O Contrato Social em John Rawls: Teoria e Prática
Jorge
Aurênio Ribeiro Júnior
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Pará (PPGD/UFPA). Email: jorgeaureniojr@gmail.com
Resumo: John Rawls elaborando sua teoria da justiça como equidade concebe o contrato social a partir de dois aspectos: 1) Teórico e 2) Prático. Sobre o aspecto teórico estrutura seu modo de pensar, sua construção mental, seu corpo de ideias que ainda estão em potência, que ainda não se realizaram. Sobre o aspecto prático, o contrato social é o próprio liberalismo político em si, é sua prática e o modo pelo qual o cidadão e as instituições agem sobre sua égide. Um problema que ainda há de ser respondido neste artigo é: será mesmo que o contrato social elaborado sobre as bases do liberalismo político por Rawls não possui aplicação prática em sociedades tão diversas? Como Objetivo Geral tentaremos analisar o que Rawls afirma sobre o contrato social em seu aspecto teórico e prático. Como Objetivos Específicos: 1) Refletir sobre o utilitarismo e o intuicionismo; e 2) Compreender a proposta política liberal de John Rawls, adentrando sua concepção kantiana, tratando sobre o consenso de sobreposição/estrito e do por que Rawls se recusa a modificar o status quo de sua teoria. Utilizaremos a Metodologia dedutiva com recorte epistemológico em obras do próprio Rawls e de comentadores que ajudarão na exposição de suas ideias. Finalmente, concluiremos que, apesar das supostas “falhas” ou “omissões” teóricas do liberalismo político de John Rawls, estas não anulam sua aplicação prática, pois, como é consabido, o liberalismo político continua a ter um domínio quase global não somente sobre a sociedade, mas, acima disso, está enraizado no modo de pensar e agir cultural universal, por mais que não se perceba tal domínio.
Palavras-chave: Contrato Social. John Rawls. Teoria. Prática. Liberalismo Político.
Abstract: John Rawls, elaborating his theory of justice as fairness, conceives the social contract from two aspects: 1) Theoretical and 2) Practical. On the theoretical aspect, he structures his way of thinking, his mental construction, his body of ideas that are still in potential, that have not yet been realized. On the practical side, the social contract is political liberalism itself, it is its practice and the way in which citizens and institutions act under its aegis, the aegis of political liberalism. A problem that still has to be answered in this article is: is it really the case that the social contract elaborated on the basis of political liberalism by Rawls does not have practical application in such diverse societies? As a general objective, we will try to analyze what Rawls says about the social contract in its theoretical and practical aspects. Specific Objectives: 1) Reflect on utilitarianism and intuitionism; and 2) Understand John Rawls's liberal political proposal, entering his Kantian conception, dealing with the overlapping/strict consensus and why Rawls refuses to modify the status quo of his theory. We will use the deductive methodology with an epistemological approach in works by Rawls himself and commentators who will help in the exposition of his ideas. Finally, we will come to the conclusion that the political liberalism of John Rawls, despite its supposed theoretical “failures” or “omissions”, does not nullify the practical application of political liberalism, because, as is known, political liberalism continues to have an almost global domain not only about society, but above that it is rooted in the universal cultural way of thinking and acting, however much one does not perceive such dominance.
Keywords: Social contract. John Rawls. Theory. Practice. Political Liberalism.
1. O Contrato Social em John Rawls
1.1 Aspecto Teórico e Aspecto Prático
Na tentativa de explanar sobre o que John Rawls concebe como contrato social, seguiremos o seguinte itinerário: aspecto teórico e aspecto prático. Como aspecto teórico queremos dar publicidade ao que Rawls estrutura em seu modo de pensar, sua construção mental, seu corpo de ideias que ainda estão em potência, que ainda não se realizaram. Enfim, supomos que aspecto teórico ainda seja um esboço daquilo que Rawls constrói com intuito de chegar ao seu ponto maior que é propriamente o aspecto prático.
O aspecto prático do contrato social em Rawls é o próprio liberalismo político em si, é sua prática e o modo pelo qual o cidadão e as instituições agem sobre sua égide. Sobre esse ponto há de se destacar que Rawls já pressupõe o digno funcionamento das instituições liberais, segundo seu raciocínio, o liberalismo político já se apresenta como algo que efetivamente condiz com aquilo que já é dado na busca pela justiça.
Sendo o aspecto prático do contrato social o próprio liberalismo político em si, devemos afirmar que se trata de um processo de imaginação/imaginário cultural. Em que sentido? Um processo de imaginação cultural que possui herança das revoluções liberais ocorridas em França, Estados Unidos e Inglaterra, bem como outras nações em situações diversas. Sua teoria de aspecto prático social ainda possui resquício no racionalismo do século das luzes. Portanto, o liberalismo político é a própria cultura revolucionária criada e difundida pelo sistema mundo global pelas revoluções liberais. Ou seja, a prática do contrato social e a prática do liberalismo. A prática do contrato social liberal nas nações que defendem um conjunto de sistemas liberais.
Dessa forma, trata-se de um liberalismo que antecede Rawls. Rawls é mais um dos teóricos que propaga essas ideias tornando-as ainda mais pragmáticas e racionalistas apesar dos erros de aspecto teórico. Sua relevante contribuição pode ser medida na própria herança cultural das revoluções liberais. Diante da propagação de um mundo com ideias liberais, John Rawls se torna o teórico desenvolvimentista do mundo cultural liberal. Mais especificamente em seu aspecto político e de organização política.
Esse aspecto prático do contrato social será melhor desenvolvido no capítulo referente à proposta política liberal de John Rawls. Por enquanto, nos concentraremos no aspecto mais teórico do contrato social.
Na tentativa de explicar o contrato social, Rawls apela ao que ele denomina de posição original. Ora, a origem do contrato social necessita da posição primeira para bem entendermos o que por consequência resultará. “A justiça como equidade é um exemplo [...] de teoria contratualista” (RAWLS, 2000, p. 17). Para tanto, “uma visão contratualista acredita que certos princípios seriam aceitos numa situação inicial bem definida” (RAWLS, 2000, p. 18). Além disso, “é típico das teorias contratualistas ressaltar a publicidade dos princípios políticos” (RAWLS, 2000, p. 18).
Segundo Morrison (2006, p. 468-9) os influenciadores intelectuais de Rawls são Kant (aborda a ideia da primazia do justo – right – sobre o bem – good – e a ideia reguladora do contrato social) e John Stuart Mill (aborda o espírito de tolerância). A metodologia utilizada por Rawls é bem direta. Em primeiro lugar afirma a primazia da justiça na ordem social. Secundariamente, apresenta alguns dados que comprovam a existência de um certo grau de interesse pessoal comum entre as pessoas que fazem parte da sociedade com intuito de permitir uma ordem social estável. E por fim, preconiza um conjunto de princípios que nos permita voluntariamente escolher entre as diferentes posições sociais e subscrever qualquer disposição que vise a distribuição dos bens sociais.
Rawls (2000, p. 12-3) escreve:
Meu objetivo é apresentar uma concepção da justiça que generaliza e leva a um plano superior de abstração a conhecida teoria do contrato social como se lê, digamos, em Locke, Rousseau e Kant. Para fazer isso não devemos pensar no contrato original como um contrato que introduz uma sociedade particular ou que estabelece uma forma particular de governo. Pelo contrário, a ideia norteadora é que os princípios da justiça para a estrutura básica da sociedade são o objeto do consenso original
[...]
Na justiça como equidade a posição original de igualdade corresponde ao estado de natureza na teoria tradicional do contrato social. Essa posição original não é, obviamente, concebida como uma situação histórica real, muito menos como uma condição primitiva da cultura. Entre as características essenciais dessa situação está o fato de que ninguém conhece seu lugar na sociedade, a posição de sua classe ou status social e ninguém conhece sua sorte na distribuição de dotes e habilidades naturais, sua inteligência, força, e coisas semelhantes. (grifos nossos)
Rawls apresenta um experimento mental no qual somos transportados a imaginar que estamos reunidos para criar um contrato social que inclua os princípios que possam nos manter unidos na vida real. Para isso é necessário que nos imaginemos escolhendo princípios para determinar o princípio de justiça de nossa sociedade a partir de uma posição original que estaria coberta pelo chamado véu de ignorância (MORRISON, 2006, p. 470).
Considerando os aspectos mais gerais, pode-se dizer que a importância do contratualismo se deve ao fato de conseguirmos responder duas perguntas simples de qualquer teoria moral: a) o que a moral exige de nós? e b) Por que devemos obedecer a certas regras? A resposta para a primeira pergunta é que a moral exige que cumpramos as obrigações pela qual nos tornamos responsáveis. A resposta para a segunda pergunta condiz que a razão pela qual devemos obedecer a determinadas regras é porque criamos um vínculo de comprometimento (GARGARELLA, 2008, p. 14).
Nussbaum (2013, p. 192-3) quando realiza seu diagnóstico sobre bases da cooperação social, afirma que na tradição do contrato social, a ideia de vantagem mútua se torna relevante. Rawls não vê problema em aceitar essa ideia, e ainda mais, aceita a noção que está associada à igualdade aproximada das capacidades entre as partes. Para Rawls as partes querem alcançar sua própria noção de bem, obviamente, dentro de limites de imparcialidade que são estabelecidos na posição original.
O que não pode ser olvidado é que John Rawls é um autor de posição pragmática, principalmente, quando falamos a respeito de organização política da sociedade. Seu pensamento no fundo traduz um empirismo que pode ser encontrado em figuras como Hume e Berkeley. Rawls está circunscrito aos experimentalismos da vida prática cotidiana, tentando afastar-se dos transcendentalismos sem explicação da vida filosófica.
Rawls é astuto em seu pragmatismo anglo-saxão, ele inverte a pergunta sobre as coisas primeiras, para ele pouco importa se realmente um contrato primordial existiu ou não. Conforme as lições de Gargarella (2008, p. 17):
Em uma típica crítica aplicável tanto a Rawls como a Locke, Rousseau ou Hobbes, muitos objetam o contratualismo afirmando que não tem sentido pensar em contratos que na prática não existiram. Perante Locke, Rousseau ou Hobbes, essa oposição vem simplesmente desmentir a existência de algo como um contrato original “real”, presente no início da vida civilizada: Quem firmou esse contrato? Onde ele ficou registrado? Quanto a Rawls, que nos fala de um contrato hipotético, o questionamento seria diferente. Nesse caso, alguém poderia perguntar-se: Para que me serve saber qual acordo teria firmado em certas condições ideais que estão completamente afastadas do que é minha vida presente? (grifos nossos)
É exatamente por isso que ele utiliza a adjetivação “hipotético” na ideia de contrato. Afinal de contas, se ele não conseguir provar a posição original de seu contrato social, tratar-se-á nada mais nada menos do que uma “hipótese”. É por essa razão também que a ideia de contrato social/contrato hipotético necessariamente está atrelada com a justiça para Rawls. A justiça como ponto fundamental de sua teoria demanda um contrato social, o acordo primeiro entre cidadãos.
Para Rosas (2011, p. 23) a ideia de Rawls é a visão de uma sociedade como um sistema cooperativo entre cidadãos livres e iguais e que em função dos seus dois poderes morais chegaremos no que pode ser denominado como “o papel da justiça”. Muito embora seja um sistema de cooperação, a sociedade também é um lugar propício aos conflitos entre cidadãos. Esses conflitos ocorrem em torno da distribuição dos benefícios e encargos da vida social. Daí advém o papel da justiça, que tem a finalidade de definir a distribuição mais adequada dos respectivos benefícios e encargos, ou mesmo, dos direitos e deveres decorrentes da cooperação social.
Continua o mesmo autor:
Em boa verdade, o papel da justiça, tal como Rawls a concebe, restringe-se à definição da distribuição correta dos bens materiais e imateriais mais básicos. A Justiça rawlsiana não trata de tudo. Ela ocupa-se apenas dos chamados “bens sociais primários”: liberdades, oportunidades, rendimento e riqueza, e também as bases sociais do respeito próprio. [...] Pode chegar-se a esta lista, ou a uma lista aproximada, quer mediante a consideração empírica daquilo que todos necessitam independentemente de tudo o mais que possam desejar, quer através de uma derivação abstrata [...] procurando mostrar que os bens sociais primários são aquilo de que os cidadãos livres e iguais necessitam para poderem exercer na prática os seus dois poderes morais (ROSAS, 2011, p. 24).
Weber (2016, p. 810) esclarece que Rawls defende uma concepção política de justiça que não é derivada de nenhuma doutrina moral abrangente. Ela se sustenta por si mesma. Dessa forma, não se poderia recorrer a valores éticos ou religiosos para justificar os direitos fundamentais. Não haveria possibilidade de acordo. Isso somente se torna possível com valores políticos. Como exemplo temos o direito de propriedade. A sua justificação como valor político é uma condicionante para possibilidade de acordo como elemento constitucional essencial.
Acreditamos que alcançamos um panorama geral para bem entendermos o que Rawls fala a respeito do contrato social em seu aspecto teórico e aspecto prático. Também não deixamos de clarear a íntima relação que existe entre a justiça e contrato social.
2. Utilitarismo e Intuicionismo
2.1 O Utilitarismo
Em sua construção teórica de contrato social hipotético Rawls afasta-se de duas posições que lhe parecem contraditórias para a construção da justiça como equidade. O utilitarismo e o intuicionismo como propostas intelectuais que não convém a sua posição original hipotética nem a sua teoria da justiça. Ambos delimitam perda substancial do que Rawls estrutura para organização da sociedade e de suas instituições. Não podemos deixar de lembrar os dois princípios da justiça que apesar de já tão debatidos, devem mais uma vez ser citados.
Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades básicas para as outras.
Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como vantajosas para todos dentro dos limites do razoável, e (b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos (RAWLS, 2000, p. 64).
O que queremos na verdade não é analisar ponto a ponto o que já foi especulado por diversos autores que bem interpretam a obra rawlsiana, citando novamente os dois princípios de Rawls queremos fazer uma coadunação para entender o contrato social diante desses princípios. Rawls postula a justiça como o ponto de partida de sua teoria, nela o cidadão é lúcido diante de suas vontades e necessidades, e para que haja pelos menos um consenso entre todos é mister que hipotéticamente o contrato social seja aceito. A partir dessa constatação, é nítido que o contrato, portanto, não pode ter como fundo nem o utilitarismo nem o intuicionismo.
O princípio da utilidade revela ser incompatível com o conceito da cooperação social entre iguais para a vantagem mútua. Parece não ter consistência com a ideia de reciprocidade implícita partindo-se da noção de uma sociedade bem ordenada (RAWLS, 2000, p. 16). Sidgwick talvez tenha sido o expositor que de forma mais clara formulou o utilitarismo, quando as instituições estão de tal modo planejadas a conseguir o maior saldo líquido de satisfação que é resultante da soma das participações individuais de todos os seus membros. (RAWLS, 2000, p. 25).
Sen (2011, p. 44) prorrompe sobre o utilitarismo:
Mas o que dizer do utilitarismo? Certamente, os utilitaristas em geral não querem a igualdade das utilidades desfrutadas por diferentes pessoas. A fórmula utilitarista requer a maximização da soma total das utilidades de todas as pessoas tomadas em conjunto, e isso não é, num sentido claro, particularmente igualitário. Na verdade, a igualdade que o utilitarismo busca assume a forma do tratamento igual dos seres humanos no espaço de ganhos e perdas de utilidades.
Gargarella (2008, p. 3-4) discute sobre o utilitarismo:
Rawls tende a rejeitar o utilitarismo em seu aspecto de concepção “teleológica” ou “consequencialista” (“deontológica”) [...] Rawls, como muitos outros liberais, defenderá uma concepção não-consequencialista (“deontológica”), isto é, uma concepção segundo a qual a correção moral de um ato depende das qualidades intrínsecas dessa ação – e não, como ocorre nas posturas “teleológicas”, de suas consequências, de sua capacidade para produzir certo estado de coisas previamente avaliado.
Podemos chegar ao princípio da utilidade por meio da observação dos fatos. Uma sociedade pode ser considerada ordenada quando suas instituições maximizam o saldo líquido de satisfações. O princípio da escolha para seres humanos que se encontram associados é interpretado como se fosse uma extensão do princípio da escolha para um único homem (RAWLS, 2000, p. 26). Justas são as instituições e ações que das possibilidades de escolha extraem o bem maior (RAWLS, 2000, p. 26).
Trata-se de uma constatação factual, a de que, implicitamente ou explicitamente, possuímos uma tendência natural a resolver nossos problemas por meio de soluções utilitaristas quando nos surge uma dúvida sobre como devemos decidir algum dilema moral. Por exemplo, num caso concreto, geralmente, escolhemos decisões que geram benefícios para uma maioria de pessoas quando não sabemos decidir tal caso. Consideramos mais aceitável as políticas que buscam a promoção do bem-estar geral. (GARGARELLA, 2008, p. 4)
Pode-se dizer que a maneira mais natural para compreender o utilitarismo é trazer para a sociedade como um todo os princípios da escolha racional que são utilizados para um único ser humano (RAWLS, 2000, p. 29). Para isso o indivíduo que possui poderes especiais de solidariedade e imaginação, identifica-se com o desejo dos outros e os experimenta como se fossem de fato seus. Portanto, ele avalia a intensidade desse conjunto de desejos lhes atribuindo o devido valor cuja satisfação o legislador tentará maximizar de acordo com as regras sociais (RAWLS, 2000, p. 29). A decisão que pode ser considerada correta é simplesmente uma questão de administração eficiente (RAWLS, 2000, p. 29).
Gargarella (2008, p. 9) novamente nos ajuda a compreender:
Rawls critica o utilitarismo por possibilitar o que poderíamos chamar preferências ou gostos “ofensivos”. Com isso quer dizer que, no “cálculo” proposto pelo utilitarismo, pode ser computado, por exemplo, o prazer que uma pessoa tenha de discriminar outra ou de restringir a liberdade de outros. De uma perspectiva igualitária, diria Rawls, essas preferências deveriam ser condenadas, e não, em contrapartida, “aceitas tal como são”.
Para Morrison (2006, p. 473) Rawls cogita equilibrar a necessidade de crescimento da riqueza, visando os menos favorecidos na sociedade. Apesar do objetivo geral da justiça utilitarista consistir em maximizar a riqueza social, Rawls não abandona essa ideia da maximização, pois considera que seus princípios básicos de justiça também são baseados nessa ideia deontológica autônoma. Por mais que se possa aumentar a riqueza social, um sistema de desigualdade pode demonstrar ser socialmente indefensável.
2.2 O Intuicionismo
Para o intuicionista não existem critérios construtivos que tenham origem em alguma ordem superior que possa determinar a relevância adequada de princípios concorrentes de justiça. Não existiria um único padrão para atribuir a esses princípios, para explicá-los ou valorá-los (RAWLS, 2000, p. 29). Sendo mais direto Rawls (2000, p. 37) suscita:
As teorias intuicionistas têm, então, duas características: primeiro, consistem em uma pluralidade de princípios básicos que podem chocar-se e apontar diretrizes contrárias em certos casos; segundo, não incluem nenhum método específico, nenhuma regra de prioridade, para avaliar esses princípios e compará-los entre si: precisamos simplesmente atingir um equilíbrio pela intuição, pelo que nos parece aproximar-se mais do que é justo. Ou então, se houver regras de prioridade, elas são consideradas mais ou menos triviais e não oferecem grande ajuda na formação de um julgamento.
Gargarella (2008, p. 2-3) expõe que:
Rawls opõe-se ao intuicionismo a partir do que considera a falha mais óbvia dessa postura: sua incapacidade de propor um sistema de regras capaz de hierarquizar nossas intuições (sobre qual princípio de justiça adotar em determinada situação), no caso habitual de serem gerados conflitos entre elas.
Outros pontos também podem gerar certa associação com o intuicionismo, como por exemplo, questões que refletem o justo e o bem estar como categorias que não podem ser analisadas ou quando os princípios morais são formulados de forma adequada expressando proposições clarividentes sobre exigências morais legítimas (RAWLS, 2000, p. 37). Ainda existe o intuicionismo do senso comum que toma a forma de grupos de princípios específicos, sendo que cada grupo é responsável por aplicar um problema particular de justiça (RAWLS, 2000, p. 38). Também existe um intuicionismo que trata dos fins sociais quando por exemplo se oferece uma base para que se possa decidir se determinados salários podem ser considerados justos em vista dos impostos que serão cobrados (RAWLS, 2000, p. 39).
De acordo com Rosas (2011, p. 36-7) a filosofia política de Rawls exclui as concepções intuicionistas e as concepções egoístas. O intuicionismo que poderia ser considerado como um tipo de casuística da justiça, utilizando-se dos princípios mais apelativos, consoante as circunstâncias, mostra-se insatisfatório já que não permite uma hierarquização bem estabelecida e devidamente justificada das reivindicações em relação à distribuição dos benefícios e do ônus da cooperação social.
Já o egoísmo pode ser encontrado em diferentes formatos, tais como: egoísmo geral, ditadura do eu, passageiro clandestino. Rawls é contrário a essa forma de ação, pois, contraria o que ele chama de “condições formais do justo”, tomamos como exemplo: generalidade, universalidade, publicidade, ordenação de reivindicações, finalidade. Sendo que essas condições formais funcionariam como obstáculos ao egoísmo. A ideia geral é de que o egoísmo nunca poderia ser uma teoria da justiça (ROSAS, 2011, p. 37).
Segundo a visão de um intuicionista, quando fazemos algum julgamento sobre a justiça social devemos alcançar uma pluralidade de princípios básicos, e assim, apontar aquele que nos parece mais correto, realizando um justo equilíbrio (RAWLS, 2000, p. 42). As teorias intuicionistas podem ser teológicas ou deontológicas. Até mesmo uma visão ética pode confiar até determinado ponto na intuição em muitos casos (RAWLS, 2000, p. 43).
Nussbaum (2013, p. 212-3) sintetiza:
O compromisso de Rawls com uma única medida linear de qualidade de vida envolve um aspecto metodológico: ele rejeita a avaliação de princípios plurais e diversos como condenavelmente intuicionista.
[...]
A acusação, como a imagino, tem duas partes: primeiro, que o enfoque deposita uma dependência inaceitável na intuição para a geração de princípios políticos básicos; segundo, que a natureza multivalente da lista das capacidades torna inevitável uma dependência da avaliação intuicionista, o que, por seu turno, tornaria os princípios políticos indeterminados e jamais conclusivos.
Rawls (2000, p. 45) corrobora que: “Na justiça como equidade, o papel da intuição está limitado de várias maneiras”. Ainda de acordo com Rawls (2000, p. 48) quando se discute o problema da prioridade, o melhor a se fazer é reduzir nossa dependência a juízos intuitivos, mas também não os eliminar por completo. Não existe nenhuma razão para que possamos dizer que devemos evitar a todo custo os apelos da intuição. A finalidade prática é tentar alcançar um consenso confiável para o julgamento.
2.3 Algumas conclusões mesmo que temporárias sobre o utilitarismo e o intuicionismo em John Rawls
No capítulo 2, exposto o utilitarismo e o intuicionismo, revelam-se propostas que devem ser rechaçadas para a teoria da justiça e incompatíveis com o contrato social. Rawls enfatiza esse ponto quando faz questão de apresentar o erro de ambas as teorias, indicando suas possíveis falhas e do porquê não fundamenta sua teoria da justiça nelas. Ocorre que, analisando o que foi dito por Rawls, bem como por seus comentadores, podemos chegar a algumas conclusões, mesmo que temporárias, e dessa forma, contribuir para elucidar algumas questões rawlsianas.
Analisaremos três tópicos sucintos.
1) Rawls utiliza-se do ideal da justiça para fundamentar seus postulados de filosofia política. Ora, quando Rawls nega se utilizar do utilitarismo como uma teoria de maximização das possibilidades individualistas, ele mantém a mesma posição utilitarista, ou seja, a mesma posição dos antigos liberais (vide supra GARGARELLA, 2008, p. 3-4) quando não aceita uma posição teleológica ou consequencialista da ação humana. Dessa forma, Rawls tomando posição defensiva, talvez por receio de sua teoria abismar-se na metafísica, mantém o status quo dos antigos utilitaristas que postulavam que a correção moral de um ato depende das qualidades intrínsecas dessa ação, e não da geração das consequências do ato. Rawls prefere manter uma posição kantiana/utilitarista ao invés de utilizar uma concepção teleológica.
2) Rawls também nega o intuicionismo. Devemos prestar atenção no seguinte: O autor utiliza o que ele chama de dois princípios da justiça. Ora, qual a origem desses princípios? Da onde vem? Por que especificamente esses dois? Por que não outros? Por óbvio que esses princípios são escolhas pessoais de Rawls, apesar de serem princípios baseados em uma prática recorrente na filosofia política liberal. É por isso que postulamos que a teoria da justiça em Rawls possui nível metafísico (intuicionismo metafísico da justiça), por mais que se negue veementemente. A filosofia política ou a política não se mantêm incólumes diante da metafísica, pelo contrário, o que mais vemos é a filosofia política ser permeada de concepções metafísicas. Apesar disso, de nenhum modo podemos ser injustos, pois, até mesmo Rawls afirmou que existia um certo nível de intuicionismo em qualquer teoria (vide supra RAWLS, 2000, p. 48) e que suas razões eram na verdade uma tentativa de achar o melhor caminho possível para que os cidadãos e as instituições pudessem obter o maior grau de segurança para a sociedade, já que um consenso absoluto seria impossível. Rawls quer diminuir os riscos sociais. Rawls também tem suas razões.
3) Sobre os reflexos do utilitarismo e do intuicionismo no contrato social hipotético, Rawls reconhece que a possibilidade de compreensão da posição original do contrato original possui limites, não se poderia reconhecê-lo efetivamente em todo seu sentido. Não podemos pensar o contrato social sem a noção de teoria da justiça como equidade. Vamos colocar estrategicamente duas falas de John Rawls e compará-las para extrairmos algumas conclusões.
A primeira é a que se segue:
A justiça como equidade não é uma teoria completa contratualista. Pois está claro que a ideia contratualista pode ser estendida à escolha de um sistema ético mais ou menos completo, isto é, um sistema que inclua princípios para todas as virtudes e não apenas para a justiça.
[...]
Precisamos reconhecer o alcance limitado da justiça como equidade e do tipo genérico de visão que ela representa (Rawls, 2000, p. 18) (grifos nossos).
A segunda fala é a seguinte:
Uma característica da justiça como equidade é a de conceber as partes na situação inicial como racionais e mutuamente desinteressadas. Isso não significa que as partes sejam egoístas, isto é, indivíduos com apenas certos tipos de interesse, por exemplo, riquezas, prestígio e poder. Mas são concebidas como pessoas que não tem interesse nos interesses das outras.
[...]
A situação inicial deve ser caracterizada por acordos totalmente aceitos. (Rawls, 2000, p. 15). (grifos nossos)
Cabe esclarecer que a partir da leitura desses trechos grifados podemos fazer uma correlação do contrato social com a teoria da justiça como equidade: “a justiça como equidade não é uma teoria completa contratualista” (RAWLS, 2000, p. 18). “Precisamos reconhecer o alcance limitado da justiça como equidade e do tipo genérico de visão que ela representa” (RAWLS, 2000, p. 18). Além disso, Rawls enfatiza que no estado hipotético original as pessoas seriam “mutuamente desinteressadas”, “não seriam egoístas”, “não teriam interesse nos interesses das outras” e “a situação inicial deveria ser caracterizada por acordos totalmente aceitos”.
Rawls como já dissemos considerava a justiça como equidade como uma teoria que se não explicava totalmente a origem do contrato social, pelo menos hipoteticamente nos concebia certa razão para os acordos sociais, nos garantindo um grau de zelo e segurança para a confiança mútua para com o outro. Outra questão que nos intriga é a fala de Rawls quando pressupõe o que ele cogita como pessoas “mutuamente desinteressadas” pelo interesse das outras. Nesse ponto, achamos digno de nota frisar que, num estado de natureza com o contrato social hipotético, os interesses mútuos poderiam sim se chocar com outros interesses, além das vontades egoístas que Rawls afirma não existir num estado de situação inicial.
Nem mesmo Sen (2011, p. 64) duvida com certo ceticismo de que as escolhas feitas por Rawls a respeito dos “dois princípios de justiça”, - e que serão responsáveis por dar o tom de toda a sequência de sua obra, - é uma escolha muito específica e pessoal do autor. Quando falamos em posição original, existem sim interesses gerais genuinamente plurais, às vezes conflitantes, que moldam nossa concepção do que seja a justiça.
3. Proposta Política Liberal de John Rawls
No terceiro tópico retomamos o que foi explicitado no primeiro, mas agora colocaremos mais ênfase na visão prática do contrato social de John Rawls. Conforme já postulamos, o aspecto prático do contrato social em Rawls é o próprio liberalismo político em si, é sua prática e o modo pela qual o cidadão e as instituições agem sobre sua égide, a égide do liberalismo político. O aspecto teórico é sua construção abstrata, o aspecto prático é a prática efetiva do modelo político liberal.
Com essas considerações iniciais não pretendemos de modo algum desvincular o conjunto totalizador entre aspecto teórico e prático, pelo contrário, reconhecemos que o aspecto prático necessita do aspecto teórico para sua aplicação. Acontece que existe um fenômeno relevante na obra de Rawls e que se situa quando da aplicação prática do contrato social. O que queremos dizer é que apesar de algumas lacunas evidentes sobre o aspecto teórico do contrato social, isso não impede de nenhuma forma sua aplicação prática, muito pelo contrário, o aspecto teórico parece ficar em segundo plano. No item 3.2 visualizaremos melhor.
Conforme já supramencionado, os aspectos teóricos e práticos se complementam na obra política de Rawls. O aspecto prático é o imaginário cultural que permeia a teoria política de Rawls. Hipoteticamente pode ser comparado a um tecido quase transparente que cobre um objeto, mas, que se observarmos atentamente podemos ver a forma, o tamanho, e outras particularidades desse objeto se fizermos um trabalho de imaginação, mesmo que esse objeto esteja coberto. E nesse caso, por diversas vezes o aspecto prático se sobrepõe ao aspecto teórico. Ou seja, o processo de imaginação/imaginário cultural (aspecto prático) sobrepõe-se ao corpo de ideias e construção mental (aspecto teórico) de Rawls.
Rawls (2000, p. 11) admite que um ideal social está relacionado a uma concepção da sociedade, uma visão própria de como os objetivos e propósitos da cooperação social devem ser entendidos.
Continua:
Para nós o objeto primário da justiça é a estrutura básica da sociedade, ou mais exatamente, a maneira pela qual as instituições sociais mais importantes distribuem direitos e deveres fundamentais e determinam a divisão de vantagens provenientes da cooperação social. Por instituições mais importantes, quero dizer a constituição política e os principais acordos econômicos e sociais (RAWLS, 2000, p. 7-8) (grifos nossos).
Rosas (2011, p. 21) afirma que a concepção liberal-igualitária da justiça tem como baluarte o individualismo, justamente na prioridade que dá à igualdade das liberdades, mas também não deixa de ser solidarista no papel que lhe cabe a respeito da igualização do ponto de partida dos indivíduos, bem como, a parte de riqueza que lhes cabe enquanto definida pelas regras institucionais da sociedade vivente. Na filosofia política contemporânea essa ideia associa-se ao neocontratualismo de Rawls e a ideia de construtivismo político.
Sucede outra fala do autor que reforça sua posição:
O paradigma liberal-igualitário pode ser definido como a perspectiva que defende a igualdade das liberdades fundamentais – dos direitos-liberdades, civis e políticos -, juntamente com a importância da igualdade de oportunidades e de uma distribuição equitativa em termos econômicos (ROSAS, 2011, p. 21)
O liberalismo afirma que o que que faz a sociedade justa não é o telos ou propósito ou fim em que ele visa, mas, precisamente a sua recusa de escolher com antecedência entre fins concorrentes e fins (SANDEL, 1984, p. 82).
Cada um possui capacidade para uma determinada concepção do bem que é estabelecida pela racionalidade. Sendo a racionalidade a capacidade para que se possa escolher os fins e eleger os meios mais adequados para que possamos atingir os fins (uma chamada racionalidade instrumental). Nesta racionalidade, distribuída por todos os indivíduos possuidores de faculdades normais, ainda que mais por alguns do que por outros, que concretiza a liberdade individual, a alternativa viável de que cada um possa escolher e perquirir seus próprios fins (ROSAS, 2011, p. 23)
Ainda de acordo com Rosas (2011, p. 48) Rawls traça como ponto de partida o que denomina como “facto do pluralismo”. As sociedades garantidoras das liberdades básicas dos cidadãos, - como por exemplo as sociedades herdeiras do constitucionalismo moderno -, e, com mais razão, de uma sociedade justa, os cidadãos entram num conjunto muito diversificado de doutrinas abrangentes, de variados caracteres e matizes: religioso, moral e filosófico. Essas doutrinas em destaque demonstram ser uma visão de mundo e da vida que propõe valores a princípios num dado sistema, de modo mais ou menos completo e sofisticado. Mas, nem todas essas teorias podem ser consideradas racionais e razoáveis.
Destarte, a proposta política de Rawls é engendrada pelo liberalismo político, o pensamento liberal que concebe o modo de vida liberal, o self made man, que tanto influenciou o modus vivendi hodierno global e mundial, apesar de raras exceções que não se encontram nessa esfera de influência política.
3.1 Influência de Kant em Rawls e o Consenso de Sobreposição/Estrito
Patente é a influência do filósofo de Königsberg no pensamento de John Rawls. Mas, várias semelhanças possíveis esbarram em projetos de sociedade que não se tocam. O projeto de Rawls é estritamente político, sua construção afasta-se cada vez mais de qualquer processo metafísico ou a priori. De Kant somente utilizará aquilo que lhe for útil a sua ação de filosofia política. E para chegar a tal conclusão, Rawls estrutura aquilo que chama de “consenso de sobreposição” e “consenso estrito”.
Rosas (2011, p. 49) especula que diante das possibilidades apresentadas numa sociedade pluralista, o consenso de cidadãos acerca dos princípios da justiça, – e aqui queremos apresentar o consenso entre indivíduos reais e não a respeito do acordo hipotético na posição original, não pode ser visto de forma linear. Isso quer dizer que os cidadãos não podem se submeter aos mesmos princípios pelas mesmíssimas razões. Rawls sugere que a sociedade pluralista deve se assentar no que ele chama de “consenso de sobreposição” e não mais de “consenso estrito”.
Na maioria das sociedades existentes não existe verdadeiramente um “consenso de sobreposição” e nem mesmo um “consenso estrito” da justiça. Esse modelo é considerado ideal, apesar disso, várias sociedades já ultrapassaram pelo menos o primeiro estágio que pode conduzir ao consenso sobre as questões básicas de justiça. O próprio consenso constitucional, quando busca assegurar as liberdades básicas (mesmo quando essas petrificam-se no formalismo e não se atribui seu justo valor) é um primeiro passo para o consenso de sobreposição sobre a justiça (ROSAS, 2011, p. 51).
Quando o “consenso de sobreposição” torna-se uma questão central, a justiça como equidade passa a fundamentar-se e justificar-se num plano meramente político. Dessa forma, a justificação da justiça, tal como foi realizada na obra Uma Teoria da Justiça, poderia parecer ter origem numa espécie de construtivismo kantiano. Mas, Rawls não toma impulso para o domínio da dedução transcendental, não advoga nenhuma ontologia transcendental nem transcendente. O seu construtivismo é estritamente político, partindo de uma base de política empírica (ROSAS, 2011, p. 51-2).
Nussbaum (2013, p. 198) postula:
“Para Rawls, a teoria dos bens primários está estreitamente ligada a uma concepção kantiana de pessoa: bens primários são introduzidos como bens que qualquer pessoa dotada das duas faculdades desejaria a fim de levar adiante seu plano de vida.
[...]
A noção aristotélica da dignidade ocupa o lugar da noção de Rawls das faculdades morais (ou da noção de Scanlon de reciprocidade), mas a ideia de bem ainda é encarada como (instrumentalmente) dependente da concepção de racionalidade moral e, com efeito, gerada por ela. Portanto, a teoria do bem teria um papel muito similar ao papel que possui em uma teoria contratualista, e a diferença entre as duas ficaria, pelo menos, reduzida”
Morrison (2006, p. 469) transmite a ideia de que:
“Embora haja uma multiplicidade de percepções e teorias da justiça, Rawls acredita [...] que o fato mesmo das divergências e dos argumentos sobre a justiça apontam para o compromisso da humanidade com a busca da justiça. Alguma escolha “política” [...] deve ser feita. Rawls coloca o justo acima do bem – Kant vence Bentham”.
Nussbaum (2013, p. 200) lembra que Rawls apesar de ter abandonado sua concepção inicial sobre os bens primários utilizando-os como meios para determinada concepção de bem que as partes busquem, permaneceu encarando-os como instrumentais para o planejamento de vida kantiano, dessa forma, os bens que as partes desejavam em termos das faculdades morais kantianas.
Continua:
O enfoque das capacidades é articulado em termos da ideia rawlsiana de liberalismo político: isto é, a concepção dos direitos vista como uma concepção parcial de bem, para propósitos políticos, à qual os cidadãos podem associar diferentes concepções abrangentes do bem. Ele é articulado, pelo menos assim esperamos, em termos somente de ideias éticas independentes, sem depender de doutrinas metafísicas e epistemológicas (como a doutrina da alma, da revelação ou da negação de ambas), que pudessem dividir os cidadãos segundo suas correntes religiosas ou suas doutrinas éticas abrangentes. Espera-se, portanto, que possa ser objeto de um consenso sobreposto entre cidadãos que, com relação ao resto, possuem posições abrangentes diferentes (NUSSBAUM, 2013, p. 200) (grifos nossos).
Sen (2011, p. 28) escreve a respeito da aproximação de Kant e Rawls:
é importante observar que, na busca de instituições perfeitamente justas, os institucionalistas transcendentais às vezes também apresentaram análises profundamente esclarecedoras dos imperativos morais e políticos para o comportamento socialmente apropriado. Isso se aplica em especial a Immanuel Kant e John Rawls: ambos participaram de investigações institucionais transcendentais, mas também forneceram análises abrangentes dos requisitos das normas comportamentais. Ainda que eles tenham focado as escolhas institucionais, suas análises podem ser vistas, de forma mais ampla, como abordagens da justiça focadas em arranjos, em que arranjo se refere tanto ao comportamento certo como às instituições certas. É claro que existe um contraste radical entre uma concepção de justiça focada em arranjos e uma concepção focada em realizações: esta necessita, por exemplo, concentrar-se no comportamento real das pessoas, em vez de supor que todas sigam o comportamento ideal (grifos nossos).
Sandel (1984, p. 85) conclui que o projeto de Rawls possuía como objetivo o direito como prioridade antes do que a obscuridade do subjetivismo transcendental kantiano. O idealismo metafísico de Kant, apesar de todas suas vantagens morais e políticas, cede para o transcendente, e ganha para justiça a sua primazia apenas negando-lhe a sua situação humana. Portanto, o projeto de Rawls é preservar a moral e política kantiana tentando deslocar a obscuridade germânica com uma metafísica doméstica mais agradável ao temperamento anglo-saxão. Essa é a posição original.
3.2 Do por que Rawls se nega a modificar o status quo de sua teoria
Iniciando esse último subtópico um problema que volta e meia surge e é alvo de inúmeras dúvidas e especulações é o seguinte: Por que Rawls se negaria a modificar o status quo de sua teoria? Se autores como Amartya Sen e Martha Nussbaum deixaram mais do que evidentes algumas lacunas na obra rawlsiana, não deixa de ser relevante tentar entender talvez os interesses de Rawls pela não modificação de sua teoria.
O que queremos deixar transparecer e que, inevitavelmente, concluiremos a posteriori é que Rawls possui razões não somente teóricas para manter seu ponto de vista, muito mais do que isso, Rawls possui razões práticas para manter sua teoria e suas razões práticas perpassam aquilo que apontamos desde o início como o aspecto prático do contrato social. No fim, todo esse conjunto de ideias orgânicas farão sentido.
Vejamos agora a posição de Amartya Sen em seu livro intitulado “A Ideia de Justiça”. Geralmente, os “ataques” são direcionados ao ponto que parece ser mais fraco e visível em Rawls, ou seja, seus dois princípios de justiça:
Uma vez descartada a pretensão de unicidade dos princípios de justiça rawlsianos (o argumento a favor desse descarte foi esboçado nas obras posteriores de Rawls), o programa institucional teria claramente uma séria indeterminação, e Rawls não nos diz muito sobre como um conjunto específico de instituições seria escolhido com base em um conjunto de princípios de justiça concorrentes que demandassem diferentes combinações institucionais para a estrutura básica da sociedade. Rawls poderia obviamente resolver o problema abandonando o institucionalismo transcendental de suas primeiras obras (sobretudo de uma teoria da justiça); esse seria o caminho mais atrativo para mim em particular. Mas temo não poder alegar que essa era a direção para a qual o próprio Rawls estava claramente se encaminhando, ainda que suas obras tardias levantem forçosamente essa questão (SEN, 2011, p. 31) (grifos nossos).
Mais uma vez Amartya Sen insiste que Rawls deve abandonar sua teoria, senão vejamos:
Contudo, está claro que, se as ideias posteriores de Rawls realmente estão dizendo o que parecem dizer, então sua primeira teoria por estágios da justiça como equidade teria de ser abandonada. Se as instituições têm de ser criadas com base em um único conjunto de princípios de justiça que emana do exercício da equidade, através da posição original, então a falta de um surgimento único não pode deixar de golpear a própria raiz da teoria. Aqui, há uma tensão real dentro da própria argumentação de Rawls ao longo dos anos. Ele não abandona, pelo menos explicitamente, sua teoria da justiça como equidade, e ainda assim parece aceitar que existem problemas incuráveis na obtenção de um acordo unânime sobre um conjunto de princípios de justiça na posição original que não podem deixar de ter consequências devastadoras para sua teoria da “justiça como equidade” (SEN, 2011, p. 65) (grifos nossos).
Mas no fim acaba admitindo que apesar dos erros ou males de origem da teoria da justiça, a mesma continua a ser a filosofia moral mais gritante da modernidade:
Seja como for, permitam-me continuar com o delineamento da teoria rawlsiana da justiça como equidade. Rawls nunca a abandonou, e se trata da teoria da justiça mais influente na filosofia moral moderna (SEN, 2011, p. 66) (grifos nossos).
Não podemos olvidar outra figura relevante: Martha Nussbaum. A autora também não fica atrás quando de sua tentativa de expor algumas fraturas na filosofia política de Rawls. Sua análise nos remete às questões de “renda” e “riqueza” e do por que Rawls não quis modificar sua lista:
Sen propôs que Rawls substituísse a lista heterogênea de bens primários, com seu emprego proeminente dos recursos (renda e riqueza) como indicadores de bem-estar, por uma lista de capacidades, e todas elas seriam, então, empregadas para medir a qualidade de vida. Uma das justificativas básicas para essa mudança era a inadequação de renda e riqueza como indicadores do bem-estar de pessoas portadoras de deficiência: uma pessoa cadeirante pode ter a mesma renda e riqueza que uma pessoa com mobilidade “normal” e, no entanto, possuir capacidade desigual de mover-se de um lugar para o outro (NUSSBAUM, 2013, p. 201-2) (grifos nossos).
Rawls não consegue aceitar tal proposta, pois, o uso de variáveis como “renda” e “riqueza” possuíam relevância para seu processo argumentativo já que são indicadores fundamentais para o princípio da diferença, e também, basicamente, por causa da estrutura da sua doutrina do contrato social. Além disso, sua visão de mundo anti-intuicionista parece rejeitar qualquer índice de posições relacionadas a uma pluralidade de valores (NUSSBAUM, 2013, p. 202).
Ainda de acordo com Nussbaum (2013, p. 223) a lista de Rawls foi projetada para servir como base de um consenso sobreposto numa sociedade pluralista, portanto, trata-se de uma lista não metafísica. É feita para que se evite, realmente, esse tipo de visão metafísica ou epistemológica muito ampla sobre o ser humano que abarca conceitos como de alma, teologia natural ou de verdade autoevidente.
Podemos extrair algumas conclusões do que foi exposto. Rawls talvez não tenha modificado sua teoria da Justiça por diversas razões, conforme nos foi apresentado por autores como Sen (2011) e Nussbaum (2013). Ocorre que (muita atenção) os “ataques”, geralmente, são direcionados para o aspecto teórico do contrato social sobre suas supostas “falhas” e “omissões”. Por óbvio que existem “falhas” e “omissões”, mas o que não se percebe na obra de Rawls é o aspecto prático do contrato social que ganha mais importância no final de tudo, ou seja, conforme já expusemos é o próprio liberalismo político em si, é sua prática e o modo pela qual o cidadão e as instituições agem sobre sua égide, a égide do liberalismo político.
Portanto, a aplicação do liberalismo político em si é mais bem aceita do que qualquer falha ou lacuna teórica que possa existir. Rawls tinha noção de que quanto mais aberto o sistema ou teoria, maior predisposição a erros. Dessa forma, seu papel é o de se não cessar, pelo menos, diminuir os riscos sociais. Talvez seja por isso que muitas vezes dá maior ênfase no papel de ação prática do liberalismo político do que para as origens de um possível contrato social que o mesmo aceita como hipotético. Esse fenômeno é perspicaz em Rawls, seu modelo teórico de contrato social parece ficar em segundo plano, pois, a aplicação do sistema político liberal é maior do que se imagina.
Destarte, num mundo de sistema global liberal, a cultura do que poderia ser considerado liberal está enraizada no modo e no viver social. Como já dito alhures, o aspecto prático, ou seja, o liberalismo em si como imaginação/imaginário da cultura possui herança em revoluções sociais passadas que deixaram suas marcas sociais. Rawls, então, é um dos maiores colaboradores da aplicação prática do liberalismo político. Em sua concepção as instituições já devem ser “liberais em essência”, apesar de não querer discutir as origens dessa “essência” ou de um possível “início” das instituições, pois, isso que lhe causaria problemas teóricos. E como já dissemos, por diversas vezes, o aspecto prático sobrepõe-se ao aspecto teórico.
Talvez por isso Rawls nega-se a modificar o status quo de sua teoria, pois possui a “intuição” de que os erros teóricos de sua teoria da justiça serão suprimidos pela prática da filosofia política liberal do sistema.
Conclusões
Tentamos clarear algumas questões em John Rawls, principalmente quando tratamos do contrato social em seus dois aspectos: o teórico e o prático, diagnosticando suas diferenças. Também não olvidamos algo que é muito perceptível que são as questões sobre o utilitarismo e o intuicionismo e as causas de rejeição dessas teorias para Rawls. Expomos a sua proposta liberal, suas influências kantianas, consenso de sobreposição e consenso estrito, bem como as causas do por que Rawls não queria modificar o status quo de sua teoria.
Finalmente, podemos reiterar a conclusão de que o liberalismo político de John Rawls, apesar das supostas “falhas” ou “omissões” teóricas do liberalismo político de John Rawls, estas não anulam sua aplicação prática, pois, como é consabido, o liberalismo político continua a ter um domínio quase global não somente sobre a sociedade, mas, acima disso, está enraizado no modo de pensar e agir cultural universal, por mais que não se perceba tal domínio.
O que queremos dizer é que apesar de algumas lacunas evidentes sobre o aspecto teórico do contrato social, isso não impede de nenhuma forma sua aplicação prática, muito pelo contrário, o aspecto teórico parece ficar em segundo plano. Portanto, a aplicação do liberalismo político em si é mais bem aceita do que qualquer falha ou lacuna teórica que possa existir. Rawls tinha noção de que quanto mais aberto o sistema ou teoria, maior predisposição a erros. Dessa forma, seu papel é o de se não cessar, pelo menos, diminuir os riscos sociais.
De modo nenhum pretendemos esgotar a temática sobre o tema, até porque escolhemos partes específicas do texto de Rawls, bem como, utilizamos comentadores a respeito de sua obra que nos ajudaram a compreender melhor o posicionamento da ideia de Rawls.
Referencial Teórico
GARGARELLA, Roberto. As teorias da Justiça depois de Rawls: Um breve manual de filosofia política. Tradução de Alonso Reis Freire. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
MORRISON, Wayne. Filosofia do Direito: Dos gregos aos pós-modernismo. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
NUSSBAUM, Martha. Fronteiras da Justiça: Deficiência, Nacionalidade, Pertencimento à espécie. Tradução de Susana Castro. São Paulo: Martins Fontes, 2013.
RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Tradução de Almiro Piseta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
ROSAS, João Cardoso. Concepções da Justiça. Lisboa: Edições 70, 2011.
SANDEL, Michael. The Procedural Republic and the Unencumbered Self. Political Theory , Vol. 12, No. 1 (Feb., 1984), pp. 81-9
SEN, Amartya. A Ideia de Justiça. Tradução de Denise Bottmann e Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2001.
____________. Desigualdade Reexaminada. Tradução de Ricardo Doninelli Mendes. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record, 2011.
WEBER, Thadeu. O Direito de Propriedade e Justiça. Revista Estudos Institucionais v. 2, 2, 2016.
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