Mídia como dispositivo de saber/poder

José Orlando Carneiro Campello Rabelo*

RESUMO: O presente artigo tem como objetivo discutir mídia (veículo da ‘cultura de massas’) como um dispositivo de saber/poder partindo da noção de genealogia. A centralidade do texto reside na teoria de Foucault destacando os processos de uma genealogia, a noção de modos de subjetivação, nuances do saber/poder e finalmente a noção de dispositivo convidando o leitor a refletir: não seriam os veículos de comunicação as maiores fontes de propagação e manutenção das ideologias em nosso meio? Foucault usa a “genealogia do saber-poder”, para discorrer sobre a possibilidade de construção dos saberes através de determinadas condições externas ao próprio saber, assim, congrega em sua análise, elementos relacionais, históricos e políticos a outros referendados no poder. O poder se exerce de forma difusa e descontínua criando vetores ou forças que se dissipam em direções das mais diversas, o saber seria um canalizador dessas forças ou relações de poder. Assim, o ‘saber cultural’ pode ser compreendido como qualquer ação social que tenha relevância para determinada significação e a mídia seria veículo de difusão desta cultura, uma parte crítica da ‘estrutura’ das sociedades modernas. O conhecimento é uma relação estratégica, generalizante, é a luta singular do homem com o objeto que ele quer dominar, saber, em suma é poder, resultado de lutas constantes e cortantes. Somos compelidos a produzir “verdades” pelo poder que a exige e que dela necessita para funcionar. As verdades são reguladas pela disciplina e por ela observamos as relações de poder operando sobre os corpos, tornando-os dóceis e úteis. O fato de não identificarmos diretamente a “fonte” destes discursos, pode significar que elas já tenham sido tão fortemente incorporadas ao senso comum que não causa mais estranhamento. Assim, para além da origem do discurso destacamos aqui sua propagação, seu alcance ilimitado e seu potencial, proporcionados diretamente pelo aparelho midiático como mais um elemento de dominação.

Palavras-chave: Genealogia; saber-poder; modos de subjetivação; Foucault; mídia.


Para iniciar a conversa

A dita “cultura de massas” é tema recorrente em textos de diversas áreas constituindo, até certo ponto, um elemento central nos debates acerca da sociedade atual. Roland Barthes (2001), em seu clássico “Mitologias”, desvela a exaustão os processos que ancoram e escondem as ideologias que sustentam estas construções, garantindo-lhes validade e assegurando degredo a todo aquele que aponte sua falibilidade. Aquele que se presta a desvendar estes mitos sociais contidos nestas culturas é chamado por Barthes de mitólogo, e de acordo com o autor só lhe resta um posicionamento sarcástico e descrente em mudanças que estrategicamente o aloca à margem da sociedade. Na escrita deste texto me posicionarei como um destes seres, um mitólogo, embora não recorra ao pensamento deste autor não posso deixar de mencionar sua genialidade e contribuição.

O texto pretende constituir-se como uma provocação ao leitor foucaultiano e aquele que por esta leitura se interessa ao questionar a possibilidade de compreender a mídia (veículo da ‘cultura de massas’) como um dispositivo de saber/poder partindo da noção de genealogia.

Complexa é a tarefa em tomar o arcabouço teórico de Michel Foucault como base. A dificuldade está para além das complexidades da leitura e aproximação de suas ideias da realidade brasileira demarcada por desordem e indisciplina. Igualmente transcende as discussões da ausência de um “método”, nos cânones clássicos de metodologia científica, o que consiste em um perigo teórico em apontar direcionamentos diferentes do original. Aparentemente o maior desafio nesta tarefa consiste em manejar termos consagrados por um modismo intelectual e universitário no mínimo medíocre sem fazer coro com esta massa de ‘pensadores’ que utilizam jargões deste teórico de forma aleatória, lhes garantindo um certo status ou ar de mistério.

Parece que termos clássicos do dicionário Foucaultiano estão, no caso de alguma parte da produção brasileira, saturados de sentidos e contrassensos. Assim, é fundamental buscar um fio condutor que nos leve a uma possível cartografia que embora volátil e em constante processo de metamorfose (como toda cartografia deve ser), do cenário brasileiro para que a aproximação destes conceitos não aponte verdades, mas condições de possibilidades.

Assim, este trabalho se propõe didático, enxuto e despretensioso. O objeto social mídia não será foco da discussão, a centralidade é da teoria de Foucault destacando os processos de uma genealogia, a noção de modos de subjetivação, nuances do saber/poder e finalmente a noção de dispositivo convidando o leitor a refletir: não seriam os veículos de comunicação as maiores fontes de propagação e manutenção das ideologias em nosso meio?

Sobre a noção de genealogia

Foucault apresenta em sua obra não um método no sentido clássico (estruturalista), mas uma analítica de flexibilidade e mobilidade que permite reconstruir a história de determinado saber em seus processos de desenvolvimento descontínuo.

O pensamento Foucaultiano sofre um profundo corte epistemológico, o que melhor o teria caracterizado como pós-estruturalista. Sua proposta de método se inicia em um período denominado de “arqueológico” em que busca uma análise do sujeito enquanto fundado por um sistema autônomo, desvinculado de possíveis relações entre os saberes e as relações políticas e econômicas, neste momento ele objetivava pesquisar e “generalizar inter-relações conceituais capazes de situar os saberes constitutivos das ciências humanas, sem pretender articular as formações discursivas com as práticas sociais” (FOUCAULT, 1979, p. 09).

A análise arqueológica teria como finalidade e fundamento inter-relacionar os saberes apontando o surgimento das ciências humanas, enquanto resultantes de uma rede conceitual “Digamos que a arqueologia, procurando estabelecer a constituição interna dos saberes privilegiando as inter-relações discursivas e sua articulação com as instituições, respondia a como os saberes apareciam e se transformavam” (FOUCAULT, 1979, p. 10). Seria uma história das ideias, uma escrita daquilo que já foi escrito, abandonando a investigação de uma origem e buscando descrever as regras que regem as práticas discursivas daquilo que chamamos de ciência.

Em outro momento o teórico, lançando mão de uma forte influência niilista do pensamento de Nietzsche, discute a “genealogia do saber-poder”, em que discorre sobre a possibilidade de construção dos saberes através de determinadas condições externas ao próprio saber. Neste momento, congrega em sua análise elementos relacionais, históricos e políticos a outros referendados no poder. Assim possibilita a compreensão da produção dos saberes sobre o homem, além da constituição dos sujeitos formados por relações do discurso, sendo necessário compreender o que seriam tais práticas discursivas e de poder (FOUCAULT, 1979). Para compreender o que é genealogia do poder nesta teoria, será imprescindível apreender o pensamento de Nietzsche com relação à genealogia.

A genealogia de Nietzsche não busca a origem histórica, pois a procura de uma origem implica a vivência de uma “essência” ou de uma “verdade” que está esperando para ser descoberta, compõe-se como algo arrebatado que se deu em determinado momento. Esta genealogia se propõe a analisar as condições de possibilidades que orientam determinado conjunto de forças a produzir certo valor, e quais direcionamentos este “valor” imprime às vivências (BOUYER, 2009).

A relação da história para a genealogia será construída de rupturas e descontinuidades. Na analítica de poder, Foucault preocupa-se em estudar o porquê (ou o como?) do domínio de um saber, quais condições externas proporcionam o domínio de um determinado saber. É por meio da análise das (des)construções dos saberes, que se pretende “explicar sua existência e suas transformações situando-o como peça de relações de poder ou incluindo-o em um dispositivo político, que em uma terminologia nietzschiana Foucault chamará genealogia” (SOUZA; MACHADO & BIANCO, 2008, p. 13). Será através da genealogia que Foucault, na apreciação dos “diagramas de força” irá se dedicar a ampliar seu próprio pensamento com relação ao poder e suas manobras.

Neste sentido poder não é um objeto ou um sujeito, mas uma relação ou melhor uma rede de relações. Portanto, o poder em seu exercício vai muito mais longe, passa por canais muito mais sutis, é muito mais ambíguo, porque cada um de nós é, no fundo, partícipe de certas relações de poder e, por isso, carrega ou veicula o poder.

Observamos que temos dois conceitos centrais que nortearão nossas discussões, são eles: as noções de saber-poder e o discurso. Estes elementos deverão compor uma cadeia de pensamentos que irá resultar em nosso guia, ou melhor, na analítica que ora propomos.
  
Nuances do saber-poder: a mídia como dispositivo

Conforme apontamos anteriormente, Foucault faz uso da genealogia para investigar como surgem e se transformam os saberes. Para Foucault o poder é visto como um exercício e o saber uma regra. O poder se exerce de forma difusa e descontínua criando vetores ou forças que se dissipam em direções das mais diversas, o saber seria um canalizador dessas forças ou relações de poder. O saber não detém nenhuma experiência “natural” ou inovadora, porque o enunciável, aquilo que se manifesta, está vinculado às relações de poder, que são por elas mesmas atualizadas gerando estratos (SOUZA; MACHADO & BIANCO, 2008, p. 13).

O “saber”, em Foucault, rompe, de início, com a tradição grega, que associava o desejo de conhecer (saber) como natural, ou inato a um sujeito que seria seu detentor, em uma unidade perfeita, com argúcia de observar o movimento que leva da simplicidade à complexidade. O conhecimento se reconheceria nas coisas em uma relação Dialógica. Foucault discorda veementemente disso ao apontar que o conhecimento é fruto da astúcia, uma invenção que não teria uma “origem” natural.

Aqui abrimos um parêntese para discutir a ascensão e em muitos casos prevalência do uso da cultura como espaço de atravessamento de tudo aquilo que é social, garantindo-lhe o espaço de centralidade em estudos de ciências humanas e sociais. Neste trabalho abordaremos cultura como um produto social desenvolvido e ancorado em um espaço de permanentes disputas de poder, portanto instável.

Um recorte fundamental é de que aqui tratamos da produção cultural midiática, e de nenhuma outra. Hall (1997) serve-nos como principal fonte de referência ao passo em que conceitua como cultural qualquer ação social que tenha relevância para determinada significação e acrescenta que a mídia, veículo de difusão desta cultura, seria uma parte crítica da ‘estrutura’ das sociedades modernas. Ao afirmar este posicionamento o autor define que a distinção marxista de uma base econômica e uma superestrutura ideológica seriam insustentáveis na atual conjuntura.

Neste espaço de debate propomos: em que medida a mídia funciona como mero ‘veículo’ de transmissão da cultura dita de massas? Em algum sentido é possível manipula-la para atender a interesses de grupos sociais específicos?

Uma noção brutalmente dominante, passada e reforçada por veículos de comunicação em massa é de que a mídia seria um reflexo de anseios e manifestações populares. Não cabe assim, discutir o limitado acesso popular a um repertório ‘cultural’ diversificado, sendo bombardeada diuturnamente por produtos midiáticos esvaziados de sentido e profundamente alienantes?

Ao apontar a incongruência em separar base e superestrutura social Hall (1997) não nega os conteúdos ideológicos ligados aos discursos da sociedade, longe disso, chama atenção a dificuldade de percebê-los de tão imbricados encontram-se em diversos produtos desta mídia, com destaque ao alcance destas informações e saberes: “A revolução cultural que aqui estamos tentando delinear em suas formas substantivas é igualmente penetrante no nível do microcosmo. A vida cotidiana das pessoas comuns foi revolucionada — novamente, não de forma regular ou homogênea” (HALL, 1997, p.04).

Esta conceituação indica que a frágil noção de supostas identidades depende da compreensão dos processos de identificação que permitem a apropriação dos discursos culturais pelas subjetividades (ou por modos de subjetivação). Desta forma podemos afirmar que a constituição dos sujeitos se dá através da cultura repassada pela mídia, nunca fora dela, a mídia ganha força como uma das principais condições (condicionantes?) de possibilidades. Os modos de subjetivação dependem, portanto, dos ‘conhecimentos’ e saberes que a elas são acessíveis, sendo parcialmente produzidas de modo dialógico ‘no’ e pelo discurso.

O conhecimento como toda invenção, demanda de um tempo e lugar próprios, e o que o engendra é seu motivo: uma maldade, originada da batalha entre os instintos. Ele tem como objetivo dominar as coisas: “é contra um mundo sem ordem, sem encadeamento, sem formas, sem beleza, sem sabedoria, sem harmonia, sem lei, que o conhecimento tem de lutar” (FOUCAULT, 2009, p. 18).

Nada liga o conhecimento à natureza, portanto entre o conhecimento e as coisas não há continuidade, mas diferença. O conhecimento dobra as coisas em uma relação que busca destruí-las, ele quer dominá-las. O sujeito, demarcado pela guerra, é fruto da luta entre instintos, assim não há sujeito uno (a unidade não tem partes). Conhecer é uma relação estratégica, generalizante, é a luta singular do homem com o objeto que ele quer dominar. Saber, em suma é poder, resultado de lutas constantes e cortantes: “É que o saber não é feito para compreender, ele é feito para cortar” (FOUCAULT, 1979, p. 28). Compreender esta noção de saber passa pela apreensão de dois conceitos essenciais: a ordem do discurso e o conceito de regime de verdade.

Compreendendo o saber em si, partimos para suas condições de produção e circulação, sua economia, ou, conforme define Foucault (2005) em ‘ordem do discurso’:
[...] supondo que em todas as sociedades a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e terrível materialidade. (FOUCAULT, 2005, p. 9).
O Discurso é aquilo pelo que se luta, o poder do qual queremos nos apoderar. Devemos, portanto considerar que não existe discurso neutro, desinteressado, ele estaria intimamente ligado a desejo e poder. Cabendo a ressalva: diferente do que pontua a psicanálise, o discurso não é apenas o que manifesta ou esconde o desejo, ele é, em si, o próprio objeto de desejo e objeto de luta (lutamos para dominar o discurso) (BOUYER, 2009).

Neste cenário de lutas constantes cria-se um regime, ou ordem, que seleciona “quais discursos” são ou não válidos ou interessantes, há procedimentos de controle internos e externos nesta seleção. Os procedimentos internos são exercidos do discurso sobre si mesmo a título de ordenação, classificação. Visam o controle da aparição do discurso fixando regras de surgimento e significação (por meio da disciplina), e de sua circulação ou funcionamento, qualificando os sujeitos que falam e não permitindo sua permutabilidade, excluindo todo conteúdo inassimilável como heresia. Os procedimentos externos de controle do discurso, também falados como procedimentos de exclusão, orientam aquilo que entendemos como regime de verdade (VEIGA-NETO, 2007). Então como se dá e como o discurso pode ser controlado?


Discursos e outros dizeres

Foucault (1986), no estudo “Arqueologia do saber” define discurso como o conjunto de enunciados que provém de um mesmo sistema de formação; assim se poderia falar de discurso clínico, discurso econômico, discurso da história natural, discurso psiquiátrico (e por que não um discurso midiático). Daí decorre em Foucault a noção de dispositivo e, finalmente de prática que enlaça a análise do discursivo com o não discursivo, ele utiliza a noção de linguagem para definir o que entende por discurso, por práticas discursivas.

Diferente de uma ação concreta e individual de pronunciar este ou aquele discurso, a prática discursiva constitui-se como todo conjunto de enunciados que formariam o fundamento mesmo das ações. Isso significa que nossas práticas discursivas formam, sistematicamente, o mundo de que falam, nossa maneira de compreendê-lo, de significá-lo (VEIGA-NETO, 2007)

O discurso excede a menção a “coisas”, há mais além do que palavras ou frases, não se pode apreender um acontecimento de forma completamente neutra. Para Foucault (1986) analisar o discurso seria compreender as relações históricas, de práticas visíveis que estão presentes nos discursos, será compreender as falas como práticas sociais inexoravelmente vinculadas às relações de poder.

Foucault (2005) define que existiriam diversos mecanismos de controle externo do discurso. Entre eles estariam a restrição da enunciação ou interdição, que pode ser definida em linhas gerais como: “não se tem o direito de dizer tudo (...) que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa” (FOUCAULT, p. 9, 2005). Este mecanismo estaria respaldado em três principais modalidades: o privilégio de quem fala, o tabu do objeto e o ritual da circunstância. Outro mecanismo seria a rejeição do discurso, na qual se utiliza um determinado aparato do saber para apontar a inadequação daquela fala (Foucault utiliza como exemplo a loucura).

Finalmente a vontade da verdade, um procedimento de exclusão, arbitrário, ancorado institucionalmente e eminentemente histórico. Ela “administra” nossa vontade de saber apoiada em toda estrutura de livros, escolas, laboratórios, universidades, orientando formas de valorização, ou não, formas de distribuição e atribuição exercendo coerção sobre os demais discursos.

Neste prisma, não se deve simplesmente aceitar mais este discurso, o de Foucault, sem questioná-lo. Oliveira (2011), ao analisar o uso acadêmico do “Vigiar e punir” de Foucault no Brasil, destaca a incongruência em utilizar este referencial indistintamente e amplamente diante da complexa realidade brasileira, segundo ele, a despeito do cenário Francês e Inglês (à época dos escritos), em que houveram a generalização dos dispositivos da escola, hospital, fábrica e prisão, este fenômeno nunca foi observado em nosso meio. Para este autor a sociedade brasileira é antes de tudo indisciplinada, argumento defendido diante dos altíssimos índices de violência que presenciamos. Portanto, se estas instituições não atingem sua plenitude em nosso meio não seria possível pensarmos que a mídia ocupa grande parte deste lugar?

Alguns discursos funcionariam regendo os demais, funcionando como verdade, com regras de enunciação, técnicas de obtenção, definição de um estatuto próprio de quem gera e define a verdade. Portanto, poder e verdade (saber-poder) fundem-se em uma relação difusa e circular em que o poder produz e sustenta a verdade, que por sua vez produz os efeitos do poder. Assim a verdade pode ser conceituada discursivamente, nas palavras de Foucault: “Entendendo, por verdade, [...] o conjunto das regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui aos verdadeiros efeitos específicos de poder” (FOUCAULT, 1979, p. 13). Ele diz também que há uma luta em torno do estatuto da verdade.

A partir deste “regime da verdade-poder” seria possível compreender as maneiras de constituição da própria verdade incitada pela política e economia, difundida por um imenso conjunto de instituições e aparelhamentos (mídia como elemento central na atualidade), objeto de confrontos sociais, e eminentemente centralizada pelo discurso científico. Essa “verdade” estará presente na fundação do sujeito.

Observam-se três dimensões autônomas, mas que se implicam constantemente na constituição do indivíduo: saber, poder e si. Saber é determinado pelo visível e o enunciável. O poder é determinado por meio das relações de forças. O si é determinado pelos processos de subjetivação. Assim, não existem sujeitos, mas processos de subjetivação.

A subjetividade anuncia relações de poder-saber, que modelam, alteram, que em suma, dobram e desdobram o indivíduo, ao passo em que irrompem com a concepção intimista de subjetividade. Portanto, para Foucault, inexiste subjetividade, o que existem são processos de subjetivação que seriam expressões da história de nossa época demarcadas em nós mesmos, o que chamamos de personalidade. A própria noção de que somos únicos e nos diferenciamos de todo restante da população do mundo já seria em si um reflexo de nosso momento atual:

Mas como e de onde provêm estas verdades? Voltando o olhar para o cotidiano observamos um interessante aspecto do nosso cenário: não nos incluímos no rol dos países classicamente leitores de material impresso. Ao mesmo tempo somos destacadamente consumidores de mídia televisiva e virtual, um dos países que mais consome internet no mundo. Em outras palavras, a principal forma de se manter ‘informado’ na atualidade provém da mídia, ela dita nossas verdades.

Concluindo, é verificado que há três concepções fundamentais com relação ao poder em Foucault: a primeira é que o poder tem como característica ser negativo e positivo, desta maneira forma o indivíduo. A segunda é que o poder é um exercício e não deve ser possuído. A terceira, o poder transpõe a dicotomia dominante e dominado.

         Foucault irá instituir uma analítica de poder, e não uma teoria, pois não busca fixar definições a procura de verdades, mas acompanhar as metamorfoses das relações de poder. O poder não é ele que se exerce, portanto não há uma essência, nem detentores do poder-saber, ele se manifesta de forma difusa em uma intricada relação de forças. Sendo assim, o poder cria relações de força, jogos, regras e dispositivos que se revelam nas práticas sociais. Em resumo, para Foucault “o poder não existe”, o que existe são relações e práticas sociais onde o poder é exercido e nos discursos se torna visível em seus jogos e manobras (SOUZA; MACHADO; BIANCO & SOUZA 2007).


Poder e seus dispositivos

Para discutirmos os mecanismos que instituem o poder como verdade, ou seja seus dispositivos, devemos compreendê-lo em ação, seja nos discursos que o produzem, seja nos movimentos a que somos vitimados. Não se trata de descrever o poder em si, mas de buscar encontrá-lo na intensidade e constância de determinadas relações (FERREIRINHA & RAITZ, 2010).

Somos compelidos a produzir “verdades” pelo poder que a exige e que dela necessita para funcionar. Estaríamos condicionados a dizer ou encontrar as “verdades” do poder, sendo este caracterizado como uma ação sobre ações (FOUCAULT, 1999). Estas verdades são, segundo Foucault, reguladas pela disciplina, compreendida aqui como uma maneira de punir, como um micro modelo de um tribunal. É por esta disciplina que observamos as relações de poder operando sobre os corpos, tornando-os dóceis e úteis, estejam produzindo uma tecnologia sobre a vida que agrupa os efeitos do convívio em coletividade (FOUCAULT, 1999).

Objetivando compreender estas dinâmicas deveremos procurar possíveis homogeneidades produzidas no fundo de determinada episteme.
Foucault usa a palavra episteme para designar - o conjunto básico de regras que governam a produção de discursos numa determinada época, em outras palavras, episteme designa um conjunto de condições de princípios, de enunciados e regras que regem sua distribuição, que funcionam como condições de possibilidade para que algo seja pensado numa determinada época. Uma episteme funciona informando as práticas (discursivas e não-discursivas) e dando sentido a elas; ao mesmo tempo, a episteme funciona também em decorrência de tais práticas. (VEIGA-NETO, 2007, p. 115/116).
Estas condições de possibilidade orientam as manobras e jogos de poder, atuando na subjetivação, na constituição mesma dos sujeitos, assim compreende-las em sua multiplicidade de dimensões e representações é estruturante para a compreensão do sujeito e do contexto social. Estes corpos “conformados e docilizados”, forjados em meio às ações do poder, são estabelecidos na e pela disciplinarização que bloqueia o poder em ação naquele sujeito.

Para compreendermos os sujeitos devemos atentar que cada sociedade em cada tempo tem seu regime de verdade, seus discursos que se fazem funcionar como verdadeiros e norteiam as relações. As formas através das quais cada um é sancionado, as técnicas e jogos utilizados na aquisição das “verdades”, o status daquele que é autorizado a “dizer o que é verdadeiro” nos possibilita uma aproximação compreensiva dos funcionamentos destas relações (FERREIRINHA & RAITZ, 2010).

Considerando que a linguagem se apresenta como fortemente ligada a sociedade, Foucault (1999), compreende que estes discursos já circulam há muito tempo, e analisando-os seria possível visualizar como as conexões estabelecidas entre as palavras e as coisas, são tênues, reflexos de regras inerentes às práticas discursivas. As práticas que induzem a internalização inquestionável destas verdades, chamadas de tecnologias do eu, são oriundas, portanto de tecnologias do poder que produzem as subjetividades. A analítica genealógica Foucaultiana possibilita compreender estas dinâmicas nos afastando de uma visão reducionista da sociedade.

Buscando nos (re)aproximarmos da ideia de “genealogia” Foucaultiana, partimos da noção de dispositivo, e de como este é operacionalizado nas relações de dominação e subordinação da sociedade, especificamente naquelas ligadas a mídia na comunicação da cultura de massas. Centramo-nos em três características fundamentais deste fenômeno: atender a elementos históricos; apresentar-se como uma conceituação multilinear e dinâmica; ter vinculação a outros dispositivos contemporâneos a ele, em especial aqueles ligados as diversas ideologias e a ‘necessidade’ de mantê-las. Não é precipitado afirmar que, mesmo a um olhar superficial, nosso objeto de discussão atende facilmente aos três requisitos postos.

Em uma sociedade de suposto controle não caberia buscar na religião, política ou escola o germe destas orientações, o poder é difuso existindo múltiplos dispositivos de controle na sociedade em que vivemos. O fato de não identificarmos diretamente a “fonte” destes discursos, pode significar que elas já tenham sido tão fortemente incorporadas ao senso comum que não causa mais estranhamento. Assim, para além da origem do discurso destacamos aqui sua propagação, seu alcance ilimitado e seu potencial como mais um elemento de dominação.


Considerações finais

Não chegamos, e talvez nunca cheguemos, a conclusões definitivas (em assunto algum), entretanto, caso o texto desperte inquietação ao leitor certamente seu objetivo terá sido alcançado.


A guisa de considerações cabe destacar que a teoria Foucaultiana vista até aqui nos orienta a pensarmos que as práticas discursivas ocorrem em um contexto social e, portanto, não estrito ou determinado a esta ou aquela relação, trata-se de uma complexa teia como esquemas e jogos de poder. Para se tornar sujeito a pessoa se ‘sujeita’, e esta sujeição se dá nos processos de subjetivação através de verdades ancoradas em saberes que respondem ao poder, que se ajustam para objetivos maiores de controlar corpos e vivências, criando o mais permanentemente possível disposições sociais.

Reforçamos assim, a leitura de que pode haver a utilização da posição privilegiada do discurso midiático como um dispositivo. Esta possibilidade se apresenta quando atentamos a conceituação multilinear das posições defendidas amplamente pelos veículos de comunicação, em especial nos desdobramentos e alcance de toda uma imbricada trama ideológica, observamos sua inter-relação a elementos históricos e suas vinculações a outros dispositivos. Destacamos ainda que, especialmente no caso brasileiro, poucos ‘sujeitos’ detêm o controle da mídia (destaca-se também uma igreja no caso televisivo).

O que temos como resultado é uma nova idade das desigualdades caracterizada por uma massa de ‘incluídos’ em um universo informacional abertamente manipulado. Práticas discriminatórias são produzidas e reproduzidas em velocidade inimaginável e reforçadas a exaustão. Uma fábrica de valores, de uma nova ordem moral, funciona a todo vapor reforçando, sob o véu obscuro do ‘politicamente correto’, a diminuição da ação social do Estado sob o pretexto de livrar a população da corrupção (ainda que não se esclareça como estes elementos estão associados). O discurso neoliberal se aproveita do clássico estado de mal-estar brasileiro solapando direitos adquiridos e fortalecendo as elites, que em nosso país ainda estão subordinadas a uma ‘coroa’ (um bom exemplo de pós-colonialismo invertido).

Ao ‘mitólogo’ só resta a existência cínica diante de tais constatações. Creio, porém que o cinismo e mesmo o sarcasmo não precisam, nem devem, ser vividos em silêncio. Se não for possível romper as relações de subordinação, discriminação e subalternidade ao menos as apontemos e multipliquemos assim o número de inquietos, se não é uma solução ao menos sirva de lenitivo.


AUTOR
José Orlando Carneiro Campello Rabelo é Docente do Centro Universitário Tabosa de Almeida – ASCES UNITA. Doutor em Psicologia Clínica – UNICAP; Mestre em Psicologia Social – UFPE; Militante dos Direitos Humanos, psicólogo, professor e pesquisador.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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HALL, S. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo. Educação & Realidade, v. 22, n° 2, jul./dez., p. 17-46, 1997.
OLIVEIRA, L.Relendo ‘Vigiar e Punir’. In: DILEMAS – Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v. 4, n. 2. Rio de Janeiro: IFCS – UFRJ, 2011. Acesso em 02 de Abrilde 2017, disponível em: <http://revistadil.dominiotemporario.com/doc/Dilemas-4-2Art5.pdf>.
SOUZA, E. M. DE, MACHADO, L. D. E BIANCO, M. DE F. O homem e o pós-estruturalismo foucaultiano: implicações nos estudos organizacionais.Organizações & Sociedade. Salvador, v. 15, n. 47, 71-86,dez, 2008. Acesso em 02 de Abril de 2017, disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1984-92
VEIGA-NETO, A. Foucault e a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.

FEIRA DE SANTANA-BA | nº 5 | vol. 1 | Ano 2017

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