” de uma atividade mais importante do que ele, e também não é “treinamento” para ações futuras que terão impacto no mundo da vida. O jogo, por si só, significa algo, possui um sentido. Logo de princípio, Huizinga inverte a percepção básica de uma visão utilitarista do jogo: em vez de o objetivo da atividade lúdica ser externo a ele — incluindo a sensação física ou psicológica que o jogo porventura venha a causar —, seu objetivo passa a ser o sentido que o próprio jogo estabelece e encerra em si próprio. O jogo é uma proposta de sentido, ou seja, ele estabelece regras de direção, interpretação e significado — regras que, como vimos na definição de jogo apresentada anteriormente, possuem duração, local e efeitos específicos.
Para Huizinga, o principal problema na análise corriqueira do jogo é sempre entendê-lo como ligado a algo que não seja ele mesmo. Por séculos, o jogo só seria entendido como ferramenta para “descarga de energia vital superabundante, (...) satisfação de um certo ‘instinto de imitação’ (...), uma preparação do jovem para as tarefas sérias que mais tarde a vida dele exigirá (...), desejo de dominar ou competir”[12]. Não é à toa, portanto, que o interesse acadêmico pelo jogo seja diminuto: ele é visto sempre como efeito de alguma necessidade, nunca como causa. Quando Huizinga inverte o foco, temos o jogo como o causador de um sentido que transcende as necessidades imediatas da vida[13]. Ele é totalizante[14], ou seja, encerra em si mesmo o próprio significado. Por essa análise, temos uma espécie de autopoiese: o jogo é sua própria causa e seu próprio objetivo.
Não queremos com isso propor que não exista responsabilidade humana na proposta do jogo — afinal de contas, um jogo não pode propor a si mesmo. É evidente que são os jogadores que propõem a existência de um jogo e, portanto, são sua causa direta. Ainda assim, há um grau de autonomia daquilo que o jogo pode propor. Isso só é possível porque o jogo é uma proposta de regras que não necessariamente apontam para quaisquer regras ou modelos que se encontrem fora dele. As regras do jogo não precisam estar submetidas às necessidades físicas ou psicológicas humanas; pelo contrário, muitas vezes ignoram essas necessidades ou dobram-nas até o limite. É possível propor sistemas de regras que ignorem ou contrariem os códigos morais vigentes, ou até mesmo que sejam de solução impossível ou inalcançável para os corpos humanos — embora jogos assim talvez não sejam populares, isso não os impede de serem jogos. Ao invés de encaixar o jogo numa perspectiva determinista, o que Huizinga nos propõe é que o jogo quebra o determinismo, inventando suas próprias regras e relações causais de maneira irracional[15] e autônoma[16].
Huizinga não quer insinuar que não exista racionalidade no jogo, mas sim que ele é desprovido de uma certa racionalidade que mede os custos, os ganhos e os impactos de cada ação na vida individual e social. De fato, alguns jogos permitem um ganho real — seja um determinado estado de espírito, o desenvolvimento de alguma habilidade ou, em algumas culturas, até mesmo ganho financeiro, e o jogador pode ter isso em mente — mas o que Huizinga propõe é que jogamos independentemente desses ganhos ou até mesmo em detrimento deles. Antes de ter qualquer impacto no mundo, o jogo propõe uma série de condições internas que podem negar inteiramente as condições ditas “racionais” de uma sociedade. Essas condições “racionais” podem estabelecer, posteriormente, como essa sociedade lidará com os jogadores, os vencedores e os perdedores, por exemplo, mas o jogo existe — como proposta — momentaneamente apartado delas.
É desse caráter propositivo do jogo que Huizinga parece extrair uma certa universalidade, acreditando que o jogo é inerente ao homem e não o efeito de sociedades específicas. Assim, o jogo não seria uma espécie de atividade cultural associada a apenas alguns povos ou culturas, a uma determinada maneira de entender ou conceber o universo[17], mas sim o simples ato de imaginar a realidade[18], desprendendo em alguma medida essa imaginação das regras e das necessidades presentes nesta realidade. Isso não quer dizer que uma sociedade não necessite do jogo — pelo contrário, veremos que Huizinga enxerga no jogo algo de essencial à humanidade — mas sim que aquilo que o jogo propõe não é uma atividade necessária, ou seja, não precisaria ser executada fora do ambiente do jogo. Daí temos o caráter voluntário do jogo: é de sua autonomia do reino da necessidade que chegamos à conclusão de que o jogo não pode, sob nenhuma hipótese, ser uma obrigação. De maneira similar, ter uma duração e um espaço determinados também impede o jogo de ocupar todo o tempo e todos os lugares, situação em que o jogo também se transformaria em necessidade e obrigação.
Para Huizinga, o valor do jogo não está no que um determinado conjunto de regras produz em determinada sociedade, no papel ritual ou psicológico de alguma prática lúdica específica, ou na relação que algum jogo tem com uma atividade prática da realidade; em vez disso, o valor do jogo está em sua capacidade estrutural de propor uma nova realidade sem, no entanto, substituir a anterior — motivo pelo qual o jogo necessariamente termina, permitindo que o estado de coisas anterior possa retomar seu lugar e seu curso. Essa proposta sem substituição que o jogo oferece também não interrompe necessariamente o estado de coisas que a precede — ela ocorre, na verdade, em paralelo.
Essa proposta do jogo como uma “imaginação da realidade” que ocorre em paralelo à vida comum fica mais evidente quando Huizinga aproxima o jogo e a linguagem. Para ele, a simples designação dos objetos que ocorre na linguagem cria um mundo “pensado” que existe em paralelo ao mundo “material".[19] Isso não significa que o “jogo de linguagem” liberta a linguagem humana da matéria, mas permite que ela estabeleça um outro caminho — paralelo — que, se não inteiramente desligado de suas regras, ao menos permite algum afastamento de sua racionalidade e de suas necessidades. Todo jogo é, de certa maneira, um “jogo de linguagem”: propõe um novo mundo relativamente autônomo, desatrelado daquilo que Huizinga intitula “vida comum”[20]. Como vimos, é essencial para a obra histórica de Huizinga a possibilidade de que existam caminhos paralelos capazes de divergir de um determinismo histórico, e aqui temos uma espécie de garantia de diversidade: graças ao jogo, as necessidades da “vida comum” existem paralelamente a uma série de outras necessidades que existem como proposta. Se podemos encontrar em Huizinga qualquer traço de utilitarismo, ele está aqui: o grande propósito do jogo está em não ser a “vida comum” — mesmo nos momentos em que ele se parece com a “vida comum” tão vivamente[21].
Embora careça de uma definição mais precisa na obra de Huizinga, somos levados a crer que a “vida comum” nada mais é do que um conjunto de regras já “naturalizadas”, ou seja, estabelecidas como imaginação comum, com duração indefinível e espaço ilimitado. A “vida comum” é o terreno da “seriedade”, em que as ações possuem consequências de longa duração. Para Huizinga, o jogo se difere justamente porque acontece em espaços delimitados e por períodos de tempo determinados — o jogo sempre acaba, momento em que retornamos às regras e ao mundo “naturalizado” anteriormente e, embora não invalidemos todas as possíveis consequências que o jogo tenha causado, tentamos encapsular essas consequências em sua realidade própria, que se “dissipa” quando o jogo termina. Graças a esse caráter momentâneo do jogo, podemos afirmar que ele existe em constante relação de resposta à “vida comum”[22] — simplesmente por não ser recorrente e por apresentar-se como “proposta de evasão” desse conjunto de regras que sempre assume o mundo quando a imaginação do jogo termina. Ou seja, ainda que o jogo tenha alguma autonomia de proposta e regras cujo objetivo central é simplesmente estabelecer o jogo — o que já é suficiente para que seja analisado em si próprio — há algo de evasão no jogo que lhe garante sempre o traço de “realidade outra” e, com isso, uma alcunha de não-seriedade.
Ainda que o jogo seja temporário e com uma finalidade autônoma[23], sem nenhuma finalidade exterior a ele próprio, seu impacto na cultura é inegável. Huizinga nos propõe, inclusive, que o jogo quando termina torna-se cultura, pois passa a ser relembrado, transmitido e reproduzido, gera grupos de praticantes e, talvez mais importante, permite possibilidades antes não previstas socialmente. Para Huizinga, “é possível ao jogo alcançar extremos de beleza e de perfeição que ultrapassam em muito a seriedade”[24], de modo que o jogo funciona como espécie de “ampliação” da vida comum. Através de regras delimitadas, valores pré-definidos e objetivos claros, os jogos permitem alcançar ideias de “perfeição” que o próprio jogo, em sua finalidade autônoma, permite idealizar e que seriam inviáveis — ou careceriam de clareza — fora dos limites do lúdico.
O que Huizinga nos propõe é mais do que uma simples inversão de foco, sugerindo que vejamos os jogos em si mesmos em vez de como ferramentas. Há também uma inversão implícita de temporalidade, que coloca o jogo como origem. Como vimos, o jogo tem um caráter de resposta a uma realidade anteriormente estabelecida, propondo um caminho paralelo momentâneo, mas isso não impede Huizinga de supor que toda realidade é estabelecida antes como jogo.
Para o autor, o costume de “comparar o mundo a um palco”, por exemplo, é mero “eco do neoplatonismo então dominante, com um tom moralista fortemente acentuado”[25]. A comparação remete à ideia de que há um mundo ideal, em que as coisas existem em toda sua realidade e necessidade, e que aquilo que encontramos em nosso mundo é apenas uma versão “vã”, despropositada, sem reais motivos ou consequências. A moral desejável estaria portanto fora, e só poderia ser encontrada quando nos desligamos das futilidades que compõe a “vida comum”. Seguindo esse modelo, o jogo sofreria da mesma lógica de subordinação: seria a “vida comum” que viria primeiro, em toda sua “realidade” e sua moral desejável, e o jogo responderia a ela como uma versão despropositada, inconsequente, mera banalidade. Sob esse ângulo o jogo seria mera resposta, acontecendo temporalmente depois da “vida comum” como simples cópia malfeita. É essa a dinâmica que Huizinga deseja quebrar, invertendo o caráter temporal e levantando-se contra o que ele enxerga como um neoplatonismo. Em “Homo Ludens” podemos propor que a ética, a moral, o direito, a perfeição, não são conceitos externos, verdadeiros; são conceitos que surgem dentro e a partir de uma realidade regrada, enquanto propostas. Isso equivale a dizer que esses conceitos fundamentais para nossa percepção de humanidade e de civilização surgem, para Huizinga, de dentro do jogo e nele são experimentados pela primeira vez, ainda que, a princípio, de maneira temporária.
Isso não significa necessariamente que o jogo é uma estrutura moralizante, ou seja, que tenha a intenção de transmitir uma determinada moral. Não há uma moral externa à qual o jogo precise se referir necessariamente, nem de modo a reforçá-la e nem de modo a contestá-la. O que Huizinga parece nos propor é que o jogo experimenta com novas moralidades, sendo durante sua realização desatrelado de qualquer noção de verdade ou falsidade, vício e virtude.[26] Se o jogo porventura reforça uma moral já naturalizada, presente na “vida comum”, somos levados a crer que não o faz por necessidade — dado o caráter originário que Huizinga atrela ao jogo, é bem possível que o tom moralizante de alguns jogos seja simplesmente um retorno a uma moral que o próprio jogo instituiu momentaneamente como proposta, e cujos efeitos sobre os jogadores foram tão desejáveis que os levaram a esticar essa moral para além das fronteiras do lúdico. Isso explicaria, segundo Huizinga, a presença do jogo dentro de instituições ditas “sérias” da “vida comum”, como os Tribunais de Justiça, por exemplo: o senso de justiça se faria primeiramente dentro das fronteiras de um jogo, onde seria possível delimitar com clareza e controle o que pode ou não pode ser feito a partir de um conjunto rígido de regras acordados por todos os participantes; a partir da experiência do jogo deseja-se então que essa “justiça” exista também para fora dele, de modo que é necessário reproduzir algumas das estruturas desse jogo no âmbito da “vida comum”. Isso explica o motivo de julgamentos terem começo, meio e fim; lugares definidos, dotados de símbolos determinados; regras bem estabelecidas, ainda que muitas vezes pareçam pouco práticas; vencedores e perdedores claros; vestimentas adequadas e palavras específicas que devem ser pronunciadas numa ordem pré-determinada; etc. Há uma ritualística presente nas principais instituições humanas que, para Huizinga, têm sua origem no jogo — o “Homo Ludens” trata, portanto, de perceber o “elemento jogo da cultura”, a porção de jogo que dá sustentação, e origem, a todas as práticas humanas.
Para um observador presente dentro desse elemento jogo e um outro observador posicionado fora do jogo, um mesmo objeto pode adquirir significados muito distintos, cumprindo funções que não necessariamente se conversam e parecem independentes umas das outras. Uma bola, por exemplo, é um objeto de desejo num jogo de futebol, com sua posse sendo reverenciada e cumprindo uma função específica nas regras, mas fora desse jogo a bola é um objeto de pouca ou nenhuma utilidade prática, desligado de um uso racional. A reverência pela bola de futebol num período em que o jogo não esteja acontecendo existe apenas em seu caráter de item imprescindível para que o jogo aconteça — ou seja, nesse estado ele é virtualmente jogo. Mas como essa dinâmica ocorre enquanto o jogo acontece? Será possível para um jogador perceber, simultaneamente, o sentido que um objeto tem dentro e fora do jogo? Ou seja, seria capaz o jogador de, em meio ao jogo, entender a insignificância externa do objeto “bola” de nosso exemplo, escolhendo — ou oscilando — entre suas duas funções possíveis? Ou uma vez dentro do jogo a bola não poderia mais perder seu estatuto determinado pelas regras, sob risco de que o jogo termine?
A questão é importante porque perceber, simultaneamente, que um objeto tem valor no jogo mas não o tem fora dele é essencial para que sejamos capazes de perceber que um jogo é um jogo. Por mais sério que um jogo pareça enquanto ele ocorre — principalmente em termos de comprometimento e de esforço — deve haver uma percepção possível de que o jogo é, na verdade, um jogo, e que portanto o cumprimento de suas regras não pode ir às últimas consequências caso essas consequências possam ter impactos negativos na “vida comum”. Estamos falando, aqui, de um medo recorrente de pais e educadores, temerosos de que uma criança que esteja em jogo não seja capaz de diferenciar o jogo da dita “vida real”. Curiosamente, esse medo é apenas reforçado quando desejamos um jogo capaz de ensinar ou preparar uma criança para uma atividade adulta através de um jogo — o medo e o desejo, nesse caso, compartilham uma certa crença de que o jogo é uma autonomia totalizante, e que seus malefícios e benefícios não seriam percebidos como jogo pelas crianças, mas sim como “vida comum”, uma realidade inescapável.
O jogo, portanto, envolve essa simultaneidade de consciência e ilusão: a criança que brinca de ser algo que não ela própria torna-se essa coisa outra, sem no entanto esquecer que ela é uma criança que brinca. As regras do mundo, supostamente desnecessárias frente à autonomia de objetivo do jogo, aparecem agora como fundamentais para que o jogo seja proposta temporária, passível de ser encerrada a qualquer momento — mesmo quando deseja continuar ou se estender, ela o faz recomeçando, já que o jogo sempre nos oferece a possibilidade de acontecer novamente. É por sabermos necessariamente que estamos jogando que podemos deixar de jogar, e é só da percepção de que o jogo não é a “vida comum” que sua autonomia de proposta se faz possível e passa a ser desejável, ou seja, passa a ser algo que fazemos mesmo quando isso contraria o andamento da vida cotidiana ou aquilo que Huizinga chama de “racionalidade”.
Temos então uma série de propostas que nos parecem, à primeira vista, paradoxais: o jogo tem ao mesmo tempo algo de autônomo mas é condicionado pelo mundo fora dele; o jogador está ao mesmo tempo iludido e consciente da ilusão; as regras momentâneas do jogo são propostas de algum lugar fora dele, supostamente um mundo de “seriedade” em que as regras são rígidas e constantes; o jogo acontece porque suas consequências são internas, controladas e momentâneas, mas confessa muitas vezes o desejo de que essas consequências prolonguem-se ao fim do jogo, estendendo a diversidade que cria para além dele próprio.
Gregory Bateson e a cismogênese
A relação entre o jogo e o mundo fora dele também acabou constituindo uma das áreas de maior importância no trabalho do pensador Gregory Bateson, ainda que jogos não fossem, a princípio, um interesse central de seus estudos. Sua chegada ao tema, assim como ocorreu com Huizinga, foi tangencial, como consequência de uma série de outras questões que datam de seus trabalhos iniciais. Ainda que tenham variado imensamente não apenas seus interesses mas também suas ferramentas teóricas — Bateson transitou da biologia à antropologia, passando pela psiquiatria, psicanálise, linguística e ecologia — seu interesse eventual em definir o jogo formalmente, não como consequência ou efeito, não como fenômeno psicológico ou como mera catalogação histórica, coloca seu trabalho na mesma linha proposta por Huizinga em seu “Homo Ludens”. Para compreender essa linha, entretanto, é necessário compreender as questões que colocaram Gregory Bateson em contato com o conceito de jogo e suas abordagens para lidar com esse conceito.
Nos anos 30, ainda estritamente como antropólogo em contato com tribos da Nova Guiné, Bateson percebeu que a existência de uma “plateia” era uma consequência natural das apresentações sociais e dos rituais, mas era também sua causa — sem plateia, nenhuma apresentação teria real motivo para existir. A plateia, nesses casos, funcionaria como estímulo para as apresentações, mas ela só está presente por ser estimulada pela apresentação que acontece. Bateson intitulou essa relação de “cismogênese”, quando a distinção entre os elementos é a responsável não apenas pela sua definição — o nome que recebem e sua importância — mas também pelo seu comportamento e pelo papel social que desempenham. Nas tribos analisadas por Bateson, comportamentos opressores eram tanto causa quanto consequência de grupos submissos, gerando uma relação exponencial: quanto mais subordinação, mais repressão; quanto mais repressão, mais subordinação. Sem um outro elemento capaz de romper ou alterar essa diferenciação entre os elementos que respondem um ao outro de maneira direta, as relações sociais tendem, na visão de Bateson, apenas ao agravamento, espiralando rumo aos seus extremos.
Segundo Bateson, o status quo é uma espécie de “equilíbrio dinâmico”[27] em que, apesar da aparência de continuidade, pequenas mudanças acontecem o tempo todo. Essas mudanças, no âmbito social, ocorreriam por conta de uma constante tendência à diferenciação através de processos que aumentam o “contraste” entre as entidades, enquanto a aparência de continuidade ocorreria por uma série de outros processos que conteriam ou reduziriam ao mínimo essas constantes diferenciações.
Para explicar esse processo, Bateson recorre ao termo “cismogênese”[28], cunhado em sua tentativa de explicar a dinâmica social dos rituais realizados pelo povo Iatmul, na Papua Nova Guiné. A cismogênese, em suas palavras, é “um processo de diferenciação nas normas de comportamento individual, resultante da interação cumulativa dos indivíduos”[29]. Esse processo de diferenciação ocorreria tanto em âmbito sociológico quanto psicológico, no que ele chamaria de “psicologia social”: numa relação social, a reação dos indivíduos altera e é alterada pelas reações de outros indivíduos. Por conta disso, os próprios termos dessa relação alteram-se ao longo do tempo, mesmo sem a ocorrência de eventos externos capazes de interferir ou alterar sua estrutura ou as reações dos envolvidos.
A ideia de que uma relação entre indivíduos ou grupos de indivíduos tenda naturalmente a um processo de diferenciação que, por conta disso, altera o comportamento dos indivíduos envolvidos é essencial para Bateson escapar, em sua obra antropológica, do conceito de “comportamento de sociedade”. A ideia de que uma sociedade possui um comportamento determinado que lhe é característico, segundo o autor, leva a percepções arriscadas como a de “inconsciente coletivo”, ou seja, à visão de que há um pensamento comum capaz de reger todos os comportamentos de maneira uniforme e estanque. Através da cismogênese, Bateson pode sugerir que os indivíduos, em vez de responder a um inconsciente central, estão respondendo uns aos outros numa relação que ao mesmo tempo reforça e diferencia o comportamento de cada indivíduo. Há uma “interação cumulativa” capaz de reproduzir um determinado comportamento padrão; essas interações, no entanto, causam como resposta um crescente processo de diferenciação, o que faz com que grupos respondam uns aos outros reforçando suas características de distinção e, assim, afastando-se ao longo do tempo.
O conceito de “cismogênese” é, de certa maneira, a resposta de Bateson a uma questão que se fazia progressivamente mais presente no campo da antropologia e que faz uma aparição importante em “Homo Ludens”: estariam os envolvidos nos ritos sociais verdadeiramente convictos de sua realidade? Quando tribos utilizam-se de “máscaras” para adotar diferentes personalidades, por exemplo, estariam elas cientes de que se trata de uma encenação? E, mais importante: os membros da tribo que concedem a determinados grupos, sob as máscaras, novas identidades e direitos, tolerando inclusive diversas violências praticadas sob a “persona” da máscara, acreditam de fato na existência dessa “transmutação”? Fugindo do estereótipo comum do “selvagem ingênuo”, supostamente incapaz de reconhecer a identidade oculta por trás da máscara, Bateson coloca a questão em outros termos. A crença no ritual, no jogo e na fantasia não ocorreria no indivíduo, mas na relação, seja ela “complementar” ou “simétrica”: no caso hipotético que descrevemos acima, a máscara só existe porque há uma plateia que a legitima, mas a legitimação só existe porque a máscara existe. Em vez de uma relação entre “enganadores” e “enganados”, temos uma relação de mútua dependência em que um dos lados age como se acreditasse justamente porque o outro lado age como se houvesse essa crença. Dado que nesses casos um lado reforça o comportamento do outro, passamos a ter um como se que, de fato, é — da mesma maneira que uma criança, descrita por Huizinga em “Homo Ludens”, assusta-se com o leão fictício que ela sabe não ser real, e que por sua vez só existe justamente porque a criança age como se ele fosse de verdade. O próprio Huizinga, ainda que aparentemente alheio ao conceito de “cismogênese” de Bateson (cunhado anteriormente à produção de “Homo Ludens”), afirma que a relação “enganador” e “enganado” é uma “corruptela posterior”[30] ao conceito de jogo e não pode ser utilizada como modelo para entender nem o jogo nem os rituais nas tribos estudadas.
O interesse pela cismogênese, pela relação entre grupos e pela realidade compartilhada do ritual levou Bateson, então, a se aprofundar na área da psicologia — área com que Bateson já flerta em sua obra “Naven”, ainda que assuma, nas notas de sua republicação, sua falta de contato teórico adequado na época de sua escrita. Mas o que nos interessa aqui é que, com esse trajeto, Bateson chega ao jogo, mais especificamente ao seu paradoxo: é possível acreditar e não acreditar na “máscara” simultaneamente, e esse processo produz uma fantasia, uma invenção — diversidade.
Uma teoria do jogo e da fantasia
Em seu “A Theory of Play and Fantasy”[31], Gregory Bateson busca encontrar na lógica analítica uma base epistemológica para uma teoria psiquiátrica. Sua intenção explicitada no texto é compor, em linhas gerais, um trajeto capaz de compreender quais são os “enquadramentos” possíveis para se analisar o discurso dentro da relação entre psiquiatra e paciente. Para isso, Bateson recorre a uma série de autores — especialmente Bertrand Russell e os primeiros trabalhos de Ludwig Wittgenstein — para estabelecer alguns pressupostos principais da linguagem. Embora seus interesses pela psiquiatria, psicologia e psicanálise permeiem o texto, nenhum deles pode ser satisfeito sem anteriormente compreender alguns elementos centrais de como a linguagem humana — e algo da comunicação animal — funciona.
A partir desses fundamentos da linguagem e da comunicação, Bateson tenta apontar o funcionamento peculiar do jogo e da fantasia na linguagem e só então, de maneira mais tangencial, como isso pode aparecer em situações clínicas. Embora a clínica certamente não seja de nosso interesse neste artigo e algumas questões lógicas apenas insinuadas por Bateson não possam ser devidamente aprofundadas no presente trabalho, os pressupostos, o trajeto e as conclusões a respeito do jogo em “A Theory of Play and Fantasy” nos oferecem um recorte valioso para pensarmos o jogo como produtor de diversidade.
Como ponto de partida para essa análise dos fundamentos da linguagem, Gregory Bateson assume[32] que a comunicação verbal humana ocorre em diferentes níveis de abstração, muitas vezes simultaneamente e de maneira aparentemente contraditória. O primeiro é o nível denotativo, em que as palavras possuem um sentido referencial e informativo. Ou seja, nesse grau de abstração as palavras tentam se “colar” aos objetos a que elas indicam, aproveitando-se de um uso habitual da linguagem. Para perceber o sentido de sentenças denotativas, tipicamente não é necessário conhecer o contexto, apenas compartilhar um conjunto de signos e reconhecer a quais objetos ou ideias esses signos se referem.
O segundo nível é o metalinguístico; nele, de forma explícita ou implícita — mas geralmente de maneira implícita —, as sentenças do discurso se referem à linguagem, não a objetos ou ideias. É no nível metalinguístico que conseguimos explicar a linguagem e seus sentidos, oferecendo diferentes regras de interpretação. Quando perguntamos sobre o sentido das palavras ou afirmamos que algo deve ser interpretado de maneira denotativa, por exemplo, estamos atuando de maneira metalinguística. Nesse nível de abstração, podemos sugerir outras relações entre as palavras, objetos e ideias, acrescentando sentidos não disponíveis previamente no nível denotativo.
Para além dos dois níveis anteriores há ainda o metacomunicativo, em que o discurso se refere à relação entre as pessoas que se comunicam naquele instante, abordando as maneiras com que algo foi comunicado ou dando indicações de como algo deve ser interpretado especificamente durante aquela comunicação. Nesse nível podem ser apresentadas nuances e ênfases que alterem a relação das palavras, objetos e ideias, possibilitando uma nova construção de sentido e, portanto, novos critérios de interpretação para compreender aquilo que está sendo comunicado.
Apesar das distinções, os três níveis são relações de abstração com a linguagem, ou seja, a linguagem nunca é as coisas — apenas aponta para elas, indicando diferentes maneiras de interpretação. Por isso somos capazes de reconhecer os signos como signos, ou seja, percebemos eles enquanto linguagem. Com isso, somos capazes de perceber que os signos podem se referir a objetos e ideias diferentes o tempo todo, interpretados em diferentes níveis de abstração. Isso nos permite, por exemplo, interpretar, desconfiar, alterar ou falsificar signos — ou seja, nos permite, entre outras atividades, a mentira, o humor, a fantasia e o jogo, situações em que o signo não aponta para onde ele parece (ou deveria, segundo o uso habitual da linguagem) apontar.
Cabe o alerta, no entanto, de que a relação entre alguns animais — que Bateson usa constantemente como referência, dedurando sua relação constante com a área biológica — apresenta indícios de que eles também são capazes de perceber que os signos são signos. Isso fica evidente ao ver aquilo que julgamos ser animais brincando, por exemplo: ao trocarem mordidas que nunca machucam e não cumprem as funções habituais da mordida — as lesões, os danos, etc. — temos então signos que são semelhantes, porém não idênticos, aos do combate. Trata-se de um exemplo de abstração por caracterizar metacomunicação: em algum lugar da comunicação desses animais há um alerta de como se interpretar esses signos de maneira que não sejam compreendidos como combate, ou seja, há uma mensagem de alerta de que aquela interação deve ser interpretada como um jogo.
A afirmação “isso é um jogo” ocorre, portanto, no nível da metacomunicação por apontar que, a partir dessa afirmação, a linguagem deve ser interpretada de maneira distinta do que era previamente. Afirmar que algo é um jogo seria, para Bateson, o equivalente a afirmar que as ações — e as palavras — nas quais estamos engajados naquele instante não denotam aquilo que essas ações denotam. A mordida “de brincadeira”, por exemplo, denota uma mordida, mas não aquilo que uma mordida denota. Aqui temos uma das maiores dificuldades da abordagem teórica dos jogos, um dos focos de Bateson no texto: a partir dos pressupostos a respeito da linguagem e seus níveis de abstração que estabelecemos anteriormente, o ato de jogar nos aparece como um paradoxo lógico.
O paradoxo em questão se encontra no fato de que o verbo “denotar” aparece, quando dizemos que a mordida “de brincadeira” denota uma mordida, mas não aquilo que a mordida denota, indicando dois níveis de abstração diferentes. Temos simultaneamente o primeiro nível de abstração, a denotação, e o segundo nível de abstração, a metalinguagem. A mordida de brincadeira remete à mordida real, mas não àquilo que ela significa — é o signo da mordida que interessa à brincadeira, de modo que ela no fundo está se referindo à linguagem, à existência de signos enquanto signos. No entanto, usar o signo enquanto signo não impede o signo “mordida” de denotar uma mordida. O que temos como resultado final são informações aparentemente contraditórias que, no entanto, causam um efeito real que nos interessa: aquilo que Bateson chama de jogo, brincadeira ou fantasia.
Para explicar melhor essa situação peculiar, Bateson recorre ao que chama de “relação mapa-território” da linguagem[33]. A mensagem, em qualquer nível de abstração, é uma abstração: como citamos previamente, ela não é, nem pode ser, os objetos a que se refere. Mesmo o sentido denotativo só pode ocorrer posteriormente a um sistema de regras metalinguísticas capazes de relacionar as palavras aos seus respectivos objetos — é a normalização, e não uma relação intrínseca e indissolúvel com o mundo, que torna esse sistema de regras aquilo a que chamamos de “denotação”. O mesmo, segundo Bateson, acontece com um mapa, já que ele não é o território que ilustra e depende de uma série de regras para que possa ser interpretado corretamente, apontando assim de maneira abstrata e compreensível ao território a que ele se refere. O mapa “aponta” algo do mundo, ele é inteiramente referencial, mas nunca é aquilo que ele aponta. Usar um mapa nos permite interpretar o mundo, mas também cria uma espécie de distanciamento, porque ao olhar o mapa não olhamos exatamente o mundo — apenas uma abstração dele.
A partir desta comparação, o jogo seria, portanto, uma espécie de “mapa”: cada ação no jogo faz uso, denota, uma ação que se encontra fora do jogo e que, fora do jogo, denotaria uma coisa distinta. Jogar é, assim como ler um mapa, necessariamente ser capaz de compreender o grau de abstração da linguagem, seu “distanciamento” dos objetos e, consequentemente, essa relação “mapa-território” que ela carrega. Não há jogo sem linguagem, e não há jogo sem compreender os fundamentos da linguagem, ou seja, seus diferentes níveis de abstração capazes de ocorrer simultaneamente mesmo quando se contradizem. Para jogar é preciso saber que um signo no jogo remete a outro signo sem perder, no entanto, sua existência “avulsa” — assim como o mapa que, justamente por não ser aquilo que descreve, existe para além dos caminhos que transcreve ainda que os aponte.
O mesmo acontece em atividades que, embora não sejam consideradas “jogo”, compartilhem dessa mesma relação entre diferentes níveis de abstração. Um exemplo seria a ameaça, uma ação que denota outra ação enquanto se mantém profundamente diferente dela. Um punho fechado, por exemplo, aponta diretamente para um soco, mas usa esse soco com outro sentido e outra intenção — o que o punho em riste indica, na verdade, é a possibilidade de um soco potencial ou futuro que ocorrerá sob certas regras, caso ocorram ou deixem de ocorrer determinadas circunstâncias. É o signo do soco que interessa ao ato de fechar um punho que — ainda — não soca, e sua eficiência depende daquele que percebe o punho saber exatamente o que um soco denota ao mesmo tempo em que sabe que aquilo não é um soco. Toda a ideia de jogo e de fantasia — terreno em que a “ameaça” também reside, juntamente com diversas formas de mentira, blefe, provocação e enganação, por exemplo — depende dessa relação constante entre denotações, metalinguagens e metacomunicações simultâneas. O comportamento de quem ameaça e de quem é ameaçado, de quem se apresenta e de quem assiste, de quem participa ou testemunha um ritual, fazem parte para Bateson desse mesmo fenômeno de múltiplos graus de abstração.
O ritual, aliás, torna-se um local privilegiado para Bateson por explicitar as necessidades de se interpretar simultaneamente níveis diferentes de abstração na linguagem. O ritual, assim como o jogo, corre sempre o risco constante de ser mal interpretado no momento em que se confunde a metalinguagem com o sentido denotativo. O que deveria apenas parecer uma guerra, no caso de um ritual de paz que simule combate entre diferentes tribos, por exemplo, pode muito facilmente ser confundido com a guerra que ele tenta simular e, com isso, tornar-se imediatamente um combate real[34]. Da mesma maneira, um animal pode interpretar a mordida “de brincadeira” como se fosse uma mordida real, já que o signo é o mesmo — a diferença está apenas na metalinguagem e na metacomunicação, que clamam por uma interpretação diferente — e, com isso, responder à altura com uma mordida real, deflagrando um conflito. Huizinga já apontava, em seu “Homo Ludens”, a “fragilidade” do jogo, que podia ser desmontado a qualquer momento com a dissipação da crença que o sustenta — algo passível de acontecer graças a intervenções externas ou a uma percepção súbita do caráter “desnecessário” do jogo, por exemplo. Bateson leva exatamente a mesma questão, a fragilidade da situação de jogo, para outra chave: o jogo pode se dissipar graças a problemas de interpretação, já que os signos utilizados em sua prática não denotam aquilo que parecem denotar.
Os signos utilizados dentro do contexto do jogo possuem ainda uma outra dificuldade adicional: além desses signos não denotarem aquilo que denotam, os signos em si são “ficções”, comunicando algo que não necessariamente existia anteriormente, ainda que remetam a algo real anterior. Podemos dizer, numa interpretação livre, que jogos são “invenções”, já que podem inventar um sentido divergente do sentido denotativo. No entanto, esse sentido novo apresentado pelo jogo faz uso de um signo anterior, já dotado de sentido — o jogo inventa algo novo ao mesmo tempo em que mantém o signo original. A ficção do jogo depende de um sentido denotativo prévio para se estabelecer, de modo que sem uma percepção plena de que a linguagem é formada por signos que podem ser interpretados em níveis diferentes é perfeitamente possível confundir o sentido denotativo com o metalinguístico ou o metacomunicativo. É possível acreditar por engano, portanto, que o signo presente no jogo signifique aquilo que ele significa denotativamente — confundir a “simulação de combate” com combate real, por exemplo —, mas isso não significa acreditar que um jogo tornou-se a realidade. Trata-se apenas de acreditar que o “jogo acabou”, que “não há mais jogo” ou que o jogo “não se instituiu”, por exemplo[35].
Vemos essa possibilidade de confundir a “ficção” do jogo com a suposta “realidade” denotativa em diversas outras situações que envolvem níveis simultâneos de abstração e compõe a comunicação e a atividade humana: Bateson cita[36] a arte — o artista que se esforça por criar uma versão realista de algo que sabemos não ser a realidade; um artista que se nega a representar algo do mundo em sua arte, mas ainda precisa usar signos reconhecíveis e que pode ser erroneamente julgado por esses signos, não pelos sentidos novos que propõe — e até mesmo situações em que o jogador deve aceitar a derrota como se fosse sem consequências — uma invenção proposta pelo jogo — ainda que ela cause danos reais por envolver trabalho, dinheiro, investimento psicológico, renome social, etc. No caso do jogador, o signo de derrota dentro do jogo, que não tem a mesma denotação que o signo possui fora do jogo, pode ser confundido com a derrota denotativa e causar, com isso, frustrações reais. Para além de Bateson, podemos concluir que o “mau perdedor” é simplesmente alguém que se “confundiu” frente à complexa relação entre diferentes níveis de abstração no jogo em que participou.
Essa relação necessária entre o jogo e o mundo fora dele — o mundo, nesse caso, oferecendo o indispensável sentido denotativo — permite, inclusive, que o jogo possa dizer coisas sobre o mundo dentro de um sistema de fantasia. Isso acontece porque muitas vezes o signo não denota um outro signo diretamente, mas sim um conjunto de signos que o cercam ou que lhe são relacionados. Assim, dentro do caráter “fantasioso” do jogo algo do mundo pode ser perfeitamente dito ainda que sem dizê-lo exatamente. É o que, para Bateson, permite que sintamos medo do que sai de uma tela de cinema em 3D, ou ainda o que permite a um filme abordar um tema delicado sem ter que de fato mencioná-lo. A ilusão em 3D ou a metáfora apontam para outros signos, que por sua vez apontam para objetos do mundo, e uma vez que percebamos as referências — ainda que elas não sejam diretas, ou que envolvam múltiplos signos — podemos nos comportar de acordo. A graça, de certa maneira, está em sermos capazes de “captar” a referência, em reconhecer os signos como signos, compreender as regras e as contradições e então interpretá-las. Perceber a que uma fantasia se refere é perceber que a fantasia, ainda que distanciada do sentido denotativo, não se desliga dele.[37]
Em um processo inicial de pensamento, segundo Bateson, acreditamos inteiramente no jogo e na fantasia, assumindo que os signos são exatamente aquilo que apontam ou, muitas vezes, o mundo em si; num processo posterior, percebemos que o jogo não é o que parece, que seus signos apontam para outros lugares e passamos a perceber o que diferencia a fantasia da não-fantasia. Esse segundo processo é o que descola o “mapa” do “território”, ou seja, o que consolida a linguagem como linguagem, não como mundo. Ser capaz de jogar, portanto, é ser capaz de executar esses dois processos simultaneamente: acreditar inteiramente na fantasia e, ainda assim, saber que se trata de uma fantasia. Para além do aparente obstáculo do paradoxo, Bateson recorre à situação empírica: somos capazes de entender esses processos simultaneamente, já que jogamos e o jogo existe. Segundo ele, não podemos esperar que todas as possibilidades e os processos humanos estejam de acordo com a lógica analítica: ao tentar jogar oscilamos, psicologicamente, entre os níveis de abstração da linguagem e eventualmente evoluímos nossa capacidade linguística a ponto de que coexistam no pensamento.
O que podemos afirmar, portanto, é que nossa relação com a linguagem “evolui”[38] a ponto de tornar explícita que a linguagem é uma linguagem e que os signos são signos, permitindo a relação “mapa-território”. Perceber a linguagem como tal é, desse modo, uma das consequências de se jogar e, ao mesmo tempo, o pré-requisito essencial para que o jogo seja experimentado enquanto jogo, para além de seu sentido denotativo. Aqui temos então uma primeira resposta para a pergunta “por que jogamos” que não se agarra a questões fisiológicas ou culturais: jogamos porque a linguagem assim nos permite, e porque apropriar-se da linguagem é ser capaz de jogar. Experimentar fantasias, jogos, brincadeiras — e até mesmo ameaças e mentiras, além de jogos de linguagem, incluindo os que tentam esvaziar as palavras de qualquer sentido denotativo[39] — permite conhecer progressivamente a linguagem em seus diferentes níveis de abstração e, assim, entender a linguagem como linguagem. É esse processo que “torna a linguagem opaca”[40], ou seja, tornar a linguagem visível, perceptível, nem mero som e nem simplesmente o mundo. Jogar é, em si e sempre, aprender como a língua funciona.
Ver a linguagem como linguagem é, portanto, admitir que os signos podem ser interpretados, falsificados, contrariados. Podem contradizer suas próprias regras de interpretação, ou significar algo muito diferente do que pareceriam significar à primeira vista. É dessa maneira que Bateson entende o jogo como um acontecimento na linguagem.
Um exemplo prático de um signo podendo significar algo diferente do que parece inicialmente é o das brincadeiras que fazem uso de violência simbólica. Quando uma criança durante uma brincadeira usa um signo que, no campo denotativo, remete à violência — um soco, um “tiro”, um golpe de “espada” — muitas vezes interpretamos erroneamente esse signo fora das regras de interpretação do jogo, ou seja, fora do campo metalinguístico ou metacomunicativo. Compreendemos que a criança tem intenção de violentar, ou então que possui raiva ou demais sentimentos associados à violência real. Sob as regras do jogo, entretanto, esses signos possuem outro significado, muitas vezes compondo apenas um gestuário necessário para que o jogo prossiga, por exemplo. Não é raro ver crianças verdadeiramente surpresas ao perceber que seu soco de brincadeira acabou machucando outras pessoas, tendo consequências distintas àquelas previstas dentro do jogo.
A dificuldade de interpretação dos adultos neste caso está justamente no fato de que não se trata de signos diferentes, um para “socar” e outro para “brincar”, com cada ação recebendo um signo exclusivo a ela relacionado. Em vez disso, temos signos iguais que significam coisas bastante distintas, e que apesar disso fazem referência um ao outro. Isso quer dizer que um “soco de brincadeira”, por exemplo, se refere ao soco cuja intenção é atacar e ferir como signo, mas não àquilo a que o soco se refere. Podemos dizer que trata-se de um “pseudo-soco”, que faz referência ao soco justamente para “subvertê-lo” — é como se sua intenção fosse, de fato, ressignificá-lo, motivo pelo qual é surpreendente para a criança que ele possa ter eventualmente os mesmos resultados daquilo a que fazia referência.
Não se trata, entretanto, de uma questão apenas de intenção — há algo mais complexo no jogo do que apenas a vontade de reproduzir um “soco”, ainda seguindo nosso exemplo anterior, com a intenção de que ele não cause os danos associados ao soco. Quando Gregory Bateson passa a analisar o jogo na linguagem, quer compreender como um jogo não depende de uma vontade, mas de uma estrutura lógica que o sustenta. Isso explica os motivos para Bateson ter recorrido tanto à Lógica, mais especificamente às teorias sobre tipos lógicos de Bertrand Russell e seus usos na semântica por Kurt Gödel. Sua proposta, alinhada à Filosofia Analítica, é de que as sentenças que usamos fazem parte de um conjunto de sentenças possíveis, mas que a interpretação dessas sentenças se dá em um nível superior, ou seja, as regras que nos dizem como interpretar cada sentença são de um tipo lógico diferente das sentenças em si. Os conceitos são dados no “primeiro nível” ou na “primeira ordem”, a ordem das sentenças, enquanto sua interpretação se dá em um segundo nível ou ordem, que dá as regras necessárias para formar e compreender o conjunto anterior. Os signos dados no primeiro nível podem ser sempre iguais — o “soco” de uma briga e o soco de brincadeira a que nos referimos anteriormente, por exemplo —, mas sua interpretação é diferente dada a existência de outras regras que pautam sua significação.
Assim como ocorre na relação “mapa-território”, são as regras metalinguísticas, de outra ordem lógica, que dizem como relacionar os desenhos do mapa às entidades do mundo — o próprio mapa, sem instruções, não é capaz de pautar essa interpretação. O ato de jogar seria então, a partir desse pressuposto, o ato de pegar ações relacionadas ao “não-jogo”, ao seu uso denotativo, e permitir que elas não signifiquem mais aquilo que elas significavam. As ações continuam as mesmas, mas a “regra de interpretação” dos signos passa a ser momentaneamente diferente, dando a elas um caráter de “exceção”, de realidade diversa que apenas levemente remete aos signos e a seus sentidos habituais.
É por isso que em “A Theory of Play and Fantasy” não há distinção lógica entre o jogo, o ritual, o fingimento e a ameaça, por exemplo. Todos eles são constituídos de ações “convencionais” cujos significados deveriam estar fortemente atrelados a um uso denotativo, a uma necessidade, a um certo modo de existir no mundo, mas essas ações abrem mão momentaneamente de seus significados e passam a ser interpretados sob uma nova chave: correr deixa de ser a fuga de um perigo e se torna um desafio de velocidade dentro de um jogo; o punho cerrado deixa de ser um soco e se torna uma “encenação” de soco na brincadeira ou na ameaça (e, de maneira similar, o ameaçado responde frente a essa encenação de perigo como se o perigo também fosse real); a guerra deixa de significar a morte do adversário e se torna então ritual para “criar paz”, simulando o conflito para poder evitá-lo.[41] Essa relação com o significado “original” da ação é o que torna o jogo e a fantasia tão frágeis, ou seja, sempre na iminência de se dissiparem: a ameaça de soco e o ritual que simula a guerra podem a qualquer momento perder esse novo signo organizador de ordem superior e tornarem-se socos e guerras genuínas; as crianças em combate fantasioso podem eventualmente acabar se agredindo de fato, o que acaba corroborando a percepção equivocada dos adultos que imaginavam se tratar de um conflito desde o princípio. É por isso, acreditamos, que tantas confusões de interpretação cercam o terreno do jogo, confundindo não só a brincadeira com a realidade mas também ligando de maneira inseparável a simulação — o “brincar de casinha”, por exemplo — e a ação original, acreditando que um é a “preparação” para a outra ou uma vontade impossibilitada da ação original. Esquecemos continuamente que o jogo tem certa autonomia de proposta e, portanto, de significado: se ele aponta para algo fora dele é apenas para torná-lo algo novo, mesmo que não sejamos capazes de esquecer inteiramente de seu significado anterior. Por vezes somos até mesmo incapazes de entender ou reconhecer qual é o signo ou a ação que o jogo está subvertendo, mas por entender que trata-se de subversão, ainda assim sabemos que estamos diante de um jogo — como alguém que não é capaz de entender a piada, mas ainda assim entende tratar-se de humor.
Considerações Finais
O sentido “habitual” da linguagem, por parecer naturalizado, muitas vezes se confunde com a própria realidade, parecendo expressar as coisas da única maneira que poderiam ser expressadas. No instante em que jogamos, no entanto, seja com um jogo de palavras, um trocadilho, uma metáfora, um poema, uma ameaça, um ritual, uma brincadeira ou um jogo organizado, percebemos que a linguagem pode ter significados distintos de acordo com a metalinguagem atualmente em vigor — e que ela pode ser sempre outra, deixando de estar em vigor para ser substituída por outra metalinguagem ou simplesmente retornar ao seu uso denotativo. Dessa maneira, os significados não são dados na realidade, nos objetos ou mesmo na linguagem, mas sim na metalinguagem, no sinal de jogo que está fora dos demais elementos, mas que precisa estar dentro do conjunto de elementos para que possa ser comunicado. Isso significa que jogar é lidar com significados dinâmicos, com a diversidade de significados possíveis.
Se para Johan Huizinga essa diversidade era condição para a cultura humana — e sua chegada tangencial ao tema do jogo se deu num movimento de resistência ao que ele entendia como uma visão de “naturalização” ou “determinismo” da História e das sociedades —, para Gregory Bateson essa diversidade era condição para a comunicação — o que também justifica sua chegada aos jogos como resistência à visão, em seus estudos antropológicos, de que um pensamento comum possa ser capaz de reger todos os comportamentos sociais de maneira uniforme. Apesar dos pontos de partida distintos, os dois autores podem ser reunidos nesse interesse tardio pelo jogo como produtor indispensável de significado, cultura e diversidade.
Referências
AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.
BATESON, Gregory. Culture Contact and Schismogenesis. Man, Vol. 35. Royal Anthropological Institute of Great Britain and Ireland, 1935.
BATESON, Gregory. Mind and Nature: A Necessary Unity. Londres: Fontana, 1980.
BATESON, Gregory. Pasos hacia una ecología de la mente. Buenos Aires: Editorial LOHLE-Lume, 1998.
BATESON, Gregory. Naven: Um Exame dos Problemas Sugeridos por um Retrato Compósito da Cultura de uma Tribo da Nova Guiné, Desenhado a partir de Três Perspectivas. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2018.
CAILLOIS, Roger. Os Jogos e os Homens. Lisboa: Edições Cotovia, 1990.
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: O jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2010
HUIZINGA, Johan. O Outono da Idade Média. São Paulo: Cosac Naify, 2010
HUIZINGA, Johan. De lo lúdico y lo serio. Madrid: Casimiro Libros, 2014
RUSSELL, Bertrand. Introdução à filosofia matemática. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.
SUTTON-SMITH, Brian. The Spirit of Play. In: FEIN G., RIVKIN M. The
Young Child at Play. Washington: NAEYC, 1986.
[1] Cf. SUTTON-SMITH, 1986.
[2] Cf. a esse respeito AGAMBEN, 2005., p. 84.
[3] Movimento estabelecido principalmente com a obra “A Cultura do Renascimento na Itália”, de Jacob Burckhardt.
[4] HUIZINGA, 2010.
[5] HUIZINGA, 2014.
[6] A edição nacional de “Homo Ludens” opta pela tradução “O jogo como elemento da cultura”, adotando-a inclusive como subtítulo do livro. Ao nosso ver, entretanto, a tradução mais adequada seria “O elemento jogo da cultura”. O restante deste artigo tentará defender esta posição.
[7] HUIZINGA, 2010.
[8] Huizinga fala no “jogo como um fator distinto e fundamental, presente em tudo o que acontece no mundo.” (HUIZINGA, 2010)
[9] É o que faz Roger Caillois, por exemplo, em sua obra “Os Jogos e os Homens” (CAILLOIS, 1990), ao tentar extrair da obra de Huizinga algum uso prático para catalogação etnográfica.
[10] HUIZINGA, 2010, p. 33.
[11] “O jogo é mais do que um fenômeno fisiológico ou um reflexo psicológico. Ultrapassa os limites da atividade puramente física ou biológica. É uma função significante, isto é, encerra um determinado sentido.” (HUIZINGA, 2010)
[12] HUIZINGA, 2010, p. 4.
[13] “No jogo existe alguma coisa ‘em jogo’ que transcende as necessidades imediatas da vida e confere um sentido à ação.” (HUIZINGA, 2010, p. 4)
[14] “É legítimo considerar o jogo uma ‘totalidade’.” (HUIZINGA, 2010, p. 6)
[15] “Somos mais do que simples seres racionais, pois o jogo é irracional.” (HUIZINGA, 2010, p. 6)
[16] “Todo ser pensante é capaz de entender à primeira vista que o jogo possui uma realidade autônoma”. (HUIZINGA 2010, p. 6)
[17] “A existência do jogo não está ligada (...) a qualquer concepção de universo.” (HUIZINGA, 2010, p. 6)
[18] “Se verificarmos que o jogo se baseia na manipulação de certas imagens, numa certa ‘imaginação’ da realidade (ou seja, a transformação desta em imagens), nossa preocupação fundamental será, então, captar o valor e o significado dessas imagens e dessa “imaginação”. Observaremos a ação destas no próprio jogo, procurando assim compreendê-lo como fator cultural da vida.” (HUIZINGA, 2010, p. 7)
[19] “É a linguagem que lhe permite distinguir as coisas, defini-las e constatá-las, em resumo, designá-las. (...) Brincando com essa maravilhosa capacidade de designar, é como se o espírito estivesse constantemente saltando entre a matéria e as coisas pensadas. Por detrás de toda expressão abstrata se oculta uma metáfora, e toda metáfora é jogo de palavras. Assim, ao dar expressão à vida, o homem cria um outro mundo, um mundo poético, ao lado do da natureza.” (HUIZINGA, 2010, p. 7)
[20] “Em toda a parte encontramos presente o jogo, como uma qualidade de ação bem determinada e distinta da vida ‘comum’.” (HUIZINGA, 2010, p. 6)
[21] Como veremos mais adiante, um jogo “parecer” com uma atividade da “vida comum” é insuficiente para equipará-los. Vários jogos lembram ações cotidianas mas divergem de seus sentidos originais.
[22] O jogo “(...) não é vida ‘corrente’ nem vida ‘real’. Pelo contrário, trata-se de uma evasão da vida ‘real’ para uma esfera temporária de atividade com orientação própria. (...) Esta característica de ‘faz de conta’ do jogo exprime um sentimento de inferioridade do jogo em relação à ‘seriedade’, o qual parece ser tão fundamental quanto o próprio jogo.” (HUIZINGA, 2010, p. 11)
[23] “Ele se insinua como atividade temporária, que tem uma finalidade autônoma e se realiza tendo em vista uma satisfação que consiste nessa própria realização.” (HUIZINGA, 2010)
[24] HUIZINGA, 2010.
[25] HUIZINGA, 2010.
[26] “Embora seja uma atividade não material, não desempenha uma função moral, sendo impossível aplicar-lhe as noções de vício e virtude.” (HUIZINGA, 2010.)
[27] Bateson mobiliza aqui um termo da Química, que envolve reações químicas opostas que ocorrem simultaneamente e dão aparência de algo estacionário, também aplicável à Biologia. Sobre isso, cf. BATESON, 1980, p. 234.
[28] O termo é apresentado pela primeira vez, sob esse uso, em “Culture Contact e Schismogenesis”, artigo em que Bateson transforma inteiramente um conceito da Biologia para aplicá-lo à Antropologia. Cf. BATESON, 1935.
[29] BATESON, 2018, p. 223.
[30] Cf. HUIZINGA, 2010.
[31] Cf. BATESON, 1998.
[32] Assumidamente tomando como referência os trabalhos de Lógica Analítica de Bertrand Russell.
[33] BATESON, 2008.
[34] BATESON, 1998.
[35] O medo frequente de que jogadores confundam o jogo com a realidade aparece para nós, sob esse prisma, como inteiramente legítimo, mas ainda assim distinto dos temores usuais. Acreditar que os valores inventados no jogo valem imediatamente para o mundo fora do jogo envolveria algum grau de dificuldade de percepção da linguagem como signo, o que Bateson associaria a questões psiquiátricas. Em situações de relação “saudável” com a linguagem, o risco está sempre na possibilidade do jogo subitamente terminar e os signos recuperarem seus sentidos denotativos, gerando as consequências usuais de seu uso — a mordida, por exemplo, passando a ser novamente uma mordida combativa e gerando, com isso, combate real ao invés do combate simulado.
[36] BATESON, 1998.
[37] A simples capacidade de perceber tem um impacto psicológico profundo: “entender a referência” é muitas vezes o maior — ou o único — prazer envolvido na fantasia do jogo. Sobre isso, cf. WALTHER, 2003.
[38] Bateson usa a expressão, novamente extraída da Biologia, por compreender que o acesso a mais níveis de abstração é um avanço em comparação com a relação que os animais fazem da linguagem.
[39] Refiro-me aqui a qualquer repetição oral de uma palavra que, através da insistência por parte da criança, seja capaz de transformá-la em mero som.
[40] PRAMLING, SAMUELSSON, 2013.
[41] O exemplo consta em BATESON, 1998.
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